“Não permitas que eu me veja separado”. Um poema para romper a incapacidade de se comover diante de Deus, sua criação e os outros seres humanos

Para Tolstói, Plantadores de batatas, de Millet, é, entre as pinturas modernas, um exemplo da “mais elevada arte religiosa oriunda do amor a Deus e ao próximo”

Plantadores de batatas (1861), de Jean-François Millet (1814-1875) | Reprodução: Wikipedia

06 Março 2025

“Nesta Quarta-feira de Cinzas, quando a Igreja celebra o início da Quaresma, novo tempo litúrgico que nos conduzirá à Paixão do Senhor, mas, fundamentalmente, à sua Ressurreição, e canta, com o salmista, 'Misericórdia, ó Senhor, pois pecamos!', vale a pena ler ou reler o poema de T.S. Eliot, cujo título, Ash-Wednesday [Quarta-feira de Cinzas], sugere ser um poema de conversão. Talvez ele nos ajude a romper a incapacidade de se comover diante de Deus, sua criação e os outros seres humanos.”

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos. 

Nos vinte capítulos que dão forma a O que é arte?, Leon Tolstói apresenta as principais respostas filosóficas dada à questão até o século XIX. À media que expõe posições tão diversas, sustentadas sob pilares distintos e, por vezes, radicalmente opostos, conduz o leitor a novas interpelações que decorrem da questão principal e a ela retornam.

O escritor russo entende a arte como “um meio de comunhão entre as pessoas”. Mais precisamente, a define como “a atividade humana que consiste em um homem conscientemente transmitir a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que ele vivenciou, e esses outros serem contagiados por esses sentimentos, experimentando-os também”. Para ele, a arte deveria ter um propósito, qual seja, “transferir do campo da razão para o do sentimento a verdade de que o bem-estar das pessoas reside na união e em estabelecer, em lugar da violência que hoje impera, o Reino de Deus — isto é, de amor —, que todos consideramos o mais alto objetivo da vida humana”. 

Na Carta sobre o papel da literatura na educação, publicada pelo Papa Francisco em 17 de julho do ano passado, o pontífice também alude à passagem do campo da razão para o do sentimento, ao mencionar o problema da fé nos dias de hoje. O problema da fé na nossa época, diz, “não é, em primeiro lugar, o de acreditar mais ou acreditar menos em proposições doutrinais. Liga-se antes à incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos”. Trata-se, em alguma medida, acrescenta, da “crise religiosa moderna” descrita por T.S. Eliot, poeta inglês que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1948, como “uma generalizada ‘incapacidade emocional’”. 

Como Tolstói, Francisco reconhece “o valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal”. Por isso, assegura, “com grande razão, o Concílio Vaticano II afirma que ‘a literatura e as artes [...] procuram dar expressão à natureza do homem’ e ‘dar a conhecer suas misérias e alegrias, necessidades e energias’. Na verdade, a literatura inspira-se na quotidianeidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como ‘a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida’”.

A literatura, segundo o pontífice, pode ser um instrumento para nos auxiliar a passar do campo da razão para o do sentimento. “À medida que sentimos vestígios do nosso mundo interior no meio dessas histórias, tornamo-nos mais sensíveis às experiências dos outros, saímos de nós mesmos para entrar nas suas profundezas, conseguimos compreender um pouco mais suas lutas e desejos, vemos a realidade com seus olhos e acabamos por nos tornar companheiros de viagem”, sublinha. 

Na literatura, pontua, “cada um encontra seu próprio caminho”. Para Tolstói, no entanto, somente dois tipos de artes são boas.

A primeira delas é a que o autor denomina de arte religiosa. Ou seja, aquela “que transmite sentimentos oriundos de consciência religiosa da posição do homem no mundo, com relação a Deus e ao próximo”. Na literatura, esse tipo de arte é expressa, segundo ele, nas obras "Os bandoleiros", de Schiller, "Pobre gente" e "Recordações da casa dos mortos", de Dostoiévski, "Os miseráveis", de Victor Hugo, os contos, histórias e romances de Dickens, como "História de duas cidades" e "Os carrilhões", "A cabana do pai Tomás", de Harriet Beecher Stowe e, por fim, "Adam Bede", de George Eliot.

A segunda arte digna deste nome na literatura é o que Tolstói chama de “arte universal”. Ela recebe esse título porque “transmite os sentimentos cotidianos e simples da vida, da forma como são acessíveis a todas as pessoas do mundo”. Da produção literária moderna, o autor inclui nessa categoria Dom Quixote, as comédias de Molière, David Copperfield e "As aventuras de M. Pickwick", de Dickens, as histórias de Gógol e de Pushkin, e alguns dos escritos de Maupassant. Todas essas, contudo, ajuiza, “são pobres de conteúdo se comparadas com exemplos da arte universal antiga, como a história de José e seus irmãos”. A narrativa, encontrada no livro bíblico de Gênesis, é resumida e comentada pelo autor do seguinte modo: 

“Que os irmãos de José, com ciúmes do pai, o vendessem como escravo; que a esposa de Putifar quisesse seduzir o jovem; que este chegasse a uma alta posição, sentisse pena dos irmãos, do favorito, Benjamim, e todos os outros — todos esses sentimentos são acessíveis para um camponês russo, um chinês, um africano, uma criança, um velho, um homem culto ou inculto; e é tudo escrito com tal sobriedade, é tão isento de detalhes, que a história pode ser adaptada para os mais diversos meios e continuar compreensível e tocante para todos. Na narrativa de José, não havia necessidade de descrever detalhadamente, como se faz hoje, as suas roupas sujas de sangue, a casa e as roupas de Jacó, a pose e a vestimenta da esposa de Putifar, quando, ajustando um bracelete no braço esquerdo, ela disse ‘Venha aqui’, e assim por diante, porque o sentimento contido nessa história é tão forte que todos os detalhes, exceto os mais necessários — por exemplo, que José entrou na sala ao lado para chorar —, são supérfluos e somente colocariam obstáculos à transmissão dos sentimentos. Dessa maneira, essa história toca as pessoas de todas as nações, classes e idades; chegou até nós e viverá anda por milhares de anos. Mas tire os detalhes dos melhores romances do nosso tempo e o que resta?”

Nesta Quarta-feira de Cinzas, quando a Igreja celebra o início da Quaresma, novo tempo litúrgico que nos conduzirá à Paixão do Senhor e, fundamentalmente, à sua Ressurreição, e canta, com o salmista, “Misericórdia, ó Senhor, pois pecamos!”, vale a pena ler ou reler o poema de T.S. Eliot, cujo título, Ash-Wednesday [Quarta-feira de Cinzas], sugere ser um poema de conversão. Talvez ele nos ajude a romper a incapacidade de se comover diante de Deus, sua criação e os outros seres humanos. Eis uma estrofe:

“Não permitas que nos escarneçamos com falsidade
Mostra como cuidar e não cuidar
Mostra-nos a imobilidade
Mesmo em meio a essas rochas
Nossa paz em Tua vontade
E mesmo em meio a essas rochas
Irmã, mãe
E espírito do rio, espírito do mar maior, 
Não permitas que eu me veja separado
E chegue a Ti o meu clamor.”

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