10 Junho 2025
A doutrina tem suas raízes em Carlos Duarte Costa, nascido em uma família de posses e boas maneiras na Corte Imperial do Rio em 1887.
O artigo é de Jan Theóphilo, jornalista, publicado por Agenda do Poder, 08-06-2025.
Tropicalizaram o catolicismo. Aqui padre pode casar-se, o divórcio é liberado, os trajes sacerdotais usam cores verde e amarela, não há um grama de ouro nas paredes das igrejas e não tem papa nem cardeal. Um presidente é escolhido para um mandato de quatro anos, sem direito a reeleição, por 60 bispos numa eleição simples, e sem os rapapés roliudianos de um conclave. Você pode até não ter reparado, mas na última contagem eles eram em mais de 500 mil os fiéis seguidores da Igreja Católica Apostólica Brasileira (ICAB), estabelecida nos anos 1940 por um bispo carioca e comunista, que hoje já se encontra em exatos 26 países.
A doutrina tem suas raízes em Carlos Duarte Costa (tratado carinhosamente pelos seguidores como São Carlos do Brasil), nascido em uma família de posses e boas maneiras na Corte Imperial do Rio em 1887. Com apenas 9 anos, seu tio, que era o Bispo de Goiás, convenceu seus pais a mandá-lo estudar em Roma, sob sua proteção. E para lá se foi o garoto, assistir à virada do milênio entre aulas de filosofia e teologia no Vaticano. Voltou à Guanabara aos 23 anos, para ascender na hierarquia da Igreja.
“Só que para surpresa de muitos, ele passou a defender abertamente o socialismo. E acharam que o melhor ‘cala-boca’ era nomeá-lo para bem longe, e assim ele se tornou Bispo de Botacatu, a 250 km de São Paulo”, conta o teólogo Francisco Pessanha: “Mas essa foi a pior decisão que poderiam ter tomado, por que estamos falando dos anos 1930, onde as comunicações eram complicadas, e, distante do controle dos cardeais, ele ficou bem mais solto”. E bota solto nisso. Dom Carlos começou a pregar contra o celibato dos padres e a proibição do divórcio. Opositor ferrenho de Getúlio Vargas, que considerava um fascista, durante a Revolução Constitucionalista de 1932 em São Paulo chegou a recrutar um pelotão armado: os “Soldados do Bispo”, que formaram ao lado dos insurretos.
Em 1937, Dom Carlos pediu renúncia ao cargo de bispo, ganhou um título honorífico e imaginou-se que ia desaparecer nos escaninhos das muitas e muitas controvérsias milenares que o Vaticano já encarou. Mas que nada. Nos anos seguintes ele pregou a favor do fim do latim na celebração das missas, do celibato de padres e freiras, e ganhou fama ao pisar forte no acelerador das críticas sociais, em especial contra o alto clero que, segundo ele, preferia bajular poderosos a ajudar os mais necessitados. Não deu outra.
Em 1942, Getúlio mandou prender Dom Carlos após ele denunciar uma suposta infiltração nazista na cúpula do catolicismo brasileiro e ter assinado o prefácio do livro “O Poder Soviético”, em que o padre inglês Hewlett Johnson defendia de maneira inabalável o regime stalinista. Ele foi enviado para Minas Gerais, mas poucos meses depois foi solto, curiosamente, graças a pressões políticas das representações diplomáticas da Inglaterra e dos Estados Unidos.
O papa Pio XII não apenas o excomungou em 1944 como meses depois o declarou vitandus. “É uma punição ainda mais rara e severa, que proibia qualquer católico de manter até mesmo contatos sociais com o excomungado”, explica o professor Pessanha: “Algo tão medieval que a Igreja Católica acabou formalmente com a possibilidade de sua aplicação em 1983”.
“Não me sujeitei à política fascista do meu irmão, Eugênio Pacelli”, deu de ombros Dom Carlos, aos jornais da época, se referindo assim de maneira informal e pouco protocolar ao papa Pio XII.
“Ele fazia missas em terreiros de candomblé, umbanda. Ele acreditava que o Estado tinha que ser laico e não haver interferência entre ele e as religiões. Dom Carlos celebrava essas missas em templos de outras crenças para defender a liberdade religiosa”, diz o historiador Wagner Pires, que pesquisou sobre a Igreja Brasileira na Faculdade Padre Dourado, em Fortaleza (CE). Em 1949, o governo brasileiro suprimiu temporariamente todo o culto público realizado pela ICAB, porque sua liturgia e seu traje clerical causariam confusão por serem indistinguíveis dos da Igreja Católica e ainda seriam equivalentes para enganar o público. E assim o verde e amarelo entrou no guarda roupa oficial. Dom Carlos morreu em 1961 e com ele a igreja perdeu muito de sua penetração. “Ele sabia usar como poucos os canais da imprensa da capital para difundir suas ideias”, diz o historiador Wagner Pires.
As décadas seguintes foram marcadas por vários anos de tumulto, com dissensões, brigas por poder e mais de 20 cismas que criaram igrejas que se autodominavam veterocatólicas (ou Velhos Católicos), como a Congregação dos Missionários de Jesus, a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Bielorrussa do Brasil ou a Ordem dos Hospitaleiros Ortodoxos Sanjoanita. Nenhuma delas é reconhecida formalmente pela Igreja Anglicana da Inglaterra, ou qualquer outra denominação ortodoxa.
Na divulgação esta semana dos dados do Censo 2022, não foi revelado nenhum dado específico da Igreja Brasileira. Os números geralmente apresentados pela ICAB se referem ao Censo de 2010: 560.871 fiéis, espalhados por 28 dioceses em todo o país. A do Rio possui três templos, localizados na Penha, Jacarepaguá e em Marechal Hermes. Mas apesar de nem ser citada pelo último estudo do IBGE, nem dar as caras na imprensa, a igreja está longe de morrer e tem voltado à baila nos últimos anos por um motivo prosaico. Segundo o teólogo Francisco Pessanha, casais divorciados que sonham com um novo e romântico matrimônio, celebrado por um padre dentro de uma igreja florida encontram um porto seguro na doutrina brasileira. “A gente não tem um dado preciso, mas percebe que cada vez mais pessoas recorrem a igreja brasileira quando descobrem que lá não vão te pedir antecedentes”, ironiza Pessanha.
Mas apesar do progressismo, a Igreja Brasileira não tem uma orientação sobre a comunidade LGBTQIA+, ao contrário da Igreja Romana, que em dezembro de 2023, autorizou a bênção a casais de pessoas do mesmo sexo. Mesmo assim, antecipou discussões sobre dogmas e temas que décadas mais tarde seriam acolhidos pelo Vaticano. Hoje, depois do Brasil, o segundo país com maior número de fiéis é a Bolívia, seguido pelas Filipinas e há estimativas de mais de 900 mil seguidores espalhados mundo afora.
No fim das contas, Dom Carlos talvez tenha sido só mais um brasileiro embebido pelo realismo mágico latino-americano: cansou das regras, fez a própria igreja, trocou o latim pelo português, o preto pelo verde e amarelo, e ainda achou tempo pra tretar com o papa, com Getúlio Vargas e com metade do clero. Se tivesse nascido hoje, já estaria dando sermão no Instagram, virando meme no X (o antigo Twitter) e casando celebridades em cerimônias transmitidas ao vivo no TikTok.