03 Junho 2025
Hoje comumente associados a manifestações da extrema direita e a pautas conservadoras, artistas sertanejos vêm marcando presença em eventos políticos e se posicionando publicamente nas redes sociais nos últimos anos. A proximidade com o agronegócio – contribuindo para o surgimento do agronejo – e com o ex-presidente Jair Bolsonaro reforçou essa imagem. Mas a vinculação entre o gênero e a política não é recente nem linear, segundo estudiosos do tema.
A reportagem é de Hélen Freitas, publicada por Repórter Brasil, 02-06-2025.
Movido por interesses econômicos, sociais e simbólicos, o sertanejo já esteve ao lado de diferentes projetos políticos ao longo da história brasileira. De acordo com especialistas, essa conexão é marcada por um dinamismo que acompanha as transformações do país e as estratégias de mercado da música.
Para o cientista social Caique Carvalho, o comportamento dos artistas do gênero não é necessariamente fixo. “A gente não pode se iludir acreditando que os sertanejos nunca vão dizer: ‘votamos no candidato do PT’, se assim o agronegócio também se mobilizar para esse lado”, afirma. “Essa posição está extremamente atrelada ao mercado de circulação, porque é de onde vem o dinheiro”, complementa.
A ligação entre o setor agropecuário e a música sertaneja, portanto, tem raízes históricas que vão além das pautas atuais e que remontam, por exemplo, à chamada música caipira. Precursora do sertanejo, ela serviu de trilha sonora de um Brasil em transformação, marcada pelo êxodo rural e pela migração para as cidades, processo que se intensifica nos anos 1970, durante a ditadura militar (1964-1985).
Segundo o historiador Gustavo Alonso, autor do livro “Cowboys do asfalto”, a expansão da zona de produção, a urbanização de estados do Centro-Oeste, a industrialização do campo e o desenvolvimento de áreas como o Cerrado foram viabilizados por investimentos estatais e incentivos públicos durante o regime. “O agro brasileiro é fruto da ditadura, ele é fruto da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], da mexida no terreno do Cerrado brasileiro”, afirma, em entrevista à Repórter Brasil.
A modernização do setor agropecuário brasileiro, por sua vez, levou a uma maior concentração fundiária e a uma menor necessidade de mão de obra no campo, fatores que contribuíram decisivamente para o fluxo migratório em direção aos centros urbanos. “A música [caipira], de certa forma, também cumpre um papel de naturalizar o êxodo rural, que acontecia, na maioria das vezes, de forma forçada”, afirma Ana Chã, autora do livro “Agronegócio e indústria cultural”.
Nesse contexto de transformações, a música caipira passou a retratar um país idealizado, marcado por uma suposta harmonia entre regiões, classes e setores produtivos. Era uma visão que reforçava a integração simbólica dos camponeses ao projeto desenvolvimentista dos militares. “Os sertanejos louvaram‑na [a ditadura], sobretudo, quando esta acenava com a possibilidade de maior igualdade, fosse entre regiões, fosse entre classes, fosse entre setores da sociedade. E especialmente pelo reconhecimento simbólico do campesinato no cenário político, social e econômico”, diz Alonso em seu livro.
No auge do ufanismo propagado pelo regime, artistas do interior exaltaram forças de segurança e grandes obras de infraestrutura. Em “Presidente Médici”, por exemplo, Teixeirinha, um dos maiores entusiastas do governo militar, homenageia Emílio Garrastazu Médici, terceiro presidente da ditadura: “Quem é aquele gaúcho, que fez coisas mais de mil, que fez um novo Brasil e não perseguiu ninguém”.
Na virada para os anos 1980, muitos cantores do sertanejo tradicional passaram a se distanciar do regime que antes haviam exaltado. “Os sertanejos, tocados pela crise que vivia a sociedade brasileira e seduzidos pelo discurso simpático da redemocratização, mudaram de lado e passaram a criticar a ditadura. Tornaram-se democratas de última hora”, observa Gustavo Alonso em “Cowboys do asfalto”.
O próprio Teixeirinha, por exemplo, passou a defender o voto direto em uma entrevista ao jornal “Folha da Tarde”, em 1984: “O povo deve ter o direito de escolher, pois se ele errar, nós podemos ser responsabilizados, caso contrário, não fomos nós que escolhemos”, afirmou o cantor, em citação do livro de Alonso.
Nos anos seguintes, a relação entre artistas sertanejos e a política ganhou novos contornos. Se antes o posicionamento se dava principalmente por meio das letras das músicas, durante o governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) essa presença passou a ser mais direta.
Em 1992, o apresentador Gugu Liberato – à frente do programa Sabadão Sertanejo, exibido pelo SBT – levou cerca de 90 pessoas, entre cantores e produtores do gênero, à Casa da Dinda, residência não oficial do então presidente. Lá, as duplas Chitãozinho & Xororó e Leandro & Leonardo cantaram e celebraram o aniversário de Collor, com direito a bolo no formato da bandeira do Brasil.
Anos mais tarde, os sertanejos foram mudando de posicionamento, assim como o agronegócio, cuja hegemonia político-econômica vinha se aprofundando. Em 2002, parte do setor apoiou a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, num movimento que acompanhou a estratégia do petista de construir pontes com o mercado e ampliar alianças.
Com a promessa de estabilidade econômica e incentivo às exportações, Lula passou a ser visto como um aliado pragmático. E a dupla sertaneja Zezé Di Camargo & Luciano emprestaram o sucesso “Meu país” – e todo o seu apoio – à campanha do candidato do PT. Depois de eleito, em um gesto claro de aproximação, o novo mandatário nomeou Roberto Rodrigues, então presidente da Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), como ministro da Agricultura.
Na esteira da ascensão social e a expansão das universidades pelo interior do país promovidas por políticas dos governos petistas, surge o chamado sertanejo universitário. “O sertanejo universitário tinha tudo para ser o grande produto cultural da era Lula”, afirma Alonso à reportagem. Suas músicas refletiam o otimismo que se apoiava no crescimento do país impulsionado pela alta das commodities e por programas sociais que ampliaram o consumo e a sensação de prosperidade.
Nos anos seguintes, a insatisfação social com as gestões do PT cresceu em meio à crise econômica e ao desgaste político. Aproveitando o momento, o agronegócio apoiou as movimentações pelo impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (2011-2016). Ao mesmo tempo, passou a defender, com mais ênfase, propostas de afrouxamento de regras ambientais e a proteção irrestrita à propriedade privada, posicionamentos que encontraram respaldo no discurso do então deputado federal Jair Bolsonaro.
A eleição de Bolsonaro à presidência, em 2018, consolidou essa aproximação. Durante seu governo, representantes do agronegócio ocuparam cargos-chave, como a ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária e ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, homem de confiança do ex-presidente e um dos principais expoentes da UDR (União Democrática Ruralista), entidade linha-dura do agro. A presença dessas figuras no Executivo reforçou pautas do setor, como a flexibilização de regras ambientais, a regularização fundiária e o combate ao que chamavam de “ativismo ambiental”.
Esse movimento foi seguido pelo sertanejo. Além disso, para o historiador Gustavo Alonso, a rejeição simbólica vinda das elites culturais e políticas contribuiu para alimentar um desejo de ruptura, inclusive no campo político. “Sempre voltava esse discurso de que a música sertaneja era pobre, brega, ruim, de que representava o Brasil atrasado. Chega uma hora que esses caras [os sertanejos] cansam”, diz ele à reportagem.
Este ano, Gusttavo Lima, um dos maiores nomes do gênero, deu mais um passo na aproximação entre sertanejo, agronegócio e política. Apoiador de Bolsonaro, anunciou a sua pré-candidatura ao lado do amigo e governador de Goiás Ronaldo Caiado (União Brasil). Dois meses depois, no entanto, anunciou sua desistência.
Na visão dos especialistas ouvidos pela reportagem, embora a sua candidatura não tenha ido para frente, não é à toa que Lima tenha escolhido se associar com uma das mais tradicionais e influentes famílias do Centro-Oeste brasileiro, onde exerce poder político, econômico e simbólico há mais de um século. “É onde a música sertaneja circula, é onde ela consegue a sua fatia de mercado”, afirma o pesquisador Caique Carvalho.