A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 5º Domingo de do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lc. 5,1-11.
“... lançai vossas redes para a pesca em águas mais profundas” (Lc 5,4)
Neste 5º. dom. do Tempo Comum a liturgia nos situa no início do cap. 5 de S. Lucas; encontramo-nos diante de um episódio com múltiplos atos: a multidão que se comprime em torno a Jesus para escutar a Palavra de Deus; o ensinamento a partir da barca; o convite a remar mar adentro e lançar as redes; a pesca surpreendente; a confissão da indignidade de Pedro; o chamado dos discípulos e o imediato seguimento.
O relato não nos diz sobre o que Jesus falava, mas o que segue nos dá a verdadeira pista para descobrir do que se trata; tal relato abre um horizonte novo na vida das pessoas e nos convida a conhecer Jesus mais profundamente e a conhecer-nos a nós mesmos; só assim o seguimento se revela mais inspirado.
No evangelho deste domingo Lucas dá um destaque ao chamado dos primeiros discípulos. Marcos e Mateus situam este chamado no início da vida pública de Jesus. Lucas o narra de uma forma mais compreensível, mais lógica, depois de apresentar Jesus como Mestre nas sinagogas, como o libertador de um endemoniado, como presença terapêutica na cura da sogra de Pedro e dos doentes com diversas enfermidades. Assim, ele nos transmite que o seguimento significa identificação com Jesus e o prolongamento de suas obras.
A primeira parte do relato nos convida a contemplar Jesus ensinando, junto ao lago de Genesaré. Diante da crescente multidão, sobe à barca de Simão e lhe pede para que a afastasse um pouco da terra. Sua presença muda o significado da barca: não é só instrumento de pesca, mas torna-se o “novo púlpito” a partir de onde Ele passa a ter uma visão mais ampla da multidão que o escuta. Pastoral nos espaços amplos ou no descampado, à margem da “sinagoga”, fora dos espaços sagrados.
Jesus se deixa conduzir pela criatividade do Espírito, que rompe os lugares estreitos e controlados. Seu “templo” é a vida, o lugar cotidiano das pessoas. Ali, o anúncio da Boa Notícia do Reino encontra muito mais ressonância no coração das pessoas, sobretudo aquelas que não tinham “lugar” nos templos.
A segunda parte do relato descreve a pesca abundante e surpreendente; os pescadores retornam ao trabalho por iniciativa de Jesus: “remai mar adentro e lançai vossas redes para a pesca” (literalmente: “voltai para a profundidade e fazei descer vossas redes para a pesca”)
A tradução oficial da CNBB diz: “Avançai mais para o fundo, e ali lançai vossas redes para a pesca”, destacando o esforço pessoal dos pescadores. Pedro e seus companheiros revelam-se ser pessoas “arrisca-das”, inclusive ousados, por acreditarem em Jesus na realização de sua tarefa. Jesus lhes pede um novo esforço, os leva a novos mares, e eles assumem a atividade sem resistência.
No fundo, eram homens “aventados” (com o sopro do bom Espírito), pois foram capazes da arriscar, lançando as redes em um horário impróprio (de manhã); sabemos que os pescadores armam as redes ao cair da tarde e as recolhe na manhã do dia seguinte.
“Nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”. O fato de que a pesca abundante seja precedida de um total fracasso, tem um significado existencial muito profundo. Quem nunca teve a sensação de ter trabalhado em vão durante décadas? Só teremos êxito quando nosso trabalho se situa no horizonte do sentido: para quem trabalhamos? É para o Reino? É para o bem dos outros...? Isto quer dizer que devemos agir de acordo com a atitude vital de Jesus, para além de nossas posições raquíticas e rasteiras. O que o relato nos pede é algo muito diferente: deixar Jesus Cristo entrar na barca de nossa vida. “Confiando em tua palavra, lançarei as redes”.
Simão já havia presenciado a cura de sua sogra. Sua confiança em Jesus aumenta com a quantidade de peixes que apanharam. A pesca abundante, ao meio-dia, depois do fracasso noturno, é um presente, um sinal da benção divina. Pedro não se considera digno de tal benção, mas reconhece a força de Jesus que tivera a iniciava de mover os pescadores a uma nova tentativa de pesca.
A reação dos pescadores é de assombro e reconhecimento que, talvez, não mereciam tanto. Mesmo assim, superado o primeiro impacto emocional, eles encontram um sentido novo e uma direção diferente para avançar na vida. Jesus os chama explicitamente – “eu vos farei pescadores do humano” – ou seja, “eu os convido a que me ajudeis a situar as pessoas em uma posição diferente para recuperar a verdadeira essência da vida”.
Lucas usa a expressão “dsogrón”: reanimador ou despertador de pessoas. Jesus reanima, desperta aqueles rudes pescadores com seu Espírito; tira-os de sua cotidianidade repetitiva, sem criatividade, sem sonhos maiores; abre os olhos deles e os reaviva para prolongar Seu caminho, ou seja, dedicarem-se a despertar o melhor em cada pessoa.
O apelo a lançar “redes em águas mais profundas” é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior. Jesus convida aqueles pescadores, instalados numa maneira tradicional de pescar, a serem criativos na arte de lançar redes: sair da rotina, buscar o novo e o diferente nas profundezas do mar...
Isso dá medo, mas os impulsiona a se deslocarem para o desconhecido, saírem das margens conhecidas, seguras e mergulharem na aventura do próprio Jesus.
Jesus sempre se revelou como o homem integrado que, livremente, teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir as ricas possibilidades, recursos, criatividades, inspirações... Movido pelo Espírito, Ele trouxe o “novo” das profundezas do seu próprio ser: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...
Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Ele despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas. Com sua sensibilidade, Jesus foi capaz de tocar naquilo que as pessoas mais amavam (mundo das esperanças, impulsos para uma vida plena...) e o potencializou.
No caso dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior, Jesus os desafiou a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.
“Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada um.
Debaixo das cinzas do cotidiano, encontra-se as brasas da paixão, dos desejos mobilizadores, dos sonhos...
Do mar da Galiléia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desencadeia em todos nós. Ele nos desafia a descer no mais profundo no oceano do nosso coração e ali buscar o humano que está escondido: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência...
Para isso é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós. Alargar nossos espaços interiores, sermos mais ousados e sonhadores, romper com o “normótico” e tradicional, ativar e des-velar o que está escondido. Assim, com nossa presença humanizadora, seremos capazes de pescar o “humano” que também está presente no outro.
Sejamos pessoas que, saindo ao campo da vida, tenhamos a oportunidade de também tornar melhores os outros com quem nos encontramos!