31 Outubro 2024
"A morte de Gustavo Gutiérrez pode suscitar muitas emoções em quem hoje se dedica à teologia", escreve Massimo Nardello, teólogo e presbítero da Arquidiocese de Módena-Nonantola, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 29-10-2024.
A morte de Gustavo Gutiérrez pode suscitar muitas emoções em quem hoje se dedica à teologia. Da minha parte, há, antes de tudo, um forte sentimento de gratidão. Com esta figura, desaparece um dos grandes protagonistas da teologia do século XX, um daqueles cuja ausência é sentida.
Embora não tenha sido o primeiro a propor uma teologia da libertação (o teólogo James H. Cone o antecedeu por alguns meses com a publicação em 1969 de seu livro Black Theology and Black Power), é inegável que as perspectivas abertas por Gutiérrez tiveram um impacto formidável no contexto teológico internacional e, de maneira mais ampla, na vida da Igreja Católica.
Por outro lado, a morte de figuras desse tipo gera em quem, como eu, deveria herdar sua sabedoria e coragem, um sentimento de inadequação, quase um medo de não estar à altura da tarefa.
Sem querer buscar justificativas indevidas, parece-me, contudo, que, nos últimos anos, ocorreu uma mudança paradigmática no plano cultural que talvez justifique uma maneira um pouco diferente de fazer teologia em relação à do teólogo peruano.
Eu gostaria, então, de oferecer algumas reflexões sobre a abordagem que o saber teológico deveria ter hoje para desempenhar adequadamente sua função política, ou seja, de crítica profética às instâncias desumanizantes presentes na sociedade, assumindo como exemplo a tarefa de promover a paz.
Parece-me que em torno dessa questão giram pelo menos duas problemáticas, uma já amplamente discutida nas décadas passadas e outra característica dos nossos dias. A primeira questão diz respeito à possibilidade de propor a ética evangélica, expressa, por exemplo, no Sermão da Montanha, aos Estados laicos como referência normativa para sua legislação e política. Nessa ótica, a promoção da paz exigiria, por parte deles, a adoção do princípio de “dar a outra face” mesmo diante de um agressor injusto, renunciando a qualquer defesa armada.
Do ponto de vista teológico, a legitimidade dessa opção depende da maneira como se entende a relação entre a história e a soberania de Deus e, portanto, de como se concebe o caminho das sociedades em direção ao cumprimento escatológico da salvação. Se elas são chamadas a viver desde agora a lógica do reino, então a ética evangélica deve valer também para elas, da mesma forma que para as comunidades cristãs.
Isso, porém, implicaria não apenas um pacifismo radical, mesmo à custa de ferir o direito à defesa, mas, de forma mais ampla, a adoção de toda a ética cristã no âmbito civil. A lei deveria ser normatizada pela doutrina da fé, e a laicidade do Estado seria deslegitimada.
Na realidade, por razões que hoje me parecem amplamente compartilhadas, as instituições estatais e as sociedades mais amplas são chamadas a se aproximarem do cumprimento escatológico da salvação não pelo respeito à ética evangélica, mas vivendo na fidelidade àqueles valores criacionais, compartilháveis também por quem não é cristão, que o Criador colocou como fundamento da existência humana, e que são formalizados pela doutrina social da Igreja Católica. Nesse quadro, a defesa armada, se proporcional à ofensa e presumivelmente eficaz, é completamente legítima.
Considerando que, nas situações concretas, a avaliação dessas condições é muito complexa, não se pode esperar dos teólogos e das teólogas que converjam em uma visão compartilhada e entrem no debate público com determinação e com uma voz unificada. Se, em temas desse tipo, a teologia católica não fala em uníssono, isso não significa que trai sua missão.
A segunda questão, sobre a qual me detenho mais, diz respeito ao papel específico das teologias políticas e da libertação. Nas décadas passadas, elas deram uma contribuição decisiva não só para a reflexão teológica, mas também para a vivência das comunidades cristãs e de inúmeras pessoas, inclusive não crentes.
A meu ver, a eficácia dessas teologias – como a de Gutiérrez – decorreu do fato de que surgiram em países e em momentos históricos nos quais o referencial ao Deus cristão representava uma motivação muito convincente para uma ampla parte da sociedade.
Demonstrar, portanto, de modo argumentado, que a Escritura e a mais ampla Tradição da fé legitimavam a defesa e a promoção dos pobres, dos negros, das mulheres e de outras categorias de pessoas marginalizadas por poderes econômicos ou discriminações culturais, tinha um forte impacto no âmbito público.
Na minha visão, esse modelo de teologia política e de libertação está em declínio, por pelo menos duas razões. Em primeiro lugar, vivemos agora em um contexto cultural pós-cristão, no qual a referência ao desígnio divino sobre a humanidade perdeu relevância, com exceção dos movimentos fundamentalistas, que, porém, estão substancialmente ausentes em nosso país.
Além disso, a lógica argumentativa que a teologia tradicionalmente utilizava não é considerada funcional para tratar das questões que tocam a existência individual e coletiva, mas apenas daquelas que dizem respeito ao funcionamento da realidade, que são objeto da ciência e da tecnologia. A mentalidade desconstrucionista que permeou as sociedades pós-modernas tornou impossível e inútil o diálogo entendido como busca de uma verdade objetiva comum, legitimando apenas uma troca livre e igualitária de opiniões sobre o sentido das coisas.
O valor dessas opiniões independe de seu fundamento teórico, e depende exclusivamente do fato de serem sentidas subjetivamente como funcionais para o próprio bem-estar e, eventualmente, para o bem-estar coletivo.
Nessa perspectiva, a teologia e sua capacidade argumentativa são anuladas. O que importa é a capacidade de emocionar, e, para isso, as imagens são mais úteis que as palavras. Assim, o apelo pela paz feito por um vídeo bem elaborado de uma pessoa famosa (esportista, cantor, ator, influenciador…) pode ter um impacto muito maior na opinião pública do que a lição de um pensador rigoroso e competente, que não pode deixar de citar em língua original pelo menos três filósofos ou teólogos apenas para desejar uma boa noite a todos…
Ora, o silêncio dos teólogos e teólogas sobre as grandes questões da sociedade me parece determinado pela percepção de que não são relevantes no âmbito público. Nesse contexto, não se pode e não se deve propor a antropologia e a ética evangélica como normativas, mas valores criacionais compreensíveis à luz da razão, para os quais, nas sociedades pós-cristãs de hoje, uma motivação teológica adicional não acrescenta qualquer ênfase.
Além disso, a abordagem argumentativa certamente não é a mais apreciada. Assim, mesmo que os teólogos e teólogas devam participar das batalhas civis pela defesa do bem comum, ao lado de outros crentes e de outras pessoas não cristãs e não religiosas, sua contribuição teológica específica no âmbito público parece estar terminada. A menos que seja repensada radicalmente. Esse repensamento, contudo, não pode ser buscado no modelo passado, reapresentando às instituições laicas a antropologia e a ética evangélica como normativas.
Infelizmente, parece-me que estamos seguindo nessa direção quando, por exemplo, se fala da necessidade de socorrer os migrantes porque neles está presente o Senhor ou porque são amados por Deus. Se uma mensagem desse tipo é completamente legítima quando dirigida aos cristãos, não o é de forma alguma quando articulada no âmbito público, isto é, se é dirigida a todos os membros de uma sociedade multirreligiosa ou até mesmo às instituições de um Estado laico.
Essa mistura de âmbitos distintos, que emerge em muitas tomadas de posição recentes, revela a dificuldade de definir o específico cristão nas questões sociais que caracterizam o nosso tempo, dada a perda da relevância tradicional da motivação religiosa.
A meu ver, a forma como a teologia poderia expressar hoje sua vocação política seria a de extrair das Escrituras e da mais ampla Tradição cristã visões do sentido da existência humana individual e coletiva e oferecê-las ao público, não mais, porém, como instrumento revolucionário de transformação da realidade, mas como modos sensatos de viver que possam inspirar as escolhas livres das instituições laicas e das pessoas, mesmo não religiosas.
Essas visões não devem ser despojadas de sua conotação religiosa para entrar no debate público, mas devem ser apresentadas de modo que possam ser acessíveis também para aqueles que não são cristãos. A linguagem parabólica pode ser útil, dada sua capacidade de estimular respeitosamente o ouvinte (ou o leitor) a entrar em uma nova visão das coisas, sem colocá-lo em dificuldade ou forçá-lo caso prefira não se questionar.
Essas propostas devem possuir uma fundamentação rigorosa no plano teológico, mas não será essa fundamentação que as tornará atrativas no âmbito público. O aspecto estético será decisivo, isto é, sua capacidade de fascinar, de sugerir uma maneira melhor de viver a vida individual e coletiva. Trata-se de elaborar uma nova retórica, e não mais baseada apenas na linguagem verbal.
Tudo isso torna a tarefa política da teologia um pouco diferente daquela desempenhada nas últimas décadas, menos combativa e mais humilde e discreta. Para quem hoje deveria ser o herdeiro dos grandes teólogos do século XX, como Gustavo Gutiérrez, impõe-se a tarefa de seguir seus passos buscando uma maneira própria de favorecer o caminho de toda a humanidade em direção ao reino de Deus.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Para uma teologia não irrelevante. Artigo de Massimo Nardello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU