28 Novembro 2024
É necessário recuperar a imagem dos banhados e marismas como repositórios de vida, não apenas das espécies que neles vivem.
O artigo é de Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, professor de direito ambiental e doutor em sociologia, publicado por Sul21, 21-11-2024.
O desastre ambiental que atingiu o Rio Grande do Sul em maio colocou em discussão dois temas relevantes: a) o processo de produção das cidades com a ocupação de áreas de risco; e b) a efetividade dos sistemas públicos de proteção contra as cheias.
Estas duas questões são fundamentais para pensar as cidades do gaúchas, em especial aquelas que estão situadas às margens de recursos hídricos. Além do mais, são dois assuntos que precisam ser pensados de forma articulada, porque o fracasso das políticas de ordenação do espaço urbano acaba impactando diretamente na necessidade de reforço das estruturas de contenção e mitigação de cheias, por meio da construção, modernização e elevação de diques, mudanças nas estruturas de alimentação de energia, dentre outras.
Todavia, em contexto de mudanças climáticas, também é urgente olhar para a proteção de ecossistemas naturais que foram fundamentais para evitar que cidades que compõem o complexo ambiental da Laguna dos Patos tivessem um impacto ainda maior nas enchentes: os banhados, marismas e todo um complexo de áreas úmidas que cercam essa região.
Consideradas pela Lei brasileira como áreas de preservação permanente e protegidas pela Convenção de Ramsar, as áreas úmidas funcionam como estruturas de contenção natural das cheias de recursos hídricos, verdadeiras esponjas que absorvem um volume significativo de águas, no que permitem um escoamento mais equilibrado das águas pelos estuários de rios e lagoas. Além disso, os banhados do Rio Grande do Sul são espaços ricos em biodiversidade, essenciais para a alimentação de aves migratórias e reprodução de diversas espécies de peixes que existem na bacia hidrográfica. E, ao contrário das estruturas das cidades-esponja que existem na China, são formações ambientais naturais que não demandam elevada monta financeira para a sua implementação.
De Porto Alegre ao canal portuário de Rio Grande, todas as cidades que cercam a Laguna dos Patos contêm, em seu território, banhados com maior ou menor nível de conservação. Embora contribuam para reduzir o impacto das cheias e sejam fundamentais para a conservação da biodiversidade, dada a natureza do seu solo, rico em matéria orgânica, quando degradadas, queimadas ou destruídas, essas áreas úmidas acabam emitindo elevada quantidade de carbono na atmosfera, invertendo a sua função ambiental e funcionando como fonte de gases causadores das mudanças climáticas. Isto significa que uma estrutura de banhado conservada representa menos carbono na atmosfera e menor impacto no clima, tornando ainda mais fundamental a sua conservação.
Por esta razão, vários países do mundo avançaram no desenvolvimento de projetos de restauração de áreas úmidas degradadas, inclusive com a recuperação da fauna, por exemplo, em regiões como o entorno de Colombo, capital do Sri-Lanka, nas turfeiras da Finlândia, ou do Lago Chilika, na Índia, local que aumentou a disponibilidade de pescado em seis vezes segundo narrativa da comunidade.
A proteção, combinada com a restauração de áreas úmidas degradadas, pode ser um instrumento relevante tanto de adaptação, como de enfrentamento das mudanças do clima. Mas para isto será necessário estabelecer um programa ambiental estruturado, alicerçado em algumas medidas que envolvam tanto governos como a sociedade na sua implementação.
No caso gaúcho e brasileiro, por razões óbvias, a primeira medida de um eventual programa de conservação e restauração, consiste no cumprimento da Lei e na efetiva proibição de construções em áreas inundáveis. As áreas úmidas hoje são agressivamente degradadas pela atuação descontrolada do mercado imobiliário e de prefeituras que incentivam a sua ocupação (como a Fazenda Arado Velho, em Porto Alegre), desconsiderando as funções ambientais desses espaços, promovendo ou incentivando o aterramento e depois a edificação.
Da mesma forma, também é necessário repensar o processo de ocupação de áreas alagáveis próximas aos banhados e demais áreas úmidas, inclusive com a revisão das cotas de inundação a partir dos efeitos das últimas grandes enchentes que afetaram o Estado. O aterramento de áreas alagáveis aumenta a pressão sobre banhados, marismas, manguezais e outros tipos de áreas úmidas, que acabam recebendo um volume ainda maior de águas e extravasando.
Aqui também é importante observar que muitas áreas úmidas, como áreas de risco, são ocupadas por assentamentos irregulares, por populações que são expulsas dos locais considerados como mais adequados para a urbanização em face da especulação imobiliária. Assim, outra medida essencial para proteger áreas úmidas é combater a especulação imobiliária, por meio de mecanismos como a progressividade tributária, a desapropriação e o parcelamento compulsório das áreas mais adequadas à habitação social, de medidas para conter a retenção especulativa de imóveis para locação, desenvolvimento de ações para o reassentamento dos grupos sociais ameaçados pelas mudanças do clima.
A segunda medida importante é a elevação do número de unidades de conservação para a proteção de áreas úmidas. A adoção de unidades de conservação ajuda no controle da ocupação desses espaços e na proteção de locais que são essenciais para a sobrevivência das cidades e regiões, como os banhados do Canal São Gonçalo, que além de sua relevante função ambiental para a conservação e reprodução da biodiversidade, funcionam como gigantes bacias naturais de contenção de cheias para cidades como Pelotas e Rio Grande, mitigando o risco de alagamentos.
A terceira medida é a institucionalização de uma política de restauração ambiental de áreas úmidas degradadas. O processo de recuperação de áreas degradadas é uma ação essencial para reduzir as emissões atmosféricas de gases causadores das mudanças do clima e recuperar a capacidade ambiental dos ecossistemas de sequestrar o carbono da atmosfera. Todavia, atualmente o caminho adotado pelos governos locais tem seguido em sentido contrário, com a autorização de aterramento e construção em banhados degradados e antropizados. Esta ação, além de pressionar ainda mais as redes de drenagem urbana, também contribui para pesadas emissões atmosféricas.
Evidentemente, tais ações precisam ser pensadas de forma articulada, institucionalmente, dentro de políticas públicas de restauração ambiental. Também é necessário realçar que as áreas úmidas no Rio Grande do Sul não sofrem apenas com o desenvolvimento urbano, mas são fortemente afetadas pelo agronegócio predatório, inclusive pela pecuária.
Por fim, resta registrar que, em face da urgência, esse conjunto de ações depende também de articulação política e de reconhecimento social. É necessário recuperar a imagem dos banhados e marismas como repositórios de vida, não apenas das espécies que neles vivem e deles se alimentam, mas das próprias cidades que eles salvam de desastres.
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Mudanças climáticas: o RS precisa de um projeto para restauração de banhados. Artigo de Sandro Ari Andrade de Miranda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU