Por: MpvM | 24 Janeiro 2020
"Jesus é apresentado como a “luz que surge entre as trevas”, a possibilidade de mudança, de esperança de vida. O salmo deste 3º domingo do tempo comum justamente reafirma Jesus Cristo como luz e salvação. Fazer renascer esta esperança, levar a luz a todos e o mundo à plenitude é a sua missão e, para executá-la, convocou primeiramente dois pares de irmãos pescadores que trabalhavam lançando redes e as restaurando quando necessário."
A reflexão é de Maria de Lourdes Norberto. Ela possui graduação em Teologia (2014), graduação em Letras (1976), graduação em Comunicação Social (1980) e mestrado em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, onde atualmente é doutoranda em Teologia. É membro fundador do coletivo Teo-mulher.
Referências bíblicas
1ª Leitura - Is 8,23b-9,3
Salmo - Sl 26,1.4.13-14 (R.1a.1c)
2ª Leitura - 1Cor 1,10-13.17
Evangelho - Mt 4,12-23
Mateus (Mt 4,12-23), no evangelho deste domingo, narra o início da vida pública de Jesus e nos deixa perceber que a narrativa se passa em tempos difíceis, em que prevalece a injustiça e o mal, e onde o Reino de Deus não acontece. Naquela época, a Galileia era ocupada por pessoas simples, sem nenhuma influência, muitas vezes consideradas impuras. A decisão de Jesus de começar sua missão numa região tão remota e esquecida, longe do Templo e da hierarquia religiosa da época, já aponta para o tipo de missão a que estava se propondo. A Galileia era uma região de encruzilhada, perto de Cafarnaum, uma cidade aberta ao mar e consequentemente a todos os povos. Embora só tenha pregado entre os seus, a menção explícita à “Galileia de pagãos” mostra que, para esse evangelista, a proposta de salvação de Jesus abria espaço para todos, inclusive impuros e pagãos.
Jesus é apresentado como a “luz que surge entre as trevas”, a possibilidade de mudança, de esperança de vida. O salmo (Sl 26,1.4.13-14) deste 3º domingo do tempo comum justamente reafirma Jesus Cristo como luz e salvação. Fazer renascer esta esperança, levar a luz a todos e o mundo à plenitude é a sua missão e, para executá-la, convocou primeiramente dois pares de irmãos pescadores que trabalhavam lançando redes e as restaurando quando necessário.
Esta preferência por uma região esquecida como espaço de missão e a escolha desses dois pares de irmãos ligados à pesca e às redes como seus primeiros seguidores nos fazem pensar em questões prementes do presente e podem nos ajudar na atualização da nossa missão de cristãos e cristãs hoje. Vivemos num mundo altamente conectado por redes de todo tipo, principalmente virtuais, mas, apesar disso, nunca a humanidade vivenciou com tanta intensidade as consequências da carência de fraternidade e solidariedade. A solidão e o desemparo são uma doença do mundo moderno e fazem vítimas em todos os espaços sociais.
O mundo em que vivemos, apesar de conectado, é também um mundo fragmentado. Os grandes projetos sociais e humanos da modernidade se diluíram na chamada pós-modernidade na qual estamos imersos. Tudo é fluído e as referências tradicionais se dissolvem diante de nossos olhos. Em consequência, muitos vivem protegidos em sua zona de conforto, numa postura de autodefesa frente a tanta incerteza. Com isto, perdem a percepção da sua própria humanidade como parte de uma totalidade e como ponto de referência importante numa intrincada rede de relações humanas. Quando isso acontece, também se perde o próprio sentido da vida enquanto experiência de fraternidade e solidariedade.
A missão de quem hoje pretende se comprometer com o seguimento de Jesus é, com certeza, ser também pescador ou pescadora de homens e mulheres que estão às margens para, com suas redes, trazê-los de volta ao convívio dos demais. Apesar de conectada pelas muitas redes virtuais existentes, grande parte da população do planeta não está realmente vivendo em rede. Cabe a nós, cristãos e cristãs, construirmos redes reais que nos permitam entrar em contato direto com as pessoas e trazê-las, tanto quanto possível, à proximidade com as demais, associando-as ao nosso caminho em direção à vida plena, que é o desejo de Jesus e o projeto do Pai. Também precisamos estar sempre preparados para reparar nossas redes, que muitas vezes se rompem e deixam escapar os menores, os mais despercebidos, para que assim ninguém se perca.
Jesus, com sua mensagem profundamente inclusiva, escolheu viver entre os excluídos e desprezados pela sociedade. Em sua época, seu olhar especial se dirigiu aos pobres, às mulheres em situação de risco, como as viúvas e mesmo as prostitutas, aos órfãos, aos doentes e ao estrangeiro. Hoje, no seguimento de Cristo, devemos ter esse olhar especial para os excluídos de nosso tempo, por exemplo, o economicamente empobrecido e o miserável, ambos frutos de um sistema injusto; qualquer pessoa desprotegida e excluída por questões de gênero, tais como as mulheres e os LGBTs, e por questões de raça, como os afrodescendentes, os indígenas, e outros mais, todos alvos fáceis da violência e da discriminação. Não se pode esquecer, ainda, da imensa massa humana de refugiados e migrantes que buscam espaço para sobreviver em paz e lutar por uma vida digna, amparada por um sistema justo.
Foi entre estas pessoas simples que Jesus percebeu que era possível fazer surgir uma proposta de vida de acordo com o projeto do Pai. Ali, percebeu a possibilidade de uma verdadeira mudança de rota na história da humanidade. Foi por isto que viveu entre eles quase toda sua vida pregando a Boa-Nova do Reino. Assim sendo, é também entre eles que devemos procurar combustível para um novo acerto de rota na nossa história. As mudanças verdadeiras que se mantêm de forma duradoura não são provenientes do alto e nem impostas à força. As mudanças verdadeiras acontecem nas entranhas da história, a partir dos de baixo e daqueles que se identificam e se solidarizam com eles, apoiando-os numa luta pacífica, mas contundente, por justiça e dignidade.
Sair de nossa segurança, de nossos medos, de nossos comportamentos fora da data de validade, de nossas práticas sociais e religiosas arcaicas não é fácil. Mas por um espírito de abertura às necessidades do próximo, alimentados por uma vida comunitária eclesial sadia e de oração madura, podemos resgatar a coragem, o espírito de luta, o desejo de participação e o amor consciente ao próximo. Libertos da segurança cômoda que nos limita, redescobriremos o prazer de viver em comunidade universal e inclusiva, fazendo assim acontecer o Reino de Deus, pelo qual Cristo viveu e lutou até as últimas consequências.
A primeira leitura (Is 8,23b-9,3) deste domingo retoma a situação inicial apresentada por Mateus. Muitos séculos antes de Cristo, duas tribos de Israel – Zabulon e Neftali – foram deportadas para a Assíria, e a Galileia foi ocupada por pagãos. Daí a expressão “Galileia dos pagãos” usada por Mateus. Naquele tempo, o profeta Isaias anunciou que o novo rei dos judeus poderia ser uma luz para as populações oprimidas. Com Jesus, a profecia se confirmou de forma plena. Esta consciência já presente no Antigo Testamento, de que o Messias seria a libertação dos oprimidos, ainda hoje deve nos comprometer contra toda forma de opressão – principalmente gerada pela injustiça estrutural da sociedade e pelo forte egoísmo que domina o mundo.
Na segunda leitura (1Cor 1,10-13.17), a partir do conflito entre duas comunidades, Paulo exorta os cristãos à vivência da fraternidade como característica fundamental dos que pretendem seguir o caminho trilhado por Jesus. Neste sentido, Paulo reforça a ideia de Jesus, que escolheu inicialmente pares de irmãos para segui-lo, para que esses, com espírito fraterno, congregassem mais e mais homens e mulheres, numa dinâmica em que as habilidades pessoais pouco importam e sim o amor ao próximo em Cristo.
Enfim, as leituras deste domingo são uma boa oportunidade para nos questionarmos acerca de nossa missão como cristãos e cristãs e percebermos até que ponto estamos, com nossas vidas, realmente levando ao mundo o Cristo dos evangelhos, aquele que levou luz às trevas, lutou para que todos tivessem vida em abundância e dedicou um olhar especial àqueles que ninguém enxergava.
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3º Domingo do Tempo Comum - Ano A - A boa notícia do Reino desde os mais pobres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU