19 Agosto 2024
O dia 15 de agosto ocupa um lugar especial na França desde que Luís XIII, em 1638, fez o “voto” de consagrar seu reino à Virgem Maria e instituir a sua festa. Esse gesto, que reflete séculos de referência monárquica à mãe de Cristo, manteve a ressonância política até hoje.
A reportagem é de Youness Bousenna, publicada por Le Monde, 15-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Durante três séculos, uma curiosa cena em mármore pode ser vista no centro da Catedral de Notre-Dame, em Paris. No centro do altar-mor está a Virgem Maria olhando para o céu, cercada por dois homens ajoelhados que, como muitos visitantes não sabem, eram dois dos mais ilustres monarcas franceses: Luís XIV (que reinou de 1643 a 1715) e seu pai Luís XIII (1610-1643). Esse conjunto espetacular, criado nos últimos anos do reinado do Rei Sol, é mais do que um simples presente de um filho para seu progenitor. Cristaliza um desejo que une a França a essa grande figura do cristianismo: o voto de Luís XIII, feito em 1638, de consagrar seu reino à Virgem Maria e fazer do dia 15 de agosto o dia em que ela seria celebrada. “Tomando a Santíssima e gloriosa Virgem como protetora especial de nosso reino, consagramos a ela, em particular, nossa pessoa, nosso estado, nossa coroa e nossos súditos”, formalizava o ato oficial que era a declaração de 10-02-1638. Esse texto, que tinha força de lei, estabelecia o programa de celebrações que seriam realizadas todos os anos para a Assunção, a festa que, na tradição católica, marca a elevação corporal de Maria ao céu: a partir de então, seriam realizadas orações e procissões em todo o reino para “implorar sua proteção neste dia”.
Naquela época, restavam ao filho de Henrique IV e Maria de Médicis apenas cinco anos de vida e esse voto formalizava o alívio por ter escapado de grandes perigos ao longo de sua vida. Luís XIII teve que enfrentar as conspirações arquitetadas por seu irmão Gaston d'Orléans (1608-1660), a Guerra dos Trinta Anos que inflamou a Europa entre 1618 e 1648 e o imenso perigo que há muito pairava sobre sua dinastia: sua incapacidade de gerar um herdeiro para o trono. A gravidez de sua esposa, Ana da Áustria, em 1638, após vinte e três anos de casamento estéril, foi vista como uma graça da Virgem. A criança, o futuro Luís XIV, recebeu o nome de Louis-Dieudonné, uma lembrança dessa providência. “O nascimento era visto como um milagre, uma resposta divina à consagração do reino”, aponta o historiador de arte Léo Minois (Les Cahiers de Framespa, 2012). É nesse contexto que nasce o voto de Luís XIII, incentivado por seu ministro de Estado Richelieu (1585-1642), consagrando um longo caminho que liga a Virgem ao poder francês.
“Regnum Galliae, regnum Mariae": ‘O reino da França é o reino de Maria’, de acordo com uma frase atribuída ao Papa Urbano II (1088-1099). No século XX, seu distante sucessor João XXIII acrescentou: “Na ordem da Providência, toda nação tem uma missão e, às vezes, um lema é suficiente para descrevê-la. Agora, quando dizemos: 'Regnum Galliae, regnum Mariae', afirmamos perfeitamente o testemunho de honra e de amor dos filhos e dos muitos descendentes de Clóvis”.
É claro que a Assunção (chamada de Dormição por Roma até 770 e pelos ortodoxos ainda hoje) é, antes de tudo, uma história cristã, desde o século VII, quando o Papa Teodoro a introduziu na liturgia, até 1950, quando Pio XII tornou essa elevação um dogma oficial, mas também se tornou uma história francesa.
A França, “filha primogênita da Igreja”, de acordo com uma expressão cunhada no século XIX (atestada pela primeira vez em 1841 em um discurso do dominicano Henri-Dominique Lacordaire em Notre-Dame de Paris) foi por muito tempo “o reino de Maria”. De acordo com a historiadora Sylvie Barnay, é preciso voltar ao coração da Idade Média para compreender essa intrincada relação.
Carlos Magno, fundador da dinastia carolíngia, foi coroado imperador do Ocidente no 800.
“A Virgem Maria foi então gradualmente subordinada ao exercício do poder e os ícones que a representavam foram postas a serviço de uma soberania definida como uma realeza sagrada”, explica essa professora de história e teologia do cristianismo na Universidade de Lorraine: “Foram então expressas importantes teologias que apresentavam a Virgem Maria como soberana dos anjos e dos homens, reinando acima das hierarquias terrenas e celestiais”.
Depois vieram os reis otonianos, que governaram as terras germânicas entre os séculos X e XI, e que deram origem a uma nova dimensão da figura mariana, relata a historiadora: “Ela se tornou um modelo de rainha, que perpetuava a linhagem real ao dar à luz um filho homem”. Então, por volta do século XII, no contexto da reforma gregoriana, que afirmava a primazia do poder papal, surgiram as primeiras imagens da coroação de Maria, fornecendo um tema iconográfico que se espalharia pelos portais das igrejas góticas. É a época das catedrais e logo a Idade Média dá lugar a uma nova era.
O século XV viu o surgimento de um conceito de espaço político como nação. “A proteção do reino da França, até então sob a égide de São Miguel, passa a estar sob o patrocínio da Virgem Maria”, observa Sylvie Barnay. Com o início da consolidação absolutista do poder real, “a plasticidade da imagem mariana, apresentada como uma mulher forte que dá à luz um filho e como uma mãe em luto aos pés da cruz, servia perfeitamente ao propósito da monarquia em um contexto de guerras incessantes e dificuldades econômicas”.
O voto de 1638 é, portanto, o resultado de séculos de união entre o poder e a mãe de Cristo, ao mesmo tempo em que ancora um feriado público no calendário nacional que perdurará até hoje. Entre monarquia e república, o juramento foi por muito tempo abalado por convulsões políticas.
Renovado pela primeira vez por Luís XIV em 1650, depois por Luís XV em 1738, o juramento foi revogado em 14 de agosto de 1792 pela Assembleia Legislativa nascida da Revolução, mas restabelecido por Luís XVIII em 1814, durante a Restauração, e finalmente abolido em 1831 por Luís Filipe, no início da Monarquia de Julho.
O voto teve, no entanto, outra posteridade paralela. Embora a celebração da Virgem passasse por idas e vindas dependendo do regime, o dia 15 de agosto permaneceu como um “dia festivo” desde o momento em que foi instituído como tal por Napoleão em 1806. A Assunção coincidia com o nascimento do imperador e, portanto, a festa foi chamada de... Saint-Napoléon. Em fevereiro de 1852, três meses após o golpe de estado que decretava o Segundo Império, o sobrinho Luís Napoleão - mais tarde Napoleão III - confirmou a celebração da “Festa do Imperador”.
A decisão definitiva de transferir o feriado nacional para 14 de julho foi tomada em 1880, durante a Terceira República. Desde então, a Assunção, que é um dos onze feriados públicos reconhecidos por lei, não tem mais nenhum significado político. Pelo menos oficialmente, porque a figura mariana continua a ter uma popularidade única na França. Isso é demonstrado por Dominique Le Tourneau: em seu Guide des sanctuaires mariaux de France (Artège, 2019), esse professor emérito de direito canônico contou cerca de dois mil e novecentos santuários marianos frequentados em todo o país, ou seja, cerca de trinta em cada departamento!
“O número de lugares de devoção dedicados a Nossa Senhora na França é impressionante”, exclama esse padre do Opus Dei, que não parou por aí. O autor do Dictionnaire encyclopédique de Marie (Desclée de Brouwer, 2015) também contou o número de aparições marianas: “De setecentos e cinquenta no mundo inteiro, contei um terço na França”.
Entre esses eventos místicos, cinco grandes aparições ocorreram no século XIX, como a de Lourdes em 1858. Várias tiveram ressonâncias políticas, como a aparição de Pontmain (Mayenne) em 17 de janeiro de 1871, no auge da derrota da França contra a Prússia. A retirada do inimigo foi vista como o resultado dessa intervenção sobrenatural.
O episódio fez com que a peregrinação a Pontmain ganhasse uma “conotação nacional, até mesmo nacionalista”, em particular por meio da iconografia que retrata Maria parando o inimigo nas margens do Mayenne, contrapondo “seu Cristo sangrando aos alemães, que pararam apavorados”, relata a historiadora Brigitte Waché (Annales de Bretagne et des pays de l'Ouest, 2021).
Esse “ciclo de aparições da Virgem” deu início à nova era de “peregrinações em massa”, possibilitadas pelo desenvolvimento das ferrovias, analisa o historiador Daniel Moulinet: “A particularidade do século XIX é que a devoção a Maria nasce da base dos fiéis”. Dessa forma, “o político e o popular se unem”, observa esse professor da Universidade Católica de Lyon.
O próprio Papa João XXIII observou essa exceção francesa em um discurso em 1959: “Essas aparições tão especiais de Maria em meados do século XIX continuam sendo um título de honra especial para a França, terra abençoada de santos e heróis, onde a história do cristianismo escreveu páginas gloriosas e inesquecíveis”. Depois de ter sido o “Reino de Maria”, a França se tornou a “República da Virgem”?
Foi no auge da Terceira República que a Santa Sé decidiu homenagear a França, proclamando Maria “padroeira principal da nação francesa” e Joana D'Arc “segunda padroeira celestial”. A carta apostólica, datada de 2 de março de 1922, foi assinada por Pio XI (1922-1939). Mas deveria ter sido assinada por seu antecessor, Bento XV (1915-1922), que havia morrido poucas semanas antes e cujo desejo fazia parte de uma política de reaproximação com a República.
Porque, por trás do símbolo, há sempre a política. A proclamação da Virgem Maria como padroeira da França sela a reconciliação entre a França e o Papado, que havia rompido as relações diplomáticas após a lei de 1905 que separava a Igreja do Estado. O contexto então muda. Após o massacre da Grande Guerra, o Bloco Nacional, uma coalizão católica e nacionalista, sobe ao poder em 1919.
De fato, a “Câmara do horizonte azul” votou, sob proposta do deputado e acadêmico Maurice Barrès (1862-1923), um “dia nacional de Joana D'Arc” em 1920, poucas semanas após sua canonização por Bento XV. “O espírito de conflito dá lugar à distensão”, observa Daniel Moulinet, que vê no gesto de Pio XI “a conclusão de um processo” que confirmou a “profunda tradição” que associa a Virgem à França.
Sylvie Barnay lamenta que isso às vezes possa levar à “instrumentalização” dessa figura por aqueles que favorecem uma “visão ultracatólica”. A procissão de 15 de agosto também se tornou um símbolo para os movimentos fundamentalistas. Mas não só: em 1988, o Cardeal Jean-Marie Lustiger (1926-2007) tomou a iniciativa de celebrar novamente o voto de Luís XIII, considerando-o um sinal da “contribuição específica da Igreja para a história nacional”. Naquele ano se comemorava o 350º aniversário da declaração real, enquanto o ano seguinte seria o bicentenário da Revolução Francesa. Marie então deu lugar a Marianne.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Festa da Assunção, ou seja, a história política de uma devoção francesa à Virgem Maria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU