“A quimera transumanista. Implicações éticas sobre os avanços biológicos na era da IA” é o tema da videoconferência do teólogo Scott Hurd, vice-presidente de desenvolvimento de liderança da Catholic Charities USA e presidente do conselho do Catholic Climate Covenant, no IHU
O fracasso das ideologias dos séculos XIX e XX não representa o seu fim. Pelo contrário, outras surgem com a finalidade de reafirmá-las, transvestidas de uma nova camada, a tecnologia e, mais precisamente, o uso indiscriminado da Inteligência Artificial – IA. Um exemplo é o transumanismo, movimento multidisciplinar que visa, com a introdução da IA, transformar a condição humana.
O transumanismo, como qualquer outra ideologia, tem financiadores, adeptos e críticos, cujas reflexões apontam para pontos divergentes acerca das vantagens e dos riscos que a hibridização entre mente e corpo humano com as tecnologias digitais e a IA está gerando e poderá gerar no futuro.
Albert Cortina, urbanista e jurista catalão, autor de ¡DESPERTAD! Transhumanismo y Nuevo Orden Mundial (Pamplona: Universidad de Navarra, 2021), tem explicado as particularidades envolvidas no desenvolvimento do transumanismo em diversas obras e artigos sobre o tema. “Esta nova ideologia tem muitas facetas e se espalha a partir de vários ambientes: centros de pesquisa avançados como a Nasa, algumas universidades, os gurus do Vale do Silício, até se infiltrar no modo de pensar comum, seguindo o filão da nova utopia: que o ser humano pode ser liberado do trabalho, mas sobretudo dos seus limites naturais. Que a tecnologia pode suprimir o sofrimento, afastar a morte, aperfeiçoar o organismo e o seu desempenho, dar aos indivíduos o direito de decidir sobre o seu próprio modo de ser e sobre o seu próprio destino. Ser mais forte, alcançar a imortalidade, transferir-se para a memória do computador: estas são algumas das perspectivas futuras”, resumiu em Quando o transumano molda o mundo.
Os atores envolvidos na defesa do transumanismo não têm uma visão hegemônica de finalidade, apesar de compartilharem de uma base fundamental comum. Os argumentos variam conforme as intenções envolvidas no processo. “Há quem siga a tendência pragmática da eugenia, quem busque a ideia da hibridação entre ser humano e máquina, quem o veja como uma nova mística e imagine que pode criar o super-homem, superinteligente, capaz de tudo. Trata-se da velha abordagem materialista temperada com tecnologia avançada: como só se vê o corpo do ser humano, ele é entendido como uma máquina passível de contínuas melhorias”, explica.
Scott Hurd, vice-presidente de desenvolvimento de liderança da Catholic Charities USA e presidente do conselho do Catholic Climate Covenant, formado em Teologia pela University of Oxford, também é um crítico da agenda transumanista, colocada em prática por mentores bilionários, parceiros de negócios no ramo da tecnologia. De acordo com Hurd, “embora a extinção humana possa ser a maior ameaça representada pelo transumanismo, uma ameaça mais imediata é que suas invenções subjacentes exacerbem as divisões existentes entre os ‘ricos’ e os ‘pobres’”.
Scott Hurd (Foto: Catholic Climate Covenant)
Nesta quinta-feira, 05-12-2024, Scott Hurd ministrará a videoconferência de encerramento do Ciclo de Estudos Inteligência Artificial. Potencialidades, desigualdades e o risco existencial humano, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU neste semestre. A palestra “A quimera transumanista. Implicações éticas sobre os avanços biológicos na era da IA” será transmitida na página eletrônica do IHU, no YouTube e nas redes sociais às 10h. Hurd é autor de, entre outros, Forgiveness: A Catholic Approach (Pauline Books & Media, 2011), When Faith Feels Fragile: Help for the Wary, Weak, and Wandering (Pauline Books & Media, 2013) e Around the Table: Retelling the Story of the Eucharist through the Eyes of Jesus' First Followers (Ave Maria Press, 2016).
Hurd alerta para um dos objetivos do transumanismo: “Os esforços ativos com os computadores e a química visam não apenas a ajudar ou mesmo a melhorar os humanos, mas, em última análise, substituir-nos por algo que os entusiastas insistem que será melhor”. Entretanto, por trás do desejo de melhoramento humano, vigora a “exaltação tecnocrática (...) que nega qualquer valor peculiar ao ser humano” [n. 118], diz, citando as palavras do Papa Francisco na Carta Encíclica Laudato si’. Sobre o cuidado da Casa Comum, publicada em maio de 2015. “Se o Homo sapiens não for entendido como criado à imagem de Deus e possuidor de uma dignidade inerente, mas rejeitado simplesmente como um trampolim de transição para algo melhor e mais poderoso, então os seres humanos não deveriam ter mais direitos do que um papagaio, como sugere o pensamento transumanista. E, em uma luta por recursos finitos entre os humanos e aquele que os sucede, os humanos provavelmente perderiam. Afinal, trata-se da sobrevivência do mais apto”, argumenta.
Segundo Cortina, a filosofia que subjaz o transumanismo é que somos criadores de nós mesmos e, portanto, reduzidos a máquinas, temos a possibilidade de nos transformar em absolutamente todos os âmbitos da vida humana. Entretanto, sublinha, “se formularmos as perguntas essenciais, aceitando os nossos limites de criaturas, saberemos nos voltar ao mistério do Criador. Essa é a única resposta possível à aberração transumanística”.
Outro ator internacional que tem manifestado preocupação com os rumos do uso e da manipulação da IA é o Papa Francisco. No encontro sobre IA no Vaticano em junho deste ano, o pontífice insistiu que a tecnologia deve estar a serviço do homem. Em outro evento sobre o mesmo tema, promovido pela Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice, Francisco lançou a seguinte provocação: “Estamos certos de querer continuar a chamar 'inteligência' o que inteligência não é? Vamos pensar nisso e questionemo-nos se o uso impróprio desta palavra assim tão importante, tão humana, não seja já um cedimento ao poder tecnocrático”. E questionou: “A Inteligência Artificial serve para satisfazer as necessidades da humanidade, melhorar o bem-estar e o desenvolvimento integral das pessoas ou para enriquecer e aumentar o já elevado poder dos poucos gigantes tecnológicos não obstante os perigos para a humanidade? É esta a pergunta basilar.”
Em fevereiro de 2020, a Pontifícia Academia para a Vida, a Microsoft, a IBM, a FAO e o governo italiano assinaram o documento “Call for an AI Ethics” (Apelo por uma Ética da Inteligência Artificial). A proposta é promover o senso de responsabilidade compartilhada entre os diferentes atores envolvidos no processo de desenvolvimento, disseminação e regulação das tecnologias. O apelo conjunto é para que a boa inovação tecnológica seja fundamentada na execução de seis princípios:
1. Transparência: em princípio, os sistemas de IA devem ser explicáveis.
2. Inclusão: as necessidades de todos os seres humanos devem ser levadas em consideração para que todos possam se beneficiar e para que se ofereça a todos os indivíduos as melhores condições possíveis para se expressarem e se desenvolverem.
3. Responsabilidade: aqueles que projetam e desenvolvem o uso da IA devem proceder com responsabilidade e transparência.
4. Imparcialidade: não criar ou agir com tendenciosidade, salvaguardando, assim, a justiça e a dignidade humana.
5. Confiabilidade: os sistemas de IA devem poder funcionar de modo confiável.
6. Segurança e privacidade: os sistemas de IA devem funcionar com segurança e respeitar a privacidade dos usuários.
Neste semestre, oito videoconferências integraram o Ciclo de Estudos Inteligência Artificial. Potencialidades, desigualdades e o risco existencial humana. As palestras podem ser acessadas na página do evento e no canal do IHU no YouTube, IHU Comunica. No primeiro semestre de 2023, o IHU também promoveu o Ciclo de Estudos Inteligência Artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos. As conferências estão disponíveis aqui. Demais artigos e entrevistas sobre a temática também estão disponíveis na página eletrônica do IHU diariamente.