Das feridas à reconciliação: ecos da estigmatização da São Francisco de Assis para o carisma franciscano na atualidade. Artigo de Adriano Cézar de Oliveira

Arte: Alexandre Francisco | Foto: Wikimedia Commons

04 Outubro 2025

"Caso São Francisco de Assis estivesse vivo hoje certamente proclamaria: bem-aventurados os vulneráveis, pois encontrarão cuidado! Frei Francisco, ao longo de sua jornada humana, foi um homem ferido, pois se abriu com sensibilidade às relações e, com isso, às fragilidades de seus familiares, amigos e contemporâneos e, de certa forma, aos seres humanos do mundo inteiro e a toda criação".

O artigo é de Adriano Cézar de Oliveira

Adriano Cézar de Oliveira é licenciado em Filosofia, Bacharel e Especialista em Teologia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino. Especialista em História da Arte Sacra pela Faculdade Dom Luciano Mendes. Especialista em Ciências da Religião pela Faculdade Única. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes (PPGArtes/EBA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na linha de Pesquisa Preservação do Patrimônio Cultural. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Pesquisador do grupo: Arte Sacra Contemporânea: Religião e História do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP-LABÔ. 

Eis o artigo.

Considerações iniciais

A cultura de nosso tempo guarda em suas entranhas paradoxos e contradições quase inomináveis, sobretudo no que tange à distância entre discursos e atitudes nos campos social, político e religioso. Tal situação, especialmente evidente nas relações, se manifesta como uma espécie de capa protetora que objetiva encobrir uma velha realidade renegada, a vulnerabilidade. Entretanto, essa capa revela sua transparência e é incapaz de camuflar o grito do real.

Para encobrir a vulnerabiliade, condição de não poder, recorre-se ao poderio, a força e seus recursos, a agressão, a polarização, a mentira e à irresponsabilidade que gera a injustiça, traços reveladores da perversidade que, ora ou outra, habita os vários âmbitos sociais e eclesiais. O império do poder constrange e agride a vida que é frágil e necessita de cuidado. No tempo de Frei Francisco de Assis as preocupações não eram outras, reinava a busca desenfreada pelo poder, pela segurança, pelo domínio.

A resposta sanfranciscana ao domínio predominante foi a minoridade, essa palavra, por vezes, empoeirada e esquecida na estante do carisma franciscano. A minoridade é afeita ao ser enquanto o domínio prefere o ter que lhe oferece uma falsa e poeril nostalgia de segurança. Francisco desejou que seus irmãos e irmãs fossem menores e essa herança não pode ser relegada ao esquecimento ao preço de se ceifar a própria identidade carismática.

A força do carisma franciscano emerge justamente desse lugar, da consciência de que somos todos frágeis e nessa condição somos chamados a ser irmãos e irmãs. A vulnerabilidade, nesse sentido, torna-se a identidade do carisma franciscano. O cuidado, considerando essas intuições, deve se tornar catalisador identitário para as celebrações do oitavo centenário da estigmatização de São Francisco de Assis e o permanente instrumento para fazer eco dessa memória para a sociedade contemporânea.

Nessa perspectiva, percorreremos três tópicos em nossa reflexão. No primeiro, Frei Francisco como mestre de vida interior e oração com o auxílio de uma pintura atribuída ao francês Trophine Bigot. No segundo, o itinerário existencial das feridas de Francisco até a construção das narrativas da Estigmatização. Por fim, no terceiro, com outra obra de Bigot, propor a chave do cuidado como um imperativo urgente para o carisma franciscano.

Frei Francisco, mestre de vida interior e oração

Frei Francisco de Assis nutriu sua vida interior com zelo e coragem destemida. A força que emerge de sua existência vai além de suas capacidades, ela vem do Espírito Santo de Deus que, por meio de Francisco, renovou a tudo e a todos que responderam ao seu convite e proporcionou um frescor que há muito não se via. Inúmeras são as referências encontradas sobre a vida interior e as experiências de oração nutridas pelo pobrezinho de Assis e seus frades, tanto nas Fontes Franciscanas [1] quanto nas Fontes Documentais Capuchinhas. [2]

Esse aspecto da vida de Francisco não passou despercebido pela transmissão oral, pelas tradições litúrgicas e pelas manifestações artísticas que o representou de inúmeras formas e estilos, sobretudo em oração, meditação e êxtases. Dentre inúmeras representações, destaca-se a pintura chamada San Francesco d’Assisi in preghiera do pintor francês Trophine Bigot (1579-1650) [3], conhecido como mestre da luz de velas, custodiada pelo Museo Francescano dell’Istituto Storico dei Cappuccini, localizado em Roma. [4]

Pintura "San Francesco d’Assisi in preghiera" de Trophine Bigot

A pintura São Francisco de Assis em oração (Fig. 1) foi exposta no ano de 2016 na mostra “Francesco nell’arte: da Cimabue a Caravaggio” na Pinacoteca Civica de Ascoli Piceno, região italiana das Marcas. Recentemente, no ano de 2018, fez parte do conjunto de pinturas que compuseram a Exposição “São Francisco na Arte de Mestres Italianos”, organizada pela Casa Fiat de Cultura, na capital Belo Horizonte, com a curadoria dos italianos Stefano Papetti e Giovanni Morello.

Sobre a pintura de Trophine Bigot, Morello destaca que o “quadro mostra São Francisco de Assis em pé, com a mão esquerda sobre o peito, enquanto a mão direita segura um livro aberto que ele lê com visível comoção, como mostram as lágrimas que sulcam seu rosto. A cena está imersa numa escuridão profunda, parcialmente clareada pela luz intensa de uma vela um tanto consumida, que ilumina o rosto e uma parte da figura do santo, com um jogo de luzes que cria intensos clarões e sombras igualmente intensas, conferindo ao conjunto um tom de íntima oração. À sua esquerda, no plano, há alguns objetos: um rosário, um crânio cercado por uma coroa de espinhos e uma cruz de tipo patriarcal”. [6]

Para além da história crítica da obra [7] e de seus aspectos técnicos e estilísticos ou mesmo dos processos de conservação e restauração [8], a pintura parece sugerir a materialidade da primeira oração de Frei Francisco, balbuciada originalmente diante da bizantina Cruz de São Damião, na qual rezou com devoção: “Sumo, glorioso Deus, Ilumina as trevas do meu coração e dá-me fé direita, esperança certa e caridade perfeita, (bom) senso e conhecimento, Senhor, para que faça teu santo e verdadeiro mandamento”. [9] Francisco, leitor atento dos Evangelhos, contempla nas linhas da Escritura passagens sobre a vida e morte de Jesus e, através do instrumentos da paixão, busca empreender como vida e regra os passos de seu mestre configurando em si e em seu próprio itinerário o caminho do Calvário.

Frei Francisco, pautado na proposta de vida do Evangelho, com suas intuições agudas e autênticas propõe para os seguidores de sua Regra, viver desde a vida interior o caminho do esvaziamento, do desprendimento e da humildade, outros nomes para a minoridade. O caminho de seguimento de Jesus é um caminho pessoal na maior parte do itinerário, porém, é enriquecido quanto trilhado em comunhão se realmente for uma busca por fraternidade em sua mais original e franciscana intuição.

Das feridas da existência às narrativas da estigmatização

A vida de Frei Francisco é marcada, desde o início de sua conversão, por feridas e por vulnerabilidades que escapam ao domínio. No princípio, haviam os leprosos com seus corpos adoecidos e cheios de todo tipo de ferida. No decorrer da vida, foi tomado, tantas vezes, pela aridez do caminho e marcado pela solidão, pelo cansaço e pela frustação. No final, período de grande preocupações e crises, foi renegado pelas incompreensões dos irmãos e fatigado pelo seu próprio corpo desgastado e emagrecido pela penitência. Todas essas realidades Francisco levou ao cume do Alverne para oferecer a Deus por ferirem fortemente a sua alma e por fazer pesar sua existência. Em si mesmo, Francisco carregou as marcas de tantas situações e de tantos outros e, desde as rochosas alturas do Alverne, aquelas de seu Salvador e Redentor, Altíssimo e Santíssimo, como gostava de se referir a Jesus.

Ao longo da história, a estigmatização de São Francisco de Assis foi um fato questionado, polêmico e, até mesmo, negado. O episódio pode ser “investigado” sob diferentes enfoques, porém, será melhor observado se compreendido em seu contexto e por meio de uma leitura demitizada e longe de fundamentalismos. A ótica da mística cristã é um adequado caminho para a busca dessa compreensão, pois carrega em sua linguagem e campo semântico um aparato conceitual próprio. Não investiga o fenômeno na ótica de um puro biologismo reducionista e nem nega a possibilidade de uma experiência dessa natureza, pois se o fizesse negaria ao humano a capacidade de transcender-se, de estar aberto a algo maior que a si e que ultrapassa as estreitas barreiras do mundo sensível.

Nessa perspectiva, o franciscanólogo Frei Celso Márcio Teixeira observa que “etimologicamente, a mística está relacionada com o mistério, provém da mesma raiz grega (myo). Esse vocábulo, porém, deve ser tomado em seu sentido original, como realidade diante da qual o ser humano reverentemente fecha os olhos e se cala (apenas balbucia)” e ainda é uma “experiência que envolve a totalidade do ser humano, com todas as suas faculdades da alma e com toda a sua corporeidade (...), potências e debilidades, valores humanos e defeitos, grandezas e misérias” [10], o que não foi diferente com a experiência do pobrezinho de Assis.

Frei Francisco subiu o frio Alverne no contexto do agravamento de sua saúde, sofrendo com dores e incômodos corporais, além de estar vivendo um desafiante momento de crise existencial e, como é próprio desses momentos, buscava por respostas. A experiência do Alverne, como toda experiência mística, encontrou entre os hagiógrafos medievais dificuldades para ser descrita uma vez que a linguagem humana não é capaz de narrar em absoluto a experiência do inefável. A experiência em si mesma sempre será mais rica do que qualquer narrativa possa ser capaz de descrever tais textos, fundamentalmente, apresentarão imprecisões, defasagens e lacunas, e devem ser lidos com acurado espírito crítico.

Podemos supor que receber as marcas do Crucificado para São Francisco, sob a ótica da mística cristã, significou um misto de tristeza e dor, alegria e prazer e não consta que ele tenha buscado descrever ou revelar detalhes dessa experiência, o que não fez com nenhum dos “segredos do Senhor” revelados a si em sua vida, de acordo com a sua própria Admoestação 28 e até busca os manter em segredo conforme os relatos da Vita Beati Francisci 135 de Tomás de Celano. Em nenhuma linha de seus Escritos se encontra qualquer alusão a essa experiência, entretanto, não era possível esconder as marcas dos estigmas, sobretudo, porque Francisco é o primeiro santo que os recebeu conforme destaca Jacopone de Todi em seus Louvores, 61.

As narrativas da estigmatização de São Francisco são abundantes nos textos franciscanos, entretanto, sem deixar de lado a importância desses textos-fonte, se faz necessário dedicar certa atenção para com eles que, em suas linhas e entrelinhas, possuem limites. A escrita é um modo seguro para a preservação da memória histórica, embora cada escritor descreva os fatos de acordo com as dinâmicas de sua percepção e recursos, estilo e técnicas, subjetividade e enfoque, sobretudo, em se tratando de textos hagiográficos. Os relatos da experiência do Alverne se distinguem entre si, embora em cada um deles o autor busque ser fiel ao núcleo fundamental da mensagem que deseja transmiti e assim, no essencial, nota-se que não há divergências altamente significativas.

O primeiro testemunho que se sabe sobre os estigmas é a Carta de Frei Elias de Cortona, escrita em 1226, para noticiar a morte de Frei Francisco, na qual relata sobre as “cinco feridas” que Francisco portava em seu corpo ao se entregar à irmã morte corporal. Após essa primeira notícia, há uma diversidade de relatos sobre o tema destacando-se pelo menos três tipos de testemunho: os ausentes, as memórias oficiais e o testemunho dos companheiros. Nos testemunhos ausentes, como já destacado anteriormente, nas poucas palavras que Francisco fala de si mesmo, ele não faz nenhum relato acerca dos estigmas. Em 1228, na Bula de sua Canonização, intitulada Mira circa nos, o Papa Gregório IX não faz nenhuma alusão aos estigmas e, por fim, Irmã Clara, em seus Escritos, não faz nenhuma referência aos estigmas, embora, assim como Francisco, cultivava um ardente amor ao Crucificado. No compilado das Fontes Franciscanas pode-se ler os diversos testemunhos oficiais e as memórias dos companheiros que, embora variem textualmente em seus diferentes detalhes, conduzem para um mesmo núcleo fundamental: Francisco, no ano de 1224, foi estigmatizado no Monte Alverne! [11]

Ao fruidor desses textos cabe a desafiante tarefa de interpretar essas narrativas medievais na busca da “verdade” sobre o sentido das feridas de Frei Francisco e o confronto sincero, e não pouco doloroso, com suas próprias feridas. Desse exigente exercício será possível concluir, sem dificuldades, que o encontro com o Crucificado, desejado e procurado por Francisco durante toda a vida, não foi uma experiência mística isolada e que o conduziu ao mundo sobrenatural. Trata-se, portanto, do ponto de chegada de um ser humano ferido pelos acontecimentos da vida e de cuja experiência de estigmatização nasceu um homem de louvor reconciliado com os seus irmãos. [12]

O cuidado como urgência para o carisma franciscano

A temática do cuidado tem ganhado espaço nas discussões contemporâneas sob diferentes óticas. [13] O cuidado se encontra no bojo das coisas essenciais da vida e sem essa força potencial a vida se afasta da sua melhor possibilidade. O cuidado que se recebe define o modo de se estar no mundo e os atos de cuidado que serão compartilhados. De certa forma, somos o que fazemos e aquilo de que cuidamos. Nessa perspectiva, o não-cuidado está diretamente ligado ao não-ser e a negação da vida enquanto possibilidade de relações mais equilibradas e saudáveis. Essa intuição básica sobre o cuidado tem uma relação muito estreita com o franciscanismo, enquanto modo e opção de vida, sendo o cuidado um ato irrenunciável para o carisma franciscano.

A sociedade atual, marcada pelo consumo e pelo descartável, está mergulhada na apatia e na indiferença ao mesmo tempo que vem sendo manipula no sentido de endossar o medo do outro diferente, da dor e da morte e se torna cada vez mais fundamentalista, violenta e dividida. Nesse cenário, cabe o questionamento: quem deve ser o sujeito do cuidado? Deve-se cuidar de si mesmo, confiar nos outros, no sistema ou nas instituições? A resposta a essa pergunta não é simples e nem fácil! Entretanto, sob a ótica franciscana, por meio de pequenos atos de cuidado próprio e com os outros repara-se as feridas do existir e, diante da fragilidade das diversas formas de vida, a pedagogia do cuidado se torna um imperativo fundamental para a manutenção de todo o criado.

A cultura do tempo presente parece ser mais sensível à imagem do que a palavra confirmando o dito popular que afirma “uma imagem vale mais que mil palavras”. Nesse sentido, voltando às reflexões acerca da estigmatização de São Francisco, podemos observar uma imagem muito interessante e que exemplifica a urgente necessidade do cuidado das feridas e, mais que isso, da compaixão e da solidariedade com quem está ferido, imperativo ético em um tempo e em uma cultura tão marcados por abusos de todos os tipos. A pintura em questão apresenta Santa Clara cuidando dos estigmas de São Francisco (Fig. 2), no quadro se pode observar os dois personagens envoltos em uma penumbra e iluminados apenas pela frágil chama de uma vela que já é o recurso suficiente para possibilitar o ato do cuidado. O que essa singela imagem pode dizer ao carisma franciscano em tempos de tantas feridas?

Pintura "San Chiara medica le stimmate di San Francesco" de Trophine Bigot

A obra, acima referida, é atribuída ao pintor francês Trophine Bigot e foi doada pela família Langeli, no último dia 13 de junho de 2024, ao Centro Culturale Aracoeli dei Frati Minori, Roma, pelas mãos do paleógrafo e estudioso de franciscanismo Attilio Bartoli Langeli no ano jubilar e celebrativo do oitavo centenário dos estigmas de São Francisco de Assis [14]. Pode-se fazer várias leituras acerca do tema iconográfico da obra em questão, talvez a cena possa ser entendida no sentido da íntima conexão humana, espiritual e fraterna que existia entre os santos de Assis e que possibilitou o ato do cuidado das feridas. Outra leitura possível é a do cuidado contemplativo que Irmã Clara realizou nas feridas de Cristo Crucificado na carne de seu irmão Francisco, leitura possível e complementar uma vez que Clara possuía um Ardente amor ao Crucificado, conforme se pode ler na Legenda de Santa Clara, 30:

Era-lhe familiar o pranto pela paixão do Senhor: ou hauria das sagradas chagas a amargura da mirra, ou sorvia os mais doces gozos. Embriagavam-na veementemente as lágrimas de Cristo sofredor, e a memória reproduzia frequentemente aquele que o amor lhe gravara fundo no coração.

Ensinava as noviças a chorar o crucificado dando junto o exemplo do que dizia. Muitas vezes, ao exortá-las a isso em particular, vinham-lhe as lágrimas antes de acabarem as palavras. Entre as horas do dia, em geral era mais tocada de compunção em Sexta e Noa, para imolar-se com o Senhor imolado. Uma vez, rezava na cela na hora Nona, e o diabo lhe bateu no rosto, enchendo um olho de sangue e a face de marcas.

Para nutrir a alma sem cessar nas delícias do Crucificado, ruminava frequentemente a oração das cinco chagas do Senhor. Aprendeu o Ofício da Cruz composto por Francisco, o amante da cruz, e o repetia com o mesmo afeto. Cingia embaixo da roupa, sobre a carne, uma cordinha com treze nós, lembrança secreta das feridas do Senhor.

O cuidado reverente às feridas, contemplado na pintura de Santa Clara cuidando dos estigmas de São Francisco e demonstrado por um ato concreto, conforme se vê na narrativa visual da obra, pode ser lido como uma convocação ao carisma franciscano para que, vivendo em profundidade a minoridade, possa aperfeiçoar suas práticas de cuidado reverente com o outro na totalidade de suas feridas e independentemente de quais sejam elas. A indiferença, a apatia, a omissão, a irresponsabilidade e a inconsequência são atitudes contrárias à pedagogia do cuidado que deve ser nutrida em uma vida que se quer fraterna e franciscana. Os micro atos de cuidado são formas de resistência e revolução e precisam, com urgência, serem retomados em velhos espaços e ao mesmo tempo forjar novas conjunturas de modo que o carisma franciscano se renove, desde às pequenas atitudes, até abraçar e cuidar de todas as feridas das pessoas e da criação inteira por meio de atitudes de acolhida, hospitalidade e respeito.

Considerações finais

Caso São Francisco de Assis estivesse vivo hoje certamente proclamaria: bem-aventurados os vulneráveis, pois encontrarão cuidado! Frei Francisco, ao longo de sua jornada humana, foi um homem ferido, pois se abriu com sensibilidade às relações e, com isso, às fragilidades de seus familiares, amigos e contemporâneos e, de certa forma, aos seres humanos do mundo inteiro e a toda criação. Nessas experiências encontrou a si mesmo, os outros e Deus, experimentando sua misericórdia e partilhando-a pelo claustro mundo.

De suas profundas experiências e vivências do Evangelho nasceu o carisma que ele legou a uma multidão de homens e mulheres há mais de oito séculos. O carisma franciscano sempre será atual enquanto houver pessoas feridas, socorridas e curadas, que encontrem nessa experiência a sua forma de vida se tornando franciscanos e franciscanas, nos claustros ou fecundando a carne do mundo. Ele mesmo, Francisco, deixou aos seus a missão do cuidado das feridas conforme se pode ler no Anônimo Perusino 38, 8: “para isto fomos chamados: para curar os feridos, aliviar os esmagados, chamar de volta os que erraram”.

Por meio do autocuidado, que confronta cada indivíduo com os mecanismos de controle dominantes, a pedagogia do cuidado urge como o grande eco das celebrações dos 800 anos da estigmatização de São Francisco de Assis para o carisma franciscano na atualidade e prepara para a celebração dos 800 anos do Cântico do Frei Sol. Assim, o carisma franciscano será revitalizado, testemunhando compaixão e comunhão, e será um horizonte de esperança no qual o louvor será o grande sinal das feridas curadas e reconciliadas. Portanto, com as palavras de Frei Francisco na Vita Beati Francisci 103: “vamos começar (...) porque até agora fizemos pouco ou nada!”.  [15]

Notas

[1] Nas Fontes Franciscanas: Catequese sobre a Oração: RnB 22; Hino em Ação de Graças: RnB 23; O empenho de São Francisco na Oração: 2 Cel 94-101; Devoções especiais de São Francisco: 2 Cel 196-203; Oração Vocacional: AP 10; Fioretti: 9.

[2] Nas Fontes Documentais Capuchinhas: Ordenações dos Capítulos Gerais: 1596: 487.503; 1608: 603-605; 1613: 610.613-614.616-617; 1618: 693; Carta Circular de Bernardino de Asti: 748 e Carta Pastoral de Jerônimo de Sorbo: 765.

[3] Trophine Bigot viveu em Roma em dois períodos diferentes de sua vida: em 1605 e, numa permanência mais longa, de 1620 a 1634, realizando algumas obras e participando das atividades da Accademia de San Luca. Não se sabe se San Francesco in preghiera foi executado em Roma ou na França, como sua localização em Marselha levaria a supor, ainda que a presença da luz de vela o coloque em estreita relação com outros quadros romanos, com o mesmo código estilístico. (MORELLO, Giovanni; PAPETTI, Stefano. Catálogo da Exposição São Francisco na Arte de Mestres Italianos. Belo Horizonte: Casa Fiat de Cultura, 2018, p. 85). Para conferir outras obras atribuídas a Trophine Bigot veja aqui. Acesso em 05 de maio de 2024.

[4] O quadro se encontra atualmente em Roma, conservado no Museo Francescano do Istituto Storico dei Cappuccini – uma instituição fundada em Marselha no final do século XIX e depois reconstituída na Itália, nas primeiras décadas do século XX, após a extinção da sede francesa (Leone, 2012a), sendo sua proveniência desconhecida. (MORELLO; PAPETTI; 2018, p. 82).

[5] Também conhecida por San Francesco d’Assisi in meditazione sulla morte e sulla vita [São Francisco de Assis em meditação sobre a morte e a vida], óleo sobre tela, com medidas de 100,0 x 140,0 cm, sem datação.

[6] A presença dessa singular tipologia da cruz despertou o interesse de vários estudiosos, embora sua função ainda não tenha sido suficientemente esclarecida e ela continue enigmática. Segundo alguns estudiosos franciscanos, a presença da cruz patriarcal seria uma referência a São Francisco de Assis enquanto fundador da Ordem Franciscana (Gerlach, Gieben, D’Alatri, 1973); outros autores pensam que é uma referência às missões dos franciscanos no Oriente e ao relicário da Verdadeira Cruz (Frolow, 1961), da qual depois derivaria a insígnia de Lorena. (MORELLO; PAPETTI; 2018, p. 82).

[7] Por outro lado, a história crítica do quadro é mais rica e articulada, sendo ele caracterizado pela cifra estilística da luz de vela, o que levou a se procurar seu autor entre os chamados “caravaggianos”. Uma atribuição inicial a Gerrit van Honthorst, também dito Gerardo delle Notti (Hoogwerff, 1924), não teve grande adesão, ao passo que atualmente a maioria dos estudiosos tende a concordar com uma atribuição ao francês Trophime Bigot. O problema da atribuição se complicou ainda mais com a relação ainda obscura entre ele e o chamado “Candlelight Master”: ainda não está totalmente claro se são dois autores diferentes ou a mesma pessoa. Se uma boa parte dos estudiosos considera a segunda hipótese plausível, Bigot, para Wolgang Prohaska (2010, pp. 317-323), “ainda permanece um enigma”. (...) Giorgio Leone, infelizmente falecido em idade prematura, introduziu em data recente (San Francesco nell’arte, 2016, p. 106) um novo e problemático nome para a autoria do quadro: Giacomo Massa, pintor pouco conhecido, autor de alguns retábulos da capela da Paixão de Santa Maria in Aquiro em Roma, entre eles um Cristo escarnecido ao qual “este San Francesco in preghiera está verdadeiramente associado” (MORELLO; PAPETTI; 2018, p. 82.85).

[8] Sobre a restauração da obra: veja aqui. Acesso em 05 de maio de 2024.

[9] Original: Oratio ante Crucifixum dicta: Summe et gloriose Deus, illumina tenebras cordis mei et da mihi fidem rectam, spem certam et caritatem perfectam, sensum et cognitionem, Domine, ut faciam tuum sanctm et verax mandatum.

[10] TEIXEIRA, Celso Márcio. Os estigmas de Francisco. In: TEIXEIRA, Celso Márcio. Franciscanismo: Estudos e Reflexões. Belo Horizonte: Gráfica Colégio Santo Antônio, 2019, p. 469. E continua, a “experiência mística marca definitivamente a alma da pessoa, tanto assim que a pessoa, depois da experiência, parece transformada. Pode marcar também visivelmente o corpo, isto é, como resultado de uma experiência mística, pode haver alguma somatização. Mas não é o essencial. A somatização é apenas sinal de algo maior. Com a experiência mística, também qualquer sinal no corpo decorrente dela se apresenta como dom” (p. 470).

[11] “Há que distinguir entre relato, notícia e simples alusão; relato é a descrição mais ou menos detalhada do que aconteceu ou teria acontecido no Monte Alverne (1Cel 94-95, 1-5; 3Cel 4, 1-11; 5 Cel 72-73; Jul 61-62; LCU, A.F. X, p. 543-554, 1; LTC 69, 1-6; LM XIII 3; Lm VI 1-2; notícias não são propriamente relatos, pois não descrevem os fatos, mas apenas os anunciam (El 15-20; 2Cel 217a, 6; 4Cel 11, 1-2; Jul 65, 3; AtF 68); alusões são as notícias dadas de um fato como circunstância de outro fato (2Cel 135-138; Jul 65, 3; LL 1, 15; 2EP 99, 6); em CA encontra-se a notícia sobre a quaresma de São Miguel (Cf. CA 118, 1-3) e sobre o Serafim (Cf. CA 118, 13), mas nenhuma notícia dos estigmas; em 1EP não se constata nenhum relato, notícia ou alusão aos estigmas” (TEIXEIRA, 2019, p. 492, nota 11).

[12] Cf. Louvores ao Deus Altíssimo e Considerações Sobre os Estigmas.

[13] Na perspectiva da filosofia temos a obra “Filosofia do cuidado” do filósofo e crítico de arte alemão Boris Groys e a obra de mesmo nome da filósofa italiana Luigina Mortari.

[14] O convite para o evento de doação da obra pode ser visualizado aqui. Acesso em 05 de maio de 2024.

[15] Para aprofundar na leitura das Fontes Franciscanas sobre a Estigmatização de Frei Francisco, seguir as indicações do Centro Franciscano de Espiritualidade de Piracicaba: Ferida: — e chagas do Senhor na devoção de Clara: LSC 30; — dos estigmas de Francisco: 2Cel 138, 3Cel 4, Ruggero 12; — do lado de Francisco: 2Cel 214, LM 13, 8, LM 15, 2, LTC 70, Cons 3, Cons 4; — e dúvida de Gregório IX: 1M 2; — dos estigmas na oração dos frades: 1Cel 118; — curadas prodigiosamente por Francisco: 3Cel 197, 1M 5, 3M 9, Lm 6, 7; — para Francisco é o mau exemplo dos frades: LP 86, EP 81; — para Francisco a vocação dos frades é curar as feridas: LTC 58, AP 38; Estigmas: — sinal resplandecente de Deus entre os homens: Lm VI,5; — Francisco é o primeiro santo que os recebe: Jacopone 61; — primeiras alusões: 1Cel 57; 2Cel 10; LTC 14; — expressão física do amor interior de Francisco, Jacopone - Lauda 62; — de Cristo e de Francisco: 1Cel 119; 1Cel 151; Fior 7; — o acontecimento : LM XIII,1ss; — marcados na carne de Francisco pelo Espírito do Deus vivo: LM Pro 1; LM IV,11; — no Alverne e tentação de Francisco: EP 99; Cons 3; Jacopone 61, Dante 99; — nas mãos nos pés e no lado: CtEl 5, 1Cel 90; 1Cel 94; 1Cel 96; 2Cel 210; 3Cel 4; LM XIII,3; Lm VI,1ss; LTC 69;AP 46; Cons 4; Tuy, VidaGIX 3, Dinamarca; — motivo de oração e de louvor a Deus: 1Cel 114; 1Cel 118; — são o maior milagre operado em Francisco: 3Cel 2; — mantidos em segredo por Francisco: 1Cel 135; — testemunhos: das mãos e dos pés vistos algumas vezes: LM XIII,8; — do lado foi tocado por Frei Rufino:3Cel 4; — vistos por Frei Pacífico, durante a vida de Francisco: Toscano 2; — desejo de vê-los por parte de um frade de Bréscia: 2Cel 137; — testemunho de Frei Leão: Eccl 92, Sali 10; e de Frei Bonizo: Eccl 91; — vistos por muitos em Francisco morto: 1Cel 112; 1Cel 113; 2Cel 217a; 3Cel 5; LM XIII,8; LM XV,2; LM XV,4; LTC 70; — são anunciados por carta de Frei Elias: CtEl 5, JJ 50; — aparecimento e desaparecimento, segundo alguns: Ruggero 12; — e sua realidade histórica, segundo as prosas biográficas: Cons 5; seu segredo será conhecido no dia do juízo: Jacopone 61; — considerações sobre eles: Cons 1ss; — Francisco depois dos estigmas: — impossibilidade de caminhar: PaixãoSV 3; — sua virtude para operar milagres: 3Cel 11; LM m I,1ss; — de Francisco e água com que se lavou: milagre: LP 57 ou CA 94; — vistos em sonho por um frade com dúvidas: 3Cel 10; — e incrédulo punido e depois curado: 3Cel 6; — aparecem em uma pintura e depois desaparecem: 3Cel 8; — dúvida e visão dos estigmas por Gregório IX: LM m I,2; Milagre: — são numerosos: 1Cel (Prólogo), 1Cel 120, 1Cel 121, 3Cel 182 –3Cel 197, 8M 1 ss. 10M 1 ss. Lm 7, 7, Cons 5 ss; Morte (morto): — e fama dos estigmas: LM 15, 4, AP 46.

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