Lc 4,1-13 – Jesus não cai na tentação da magia, nem do poder e nem da idolatria. Artigo de Frei Gilvander Moreira

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07 Março 2025

"Jesus não caiu nas tentações da mágica, nem do poder e nem da idolatria. Atualmente, em muitos países a tentação do fascismo, da extrema-direita, com projetos neonazistas, tenta seduzir a maioria do povo insuflando a ilusão de que por meio de ditadura militar-civil-empresarial será possível superar as injustiças socioambientais, políticas e econômicas que se abatem sobre os povos. Ledo engano! Feliz quem não cair na tentação do fascismo, nem do neonazismo da extrema-direita que ronda o mundo!", escreve Frei Gilvander Moreira, 25-02-2025.

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em filosofia pela UFPR; bacharel em teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; professor de Teologia Bíblica no Serviço de Animação Bíblica – SAB, em Belo Horizonte.

Eis o artigo.

No Evangelho de Lucas, em Lc 4,1-13, está a narrativa das tentações de Jesus com algumas diferenças em relação aos Evangelhos de Mateus (Mt 4,1-11) e de Marcos (Mc 1,12-13). Que tipo de pessoa Jesus se torna para testemunhar um caminho de libertação e salvação dos oprimidos? 

Lucas retoma a ordem do Evangelho de Marcos, interrompida para colocar a genealogia de Jesus, mas conserva de Marcos somente "durante quarenta dias no deserto" e "o tentava". Omite os detalhes com que Marcos termina sua narração global das tentações de Jesus. Em Marcos, a tentação é narrada de forma genérica e abstrata, enquanto que Lucas utiliza materiais provenientes da Fonte Q para especificar a natureza concreta das tentações, igual a Mateus (cf. Mt 4,2b-10).

Talvez alguém pudesse imaginar que, por se tratar de experiência tão íntima do próprio Jesus, os discípulos e as discípulas podem ter sabido disso pelo próprio Jesus que partilhou com eles e elas como foi importante para ele discernir qual a vontade do Pai sobre sua missão e, portanto como ler e interpretar os textos sagrados da Bíblia. De fato, o modo como Lucas conta as tentações as aproxima do que Jesus vai sofrer no Horto das Oliveiras, na noite em que seria preso e entregue aos tribunais para sofrer pena de morte. Lucas termina o seu relato dizendo que o tentador se afastou dele ‘até o tempo oportuno”, que teria sido no Getsemani.

Específicas de Lucas são as seguintes expressões: "cheio do Espírito Santo", "durante todo esse tempo", "poder", "em um instante", o uso invariável do substantivo diabolos (= "diabo") em toda a narração, a motivação que apresenta o diabo em Lc 4,6b e a conclusão do episódio (Lc 4,13). Lucas transformou o plural "pedras", "pães" (Mt 4,3) para sua forma singular; omitiu a "montanha altíssima" de que fala Mt 4,8.

A diferença de ordem das tentações nas versões de Mateus e de Lucas nos leva a perguntar: Qual teria sido a ordem original no Evangelho "Q"? Qual dos evangelistas que alterou a ordem originária? O biblista K. H. Rengstorf sugere que Lucas segue a ordem dos três pedidos no Pai-nosso: 1) "Proclamar que teu nome é santo"; 2) "Que chegue o teu reino"; 3) "Dá-nos cada dia o pão para nossa subsistência". É muito fecunda essa aproximação entre o relato das tentações e os pedidos que Jesus propõe no Pai-nosso.

Mateus teria colocado a tentação da "montanha altíssima" na última posição, porque o tema da "montanha" é particularmente significativo na sua narração evangélica (por exemplo, o discurso da montanha: Mt 5-7; a aparição final de Jesus ressuscitado no monte: Mt 28,16-20; todo o evangelho que tenta apresentar Jesus como o novo Moisés) ou também porque, segundo Mateus, o ponto culminante seria recusar todo culto a Satanás para dedicar-se única e exclusivamente a serviço de Deus.

Mas Lucas preferiu colocar a tentação do pináculo do templo como a última, porque para ele o lugar mais importante está em Jerusalém. Segundo o biblista Bultmann, o episódio é uma criação das primeiras comunidades cristãs para explicar de forma apologética, porque Jesus não fez nenhum milagre/prodígio em proveito próprio nem se acomodou às dominantes ideias messiânicas do seu tempo.

As primeiras comunidades cristãs foram transmitindo diversos relatos de tentação, mas é provável que o relato de Marcos, da tentação, no deserto, constitua a base mais antiga do episódio, em Lucas. É absolutamente impossível provar a realidade histórica destas cenas de tentação, já que não temos o menor fundamento para emitir um juízo histórico. É mais provável que tenha significado simbólico.

As três cenas têm um denominador comum: todas corrigem uma ideia equivocada da missão de Jesus como "Filho" de Deus. O número de "três" tentações indica "toda a vida", “todas as tentações”. As três tentações de Jesus são uma síntese de todas as tentações que Jesus sofreu ao longo de sua missão libertadora.

O biblista Dupont diz que "Jesus fala de uma experiência por ele vivenciada, porém a expressa em linguagem simbólica, perfeitamente apta para impressionar os seus ouvintes". O biblista R. E. Brown chega à seguinte conclusão: "Mateus e Lucas, ou a fonte comum a ambos, não fazem injustiça aos fatos históricos ao concentrar o dramatismo destas cenas em um só episódio e ao desmascarar o verdadeiro autor das tentações, pondo nos seus lábios toda esta carga de sedução". Seja linguagem figurativa ou "dramatismo", o que não pode ser é ingênuo literalismo. Mais do que se tratar de um fato histórico ou não, o sentido teológico é o mais importante.

A narração evangélica apresenta as tentações de Jesus como fenômenos que procedem de fontes externas; não há o mínimo de indício de que provenham de um conflito interior, mas são um símbolo da sedução contida na hostilidade, na oposição e inclusive na recusa ao projeto de Jesus.

As três cenas da tentação descrevem Jesus como Filho de Deus, obediente à vontade do Pai; por isso não cede à sedução de usar seus poderes ou sua autoridade de Filho para uma finalidade distinta da que constitui sua missão. Ao citar três tentações do povo no deserto, conforme o livro do Deuteronômio, faz-se um paralelo entre Jesus e os povos escravizados que se libertaram da escravidão no Egito sob o imperialismo dos faraós. Onde os povos do Primeiro Testamento falharam, Jesus sai vitorioso. E nós podemos vencer as tentações de hoje.

Observe o contexto literário: Lucas inseriu a narrativa das tentações depois da genealogia de Jesus para mostrar que Jesus é humano como qualquer pessoa e, enquanto ser humano, vem de Deus. Lucas tem uma visão dialética da história e trabalha muito com contrastes. Após ter superado as tentações, Lucas mostra Jesus iniciando sua missão pública e apresentando seu programa de libertação integral (Lc 4,16-19) na pequena sinagoga de Nazaré. Como irá colocar em prática esse programa? As tentações são propostas que Jesus rejeitou, porque por meio delas não é possível libertar os oprimidos, pois mágica, poder e idolatria não criam condições de vida e liberdade para todos e todas.

Segundo Lucas, Jesus foi tentado durante quarenta dias, número simbólico que lembra o tempo em que Moisés ficou na montanha (Ex 34,28), sem comer nem beber, a fim de escrever, na intimidade com Deus, o Decálogo da aliança para a nova sociedade. Lembra também o tempo em que o profeta Elias permaneceu no monte Horeb, depois do qual desceu para superar a idolatria imposta pelo rei Acab e pela rainha Jezabel e transformar completamente a sociedade do ponto de vista político e religioso (cf. 1Rs 19,8). Lembra, ainda, os quarenta anos dos hebreus no deserto, com suas tentações de voltar ao Egito, mesmo que fosse para sobreviver como escravo, desde que de barriga cheia, mas sob o imperialismo que massacre de inúmeras formas.

Na Primeira tentação (Lc 4,3-4) — “Se és Filho de Deus, mande que esta pedra se transforme em pão” —, Jesus não aceita se tornar o Messias da acumulação. O diabo é aquele que tem um projeto capaz de perverter o projeto de Deus e de Jesus. Ele quer um deus que seja garantia de prosperidade para uma minoria, um deus de palanque e de status. Jesus recusa ser o messias da abundância porque o projeto de Deus vai além de promessas eleitoreiras: "Não só de pão vive a pessoa humana" (Lc 4,4; cf. Dt 8,3). O texto do Deuteronômio fala do tempo em que o povo vivia no deserto e se contentava em sobreviver assim desde que tivesse pão para comer. A palavra de Javé, porém, tinha objetivos mais amplos: conduzir todos os povos escravizados à plena posse da terra para terem vida e dignidade. Jesus recusa-se a ser o messias da abundância para si, pois sua proposta é a partilha (Lc 11,41) e pão para todos (Lc 9,12-17). Dt 8,3 faz parte de Dt 8,1-6; recorda quando os povos oprimidos, ao marchar no deserto, murmuravam contra Moisés e Arão (Ex 16; Nm 11,7-8). A tentação de abrir mão da caminhada libertadora precisa ser superada. Se parar de caminhar e só pensar em comer, a escravidão volta. O Pe. Alfredinho, da Fraternidade do Servo Sofredor, gostava de dizer: “Os ricos se salvarão quando aprenderem a passar fome”.

Na segunda tentação (Lc 4,5-8) — “Eu te darei todo esse poder com glória..., se te prostrares diante de mim” —, Jesus não aceita se tornar o Messias do poder. Jesus é tentado a resolver o problema dos oprimidos tornando-se chefe político de estruturas injustas. Refutou com veemência Jesus: “Adorarás ao Senhor teu Deus, e só a Ele prestarás culto” (Lc 4,8 cita Dt 6,13). Todo tipo de idolatria oprime e mata de muitas formas.

O diabo faz exegese no seu modo de ler a Bíblia: descobrir nela a motivação para o poder e o sucesso messiânico. O evangelho diz que Jesus responde ao diabo com outro modo de ler a Bíblia e a experiência histórica dos povos que lutam por libertação, e esse é o da inserção amorosa e do serviço despojado do Servo Sofredor que vai até a cruz, doando a vida a todos/as, primordialmente aos injustiçados/as. A citação completa deste versículo do Deuteronômio mostra claramente que absolutizar-se no poder é repetir a ação opressora dos faraós.

São dois modos de ler e interpretar a Bíblia que até hoje existem entre nós nas próprias Igrejas cristãs. Quem lê a Bíblia ou os evangelhos para legitimar pretensões de poder eclesiástico, sagrado e/ou político, faz o mesmo tipo de exegese do diabo no relato das tentações de Jesus.

A mosca azul do poder corrompe muitas pessoas. Jesus tem outros projetos mediante os quais testemunhará um caminho de libertação dos oprimidos. No Evangelho de Lucas, uma de suas principais características é o poder serviço (cf. Lc 22,27).

Na terceira tentação (Lc 4,9-12) — Em Jerusalém, no pináculo do Templo, “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo ...” , Jesus não aceitou se tornar o Messias do prestígio, do status. O diabo quer livrar Jesus da morte. Desta vez cita a Bíblia (Sl 91,11-12). Mas ser messias do prestígio constitui idolatria. "O diabo afastou-se para voltar no tempo oportuno" (Lc 4,13). Este "tempo oportuno" é o fim da prática libertadora de Jesus, onde ele vai enfrentar os chefes dos sacerdotes, doutores da Lei e anciãos (cf. Lc 20,1). Eles personificam as tentações que Jesus venceu: creem que Deus lhes garante a prosperidade. Acham que é o suporte político para as estruturas injustas que defendem e promovem; vivem envolvidos pela busca do prestígio. Jesus vai enfrentá-los. É sua última tentação. Eles o matam, mas a ressurreição é a prova de que o projeto de Deus, mistério de infinito amor, é mais forte que as forças de morte.

Em Lc 22,31-32, Jesus fala aos discípulos que Satanás o instigava para peneirar os discípulos como trigo. Lc 22,31-32 mais Lc 4,13 ("para voltar em tempo oportuno") nos dão elementos textuais para respaldar a tese de que Jesus foi tentado durante toda sua vida (principalmente no seu ministério público) até no momento da morte, e não somente em "40 dias" antes de entrar em campo para a missão. Para sermos filhos de Deus precisamos doar nossa vida aos injustiçados/as de ponta a ponta, a vida inteira.

As tentativas de estabelecer uma conexão entre a narração das tentações de Jesus, de Lucas, com 1 Jo 2,16, onde se menciona "a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da vida", são simplesmente erradas. Também é equivocada a interpretação de que a vitória de Jesus se deve à sua condição de "sumo-sacerdote".

Jesus vence com a ferramenta "da palavra de Deus" (Ef 6,17), pois cita sempre uma passagem do Primeiro Testamento para inspirar um projeto genuinamente humano-divino.

Lucas apresenta as três tentações em uma ordem diferente do Evangelho de Mateus. Este inicia apresentando a tentação da transformação de pedras em pão (primeira tentação), do jogar-se do pináculo do templo e ser salvo pelos anjos (segunda tentação) e a tentação de contemplar em uma alta montanha os reinos com todo o esplendor (terceira tentação) (Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13).

No evangelho de Lucas, a primeira tentação se dá no deserto, onde Jesus é tentado a transformar pedra em pão. A segunda acontece na montanha, em que contempla os reinos. A terceira, no pináculo do templo, onde Jesus é tentado a saltar dali para ser salvo pelos anjos. Há uma progressão nas tentações. O clímax do confronto entre Satanás e Jesus aconteceu precisamente em Jerusalém, onde acontecerá a execução do Justo e Inocente com a pena de morte, a pena capital. Assim, a cena na qual Jesus se encontra sobre o pináculo da “casa de seu Pai” se torna muito eloquente, porque no Evangelho de Lucas, “Jerusalém” é o ponto de chegada de Jesus para realizar a missão (Lc 17,11; Lc 19,28-38).

Para as primeiras comunidades cristãs, “Jerusalém” é o ponto de partida para a missão (Lc 24,52). Jerusalém tem uma importância particular, pois é a cidade do “destino” final de Jesus e de onde se irradia a libertação-salvação para todo o gênero humano e toda a Criação. Jesus caminha para Jerusalém como se buscasse alcançar uma meta (Lc 13,22). Lucas valoriza “Jerusalém” não somente como lugar físico, mas primordialmente como lugar teológico que representa a “cidade de Davi”, o monte Sião, de onde o Deus da vida legisla. Lucas se refere a “Jerusalém” com o termo grego Ierousalëm, designação de Jerusalém não como lugar geográfico, mas de lugar sagrado do judaísmo e, talvez, como retornando a compreensão de que Jerusalém simboliza a aliança de Deus com os povos oprimidos (a nova Jerusalém do Apocalipse 21 e 22). Aliança agora estendida e oferecida a toda a humanidade e até a todo o universo, onde se pode ouvir a voz divina que diz “Faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).

Enfim, Jesus não caiu nas tentações da mágica, nem do poder e nem da idolatria. Atualmente, em muitos países a tentação do fascismo, da extrema-direita, com projetos neonazistas, tenta seduzir a maioria do povo insuflando a ilusão de que por meio de ditadura militar-civil-empresarial será possível superar as injustiças socioambientais, políticas e econômicas que se abatem sobre os povos. Ledo engano! Feliz quem não cair na tentação do fascismo, nem do neonazismo da extrema-direita que ronda o mundo!

Obs.: As videorreportagens nos links abaixo atualizam o assunto tratado, acima.

1 - “POVO DEU UM PASSO À FRENTE E O MAR VERMELHO SE ABRIU”, Frei GILVANDER, NO QUILOMBO CAMPO GRANDE/MST



2 - PREFEITO DE ARAÇUAÍ/MG com PL PARA AMPUTAR APA CHAPADA DO LAGOÃO PARA ABRIR ESPAÇO PARA MINERADORAS

3 - INJUSTIÇAS SOCIOAMBIENTAIS BRUTAS EM MINAS GERAIS: Frei Gilvander entrevista Dr. Elcio Pacheco, adv

Notas

[1] Fonte “Q” é um Evangelho perdido com ditos e sentenças proferidas por Jesus. Conclui-se a existência deste Evangelho pela existência de passagens semelhantes nos evangelhos de Mateus e Lucas, mas que não existem no Evangelho de Marcos.

[2] Cf. J.DUPONT, Les tentations de Jésus au désert, pp. 43-72.

[3] Das evangelium nack Lukas, p. 63.

[4] Cf. J.DUPONT, Les tentations de Jésus au désert, pp. 113-115.

[5] Cf. R. E. BROWN, CBQ 23 (1961), p. 155.

[6] Dt 6,13 faz parte de Dt 6,1-15 e recorda os riscos que exercem os cultos cananeus (cf. Dt 12,30-31; Ex 23,23-33). As rebeliões do povo contra Moisés (e Deus) é um dos temas fortes do Primeiro Testamento: cf. 2Rs 16,3-4; 21,5-6; Jr 7,31; Sal 106 e etc.).

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