10 Dezembro 2024
"Todos nós temos um lado apolíneo e outro, dionisíaco. Apolo e Dionísio eram filhos do mesmo pai: Zeus. O primeiro era o deus do bom senso e da razão; o segundo, da loucura e da transgressão. Manter o equilíbrio dessa polaridade é sinal de maturidade. Contudo, nem sempre é fácil casar sonho e realidade, delírio e sapiência, como Dom Quixote", escreve Frei Betto, escritor, autor do romance sobre a Amazônia “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.
Observo com frequência pessoas intelectualmente eruditas, socialmente brilhantes, dotadas de insignes títulos acadêmicos e, na vida privada, irritadiças, destemperadas, emocionalmente infantis. Não suportam críticas e mendigam elogios. Nelas há uma nítida divisão (e conflito) entre o racional e o emocional.
Ao falarem a uma plateia, são magistrais, expressam-se com lógica, arrancam do fundo da memória consistentes citações. Mas, no espaço privado, parecem negar todo o discurso público: tratam os subalternos com indiferença ou superioridade, jamais indagam o nome do taxista ou do garçom, não têm a menor disposição para trocar um minuto de conversa com a faxineira ou a copeira do espaço de trabalho.
E muitas se declaram cristãs, discípulas de Jesus e, no entanto, cegas para a dignidade de uma pessoa em situação de rua. Elas encarnam o ditado: “Façam o que digo, não o que faço”.
Recebi no parlatório do convento a filha de uma senhora endinheirada. Veio contar que a mãe, ao se aprontar para a inauguração de uma galeria de arte, não encontrou sua corrente de ouro com um pingente de esmeralda. Após intensa procura pela casa, pressionou a empregada doméstica, há oito anos na casa, para devolver a joia. A mulher negou o roubo, mas todo o seu choro não foi suficiente para convencer a patroa de sua inocência. Sob uma chuvarada de ofensas, entre as quais abundaram xingamentos racistas, a faxineira foi demitida após a ameaça de que a patroa enviaria a polícia à casa dela. A patroa em questão é professora emérita de prestigiosa universidade paulista.
Dia seguinte, a mãe contou o episódio à filha que acabara de retornar da Argentina. Perplexa, a moça reagiu: “Mãe, o colar está comigo. Não se lembra que me emprestou para eu ir ao casamento de fulana?”
Freud dizia que “não somos senhores em nossa própria casa”. Referia-se à impotência do eu em relação às pulsões. Se o consciente é racional, o inconsciente é pulsional, movido a emoções.
Não é fácil manter o equilíbrio entre razão e emoção. A razão habita o território do intelecto; a emoção, o do afeto. A razão pode me dizer que devo economizar dinheiro para gastos futuros. A emoção me induz a comprar algo que me onera, embora recale meu status social. O desafio é evitar que a razão leve a decisões desumanas e que a emoção provoque impulsos de consequências nefastas. O ideal é que a razão conduza a emoção, assim como o dono controla o seu cão.
Todos nós temos um lado apolíneo e outro, dionisíaco. Apolo e Dionísio eram filhos do mesmo pai: Zeus. O primeiro era o deus do bom senso e da razão; o segundo, da loucura e da transgressão. Manter o equilíbrio dessa polaridade é sinal de maturidade. Contudo, nem sempre é fácil casar sonho e realidade, delírio e sapiência, como Dom Quixote.
Para pessoas excessivamente emotivas que desabafam comigo aconselho a meditação. Conter a imaginação, segurar os impulsos, tentar ver a situação pela ótica do outro, sempre ajuda a não perder a serenidade e o equilíbrio. Já aos excessivamente racionalistas sugiro a música e, em especial, a dança. Dançar é fazer poesia com o corpo.
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Duas pessoas em uma. Artigo de Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU