01 Agosto 2024
"Não desejamos que nosso sangue siga sendo derramado no Pantanal profundo e em outras partes do país, onde a ausência do Estado brasileiro denota ser parte de um projeto maior, o de nos exterminar física e culturalmente. Um projeto desse tipo jamais terá sucesso, asseguramos", escrevem os membros do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal em carta aberta direcionada ao presidente Lula e enviada ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Excelentíssimo Sr. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Nós, membros do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal, vimos a público dar as boas-vindas a Vossa Excelência e à comitiva que acompanha a Presidência da República à cidade de Corumbá, Mato Grosso do Sul, conhecida como Capital do Pantanal.
Resolvemos escrever esta respeitosa Carta Aberta com a intenção de que nossas reivindicações possam chegar ao senhor e ecoar de maneira positiva em sua mente e em seu coração, bem como igualmente nas pessoas que o assessoram no governo central. Sua eleição foi muito comemorada pelos povos originários e com ela a renovação da esperança em um futuro melhor, especialmente para que possamos viver de acordo com nossa maneira de ser e estar no mundo.
Desejamos tão somente viver à nossa maneira tradicional e em nossos territórios, isto é, viver em paz, com segurança, tranquilidade, solidariedade, fartura de alimentos, acesso à educação escolar e à saúde indígena, e em harmonia com os recursos ambientais do Pantanal. Para isso, exigimos que nossos direitos sejam respeitados e não aceitamos retrocessos em relação ao que está assegurado na Carta Constitucional de 1988. Repudiamos de maneira veemente toda e qualquer proposta inconstitucional de marco temporal, pois para nós o único marco temporal que aceitamos ou é o ano de 1492 ou o de 1500. Afora isso, trata-se de proposituras colonialistas para legalizar a propriedade privada ilegal de terras tradicionalmente ocupadas.
Somos um povo canoeiro antiguíssimo, cujos antepassados mais longínquos aqui chegaram em temporalidades ancestrais, milênios antes do primeiros invasores europeus pisarem pela primeira vez no continente americano. Durante mais de 8,4 mil anos, os povos originários preservaram e realizaram mudanças positivas nas paisagens do Guadakan, como chamamos o Pantanal na língua mãe, a exemplo do plantio de matas e palmeirais, a construção de solos férteis e o cuidado permanente com as águas. Nunca promovemos incêndios avassaladores, extinção de animais, derrubada de grandes extensões de matas, genocídio e outras tantas ações negativas. Portanto, não podemos e não aceitamos ser culpabilizados pelas ações dos brancos ricos, cuja ambição no Pantanal é a busca desmedida pelo lucro sem fim.
Apesar de nossa antiguidade milenar e de tanto termos feito pelo Brasil, como a defesa do território nacional durante a Grande Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), somos um dos povos menos conhecidos e assistidos pelo Estado Brasileiro e pela sociedade nacional na região pantaneira. Nos últimos 100 anos, temos sofrido um doloso processo invisibilidade étnica, seguido da usurpação de grande parte das terras e águas tradicionalmente ocupadas. Apenas a partir deste ano, fomos positivamente surpreendidos com duas expedições (Expedição Guató e da Expedição Técnica Guató), realizadas na segunda quinzena de abril de 2024, com a presença de diversas instituições e agentes do Estado, os quais efetivamente vieram ao nosso encontro com a intenção de prestar ajuda.
Por isso, senhor Presidente, informamos que atualmente temos três comunidades oficialmente reconhecidas pela FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) no Pantanal: Aldeia Uberaba (Terra Indígena Guató) e Aldeia Barra do São Lourenço (Terra Indígena Barra do São Lourenço), em Corumbá-MS; Aldeia Aterradinho e Aldeia São Benedito (Terra Indígena Baía dos Guató), em Barão de Melgaço-MT. Outras tantas seguem invisibilizadas, como é o caso da comunidade do Paraguai-Mirim, em Corumbá. A primeira terra indígena está regularizada e a comunidade reivindica a demarcação de uma outra área anexa, correspondente à parte da Baía Uberaba, que ficou de fora dos estudos oficiais concluídos décadas atrás. A segunda ainda não foi objeto de identificação e delimitação por parte do órgão indigenista oficial. A terceira tinha sido homologada em 2018 e sua comunidade reivindica a conclusão da regularização fundiária.
Portanto, temos algumas reivindicação a fazer, listadas na sequência.
Primeira, regularização de todas as nossas terras tradicionalmente ocupadas, questão decisiva à preservação ambiental do Pantanal e à própria sobrevivência da humanidade. Como o senhor e sua equipe bem sabem, os povos originários podem ser minoria na sociedade nacional, mas somos nós que defendemos para as matas e florestas, e, consequentemente, a sobrevivência da população brasileira e mundial em tempos de mudanças climáticas.
Segunda, a constituição de brigada de combate a incêndios em cada uma das três comunidades oficialmente reconhecidas, cujo trabalho indígena realizado à preservação ambiental seja devidamente remunerado, haja vista que apenas agimos para apagar os incêndios que, na imensa maioria dos casos, ocorrem em propriedades privadas e de lá atingem nossos territórios.
Terceira, atendimento por parte SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) à comunidade da Aldeia Barra do São Lourenço, assim com o oferecimento naquele território de um estabelecimento de educação escolar indígena com o ensino público nos níveis fundamental e médio. Soma-se a isso, a necessidade de sua inclusão em algum programa de segurança alimentar, haja vista os prejuízos sofridos desde 2020, sobretudo, em face dos incêndios que assolaram a região e destruíram suas roças tradicionais.
Quarto, implementação de um programa de apoio à agricultura familiar, pois no momento o Pantanal enfrenta uma grande seca e nossas plantações passaram a necessitar, pela primeira vez, de equipamentos para levar água até lugares distantes dos cursos d’água, onde a semeadura não tem prosperado nos últimos anos.
Quinto, criação de uma aldeia urbana na cidade de Corumbá, onde muitas famílias indígenas residem, cuja área servirá para reuni-las em um mesmo espaço e para o desenvolvimento de atividades que valorizem a sociodiversidade regional e possam contribuir com o turismo cultural. Também servirá de moradia segura para nossos filhos estudarem nas faculdades e universidades da região, e depois regressarem a nossas comunidades.
Sexto, repatriamento para instituições museológicas do Brasil de todas as peças arqueológicas e etnográficas retiradas do Pantanal, relativas aos nossos ancestrais, existentes em países da Europa e de outras partes das Américas.
No mais, senhor Presidente, desejamos a Vossa Excelência e à sua equipe muita saúde, sabedoria e capacidade política para promover as mudanças positivas tão esperadas por parte de nós, povos originários, e da imensa maioria do povo pobre e trabalhador do Brasil. Não desejamos que nosso sangue siga sendo derramado no Pantanal profundo e em outras partes do país, onde a ausência do Estado brasileiro denota ser parte de um projeto maior, o de nos exterminar física e culturalmente. Um projeto desse tipo jamais terá sucesso, asseguramos.
Pantanal, 30 de julho de 2024.
Coordenação do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal
Carlos Henrique Alves de Arruda
Cacique Aldeia Aterradinho
Denir Marques da Silva
Cacique da Aldeia Barra do S. Lourenço
Osvaldo Correia da Costa
Cacique da Aldeia Uberaba
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Ausência do Estado brasileiro visa exterminar física e culturalmente os povos originários. Carta aberta ao Presidente Lula - Instituto Humanitas Unisinos - IHU