Uma formação eclesial “suspeita” em relação à função educativa da “ficção poética” e um julgamento sobre a mulher como “incapaz” (ou “impedida” de) se dedicar à poesia coincidem em um ponto: em olhar com desconfiança para o seminarista que lê ou escreve poesias ou para a mulher que se dedica ao estudo e à escrita. Quase como se fosse algo desonroso para eles.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 02-10-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As pessoas só podem ser plenamente compreendidas e respeitadas em seu conjunto, naquela plenitude integral, que ninguém pode ver nem dominar. Só o olhar de Deus é capaz de chegar ao fundo. Assim, podemos ficar surpresos que o próprio papa, ao mesmo tempo que aconselha no verão [europeu] uma ousada formação literária para os ministros da Igreja, no outono [europeu] possa repetir afirmações bastante estereotipadas sobre as mulheres, com grandes lugares-comuns.
Como podemos fazer justiça frente a essa percepção contraditória? Gostaria de tentar reler um aspecto do documento desse verão, para abrir as janelas e deixar entrar ar fresco também nos discursos que têm como tema as mulheres.
Farei isso cruzando o texto do Papa Francisco com outro texto que, cerca de 100 anos antes do seu, tentava estudar a relação entre a literatura e as mulheres: refiro-me a “Um quarto só seu”, de Virginia Woolf.
Ambos os textos buscam o valor “formativo” da literatura e aplicam, ambos, essa referência a mundos que sofrem de uma certa “deminutio” literária. Por um lado, os “seminários”, por outro, a tradição da cultura feminina são mundos que muitas vezes permaneceram, por razões muito diversas, totalmente alheios aos romances e à poesia.
Esse ponto de contato já parece interessante. Uma formação eclesial “suspeita” em relação à função educativa da “ficção poética” e um julgamento sobre a mulher como “incapaz” (ou “impedida” de) se dedicar à poesia coincidem em um ponto: em olhar com desconfiança para o seminarista que lê ou escreve poesias ou para a mulher que se dedica ao estudo e à escrita. Quase como se fosse algo desonroso para eles.
A tradição eclesial, porém, não tem sido tão uniforme e drástica quanto a tradição excludente sofrida pelas mulheres. Houve uma Igreja, como aquela em que Boccaccio escrevia, que podia conceber um “diácono” como escritor de novelas. Muitos outros padres e bispos, antes e depois dele, foram poetas e narradores. Na verdade, quase poderíamos descobrir que a Igreja só se tornou profundamente desconfiada da literatura quando o caminho literário foi aberto às mulheres. Eu diria que quase se poderia verificar como a desconfiança em relação à ficção (em relação a uma “theologia poetica”) nasceu precisamente com o surgimento da sociedade da dignidade e com o declínio da sociedade da honra. De uma sociedade em que não é mais desonroso para uma mulher dedicar-se à escrita e à poesia. Durante séculos, escrever, estudar e poetizar eram “coisas de homem”, e as pessoas se escandalizavam se uma mulher quisesse fazer essas “coisas de homem”.
Em sua “Carta sobre o papel da literatura na formação”, o Papa Francisco destaca o valor de uma “visão mais ampla”, que amadurece precisamente com a leitura dos grandes romances. Esses textos nos inserem em uma experiência mais rica e mais intensa do real. São quase uma condição para que o nosso discernimento possa ser mais profundo e mais aguçado.
A imaginação da qual a ficção literária é uma experiência sem fim põe à prova os nossos critérios comuns de julgamento. Quando lido em paralelo, isso também vale para o procedimento com que Virginia Woolf nos faz entrar gradualmente na relação entre “Women and fiction”, entre mulheres e romance. Se lermos paralelamente os dois textos, o de Francesco e o de Virginia, descobrimos algumas coisas interessantes:
– quando o papa dá exemplos de literatura, antiga, moderna ou contemporânea, ele cita sempre apenas autores masculinos. Não é um limite do papa, mas da tradição literária, que integrou as mulheres apenas a partir do fim do século XVIII. Os grandes clássicos até o século XIX eram todos masculinos: até Anna Karenina é obra de um homem.
– a resenha de leituras da mulher, que Virginia apresenta como doutos resultados da academia de Oxbridge, são muito semelhantes às palavras com que Francisco recentemente “definiu” um feminino ontológico e estável. Se lermos o ensaio de Woolf, começaremos a desconfiar dessas reconstruções, que são antes culturais que eclesiais;
– a história da “irmã de Shakespeare”, com seu drama existencial e cultural, que marca o texto de Woolf, é uma ficção muito instrutiva, porque desmascara o poder de um preconceito que continua a falar, 500 anos depois, nas palavras de muitos contemporâneos e que ressoa, indiretamente, também nas palavras de Francisco;
– o tom romanceado do ensaio de Virginia, porém, tem o mérito de nos fazer descobrir traços estilísticos muito semelhantes aos momentos romanceados que às vezes aparecem nos documentos de Francisco (como por exemplo na Evangelii gaudium, na Amoris laetitia ou na Querida Amazonia). Para Francesco, o fato de ter ensinado literatura e de ter Jorge Luis Borges como colaborador de excelência não deixou de surtir efeitos, na palavra e no pensamento.
Há, portanto, um valor “inquietante” da literatura, que ajuda o cristão a ver melhor a realidade. Por isso, não seria inútil um pequeno exercício de “ficção”, aplicado a duas expressões da tradição católica recente, da qual às vezes emerge o desejo – ao mesmo tempo cômico e trágico – de frear a história.
Como pano de fundo das palavras pronunciadas por Francisco em Louvain, quase na forma de uma justificação parcial, há uma “literatura” que floresceu em partes de Roma nos últimos 50 anos. A literatura não é apenas romance ou poesia, mas também encíclica, instrução, nota...
Dois exemplos dessa produção literária menor, mas não irrelevante, encontram-se em um texto de 1988 e depois em um de 2010. Se os lermos como textos de literatura, descobriremos subitamente seu lado cômico e trágico também.
Quando um pensamento não é mais capaz de imaginação, tende a reler todo o passado de forma rígida, projetando para trás suas próprias preocupações e às vezes até perdendo o senso do limite e do bom gosto.
Um exemplo muito singular de “ficção” aparece com evidência em um trecho de Mulieris dignitatem, n. 26. Relato-o na íntegra:
“Se Cristo, instituindo a Eucaristia, a ligou de modo tão explícito ao serviço sacerdotal dos apóstolos, é lícito pensar que dessa maneira ele queria exprimir a relação entre homem e mulher, entre o que é ‘feminino’ e o que é ‘masculino’, querida por Deus, tanto no mistério da criação como no da redenção. É na Eucaristia que, em primeiro lugar, se exprime de modo sacramental o ato redentor de Cristo Esposo em relação à Igreja Esposa. Isto se torna transparente e unívoco, quando o serviço sacramental da Eucaristia, no qual o sacerdote age ‘in persona Christi’, é realizado pelo homem. É uma explicação que confirma o ensinamento da Declaração Inter insigniores, publicada por incumbência do Papa Paulo VI para responder à interrogação sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial.”
Esse exemplo de “ficção” pode despertar preocupação ou um sorriso. Com um exercício de imaginação obstinado, a seu modo destemperado, tenta-se passar da instituição da eucaristia para a reserva masculina como uma demonstração de autoridade da diferença estrutural entre masculino e feminino na criação e na redenção, esquecendo totalmente a delicadeza das passagens entre o regime simbólico e o regime sexual da expressão.
Esse procedimento literário descontrolado, quando reconhecido literariamente, permite reconhecer que um preconceito – isto é, como uma estrutura imutável de masculino e feminino – pode ser tão forte a ponto de curvar toda a tradição eucarística, apostólica, simbólica e racional a uma frase que pretende “demonstrar” simplesmente a assunção de um documento anterior, igualmente fraco.
Um olhar literário permite se defender desse texto pretensioso e contraditório demais. Se tentarmos lê-lo como se fosse uma passagem de “The Pickwick Papers”, de Charles Dickens, podemos entendê-lo até o fim.
Um exagero paradoxal, uma pretensão desproporcional e sem fundamento, precisamente aquela que tanto agradava no estilo de Dickens, ajuda-nos a tomarmos distância de um texto que seria extremamente infeliz se fosse levado demasiadamente a sério.
Podemos encontrar outra ficção notável sobre o tema no campo da lei canônica. É claro que se, em 2010, nunca antes de então, inventamos um novo “crime mais grave”, que é posto lado a lado ao atentado à pessoa do papa ou ao sacrilégio à eucaristia, e assim se define o caso de “tentativa de ordenação de uma mulher", um olhar meramente institucional registra a novidade, de modo impassível.
Um olhar poético fica impressionado com as semelhanças com “Os Irmãos Karamazov” ou com “A revolução dos bichos”: o direito penal como solução para um debate cultural parece uma forçação exagerada e quase descarada. A tal ponto que pode até sugerir um paralelo cinematográfico com “Bananas”, de Woody Allen. Um “ordenamento” penal tão severo, para conservar com autoridade a reserva masculina, na ausência de uma argumentação teológica sólida, causa uma grande impressão e pode até fazer sorrir, contanto que permaneçamos lúcidos. Pode ser simplesmente “registrado” somente se a sensibilidade parecer comprometida ou até mesmo entorpecida pela urgência de uma afirmação apodítica, ditada pelo medo.
Os recursos que a literatura oferece ao leitor permitem redimensionar os fenômenos aparentemente imutáveis e dispor-se a superá-los de acordo com a ciência e a consciência. Com uma releitura cômica e trágica das coisas, como a literatura nos permite incansavelmente, o olhar se aguça e o discernimento se afina. Não se poderá mais crer que a questão feminina possa ser liquidada com um acúmulo arbitrário de figuras simbólicas, a serviço de uma ontologia estática, ou como um “atentado à ordem pública” ou à vontade das mulheres de “fazer coisas de homens”.
Nesses preconceitos, reconhecemos, graças à literatura, muitas coisas cômicas e não poucas coisas trágicas. Só assim é que a mulher no espaço público, reconhecida não como uma infração da ordem, mas como “sinal dos tempos”, é plenamente integrada em uma doutrina verdadeiramente especializada em humanidade real, não bloqueada em abstrações que são ao mesmo tempo assustadoras e convenientes.
Ler Francesco e Virginia em paralelo nos faz bem para caminhar nessa direção.