26 Julho 2024
Estudo de aptidão agrícola realizado pela Serasa Experian e divulgado recentemente sugere um potencial de expansão para o plantio da soja de até 36,6 milhões de hectares em quatro biomas brasileiros – Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Pampa – apenas “sobre pastagens aptas para a soja e em linha com as exigências crescentes dos mercados consumidores por produtos livres de desmatamento."
A carta é publicada por Coalizão Pampa – Resgatando o Bioma, enviada à equipe do Instituto Humanitas – IHU.
O estudo levou em conta propriedades privadas com Cadastros Ambientais Rurais (CAR) declarados. Os dados foram segregados por bioma, sendo as áreas de pastagens aptas classificadas por nível de degradação (ausente, intermediária e severa) pelo Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás (LAPIG/UFG). Entretanto, a metodologia não faz distinção entre pastagens plantadas e campos nativos[1].
O Cerrado e a Amazônia são os biomas com maiores áreas de pastagens plantadas e campos nativos, que segundo esse estudo, estariam disponíveis para conversão agrícola, 17,6 milhões de ha (Mha) e 11,9 Mha, respectivamente. A Mata Atlântica disporia de 4,0 Mha, e o Pampa de 3,1 Mha de ecossistemas naturais e degradados supostamente aptos ao plantio.
O bioma Pampa tem a maior proporção de pastagens plantadas e campos nativos que, segundo esse estudo, seriam aptos para a conversão agrícola sem degradação, com 52% (1,6 Mha) dos 3,1 Mha totais. Em termos absolutos, o Rio Grande do Sul é o sexto estado em área disponível por esse critério. Não há previsão de uso agrícola no bioma Mata Atlântica nesse estado.
É inquestionável o mérito de qualquer ação voltada a promover o uso do solo de áreas já convertidas e degradadas como alternativa à conversão de novas áreas mediante a supressão de vegetação nativa. Entretanto, este não é o resultado esperado a partir da implementação das propostas constantes no estudo de aptidão agrícola realizado pela Serasa Experian. Muito pelo contrário.
A proposta da Serasa Experian de expansão do cultivo de soja nas áreas classificadas como “pastagens” suscita grande preocupação ao ignorar o fato de que incluem campos nativos que constituem remanescentes de vegetação nativa cujo uso e exploração são regrados por uma série de normas legais, com destaque para a Lei federal n° 12.651/2012 - Lei de Proteção da Vegetação Nativa e da Lei federal n° 11.428/2006 da Mata Atlântica.
O estudo se baseia em um entendimento desatualizado que, incorretamente, reconhece valor somente às florestas, negligenciando as formações naturais não florestais do Brasil [2], tais como os campos nativos presentes em todos os biomas avaliados – Pampa, Mata Atlântica (campos de altitude), Amazônia (lavrados) e Cerrado (campos limpos e sujos). Utiliza, assim, de um pressuposto equivocado ao considerar como aptas à conversão agrícola campos nativos usados como pastagens naturais, os quais estão sujeitos às limitações legais à supressão.
Não há como se tratar da mesma forma pastagens cultivadas e campos nativos. Os campos nativos são ecossistemas de ocorrência natural nos biomas, com flora e fauna típicas. Mesmo quando utilizados para pecuária extensiva, não perdem suas características de formações naturais. Também, o eventual uso do fogo não descaracteriza os campos nativos, podendo ser inclusive um fator de distúrbio inerente a esses ecossistemas.
Os campos nativos são responsáveis por diversos serviços ambientais: armazenam grandes volumes de carbono no solo, fornecem alimento a criações domésticas, são habitat de polinizadores e controladores de pragas agrícolas, protegem os solos da erosão e regulam o ciclo hídrico. Exercem, assim, papel central na prevenção e mitigação dos efeitos já vivenciados num contexto de emergências climáticas, inclusive para áreas agrícolas.
Já as pastagens cultivadas constituem áreas de plantios de espécies forrageiras geralmente exóticas, tendo sido as espécies vegetais nativas suprimidas para a implantação da própria pastagem ou de outros usos. Constituem, a priori, áreas passíveis de uso agrícola.
No caso do bioma Pampa, por exemplo, mesmo que se considere que parte dos seus campos nativos é passível de supressão legal, cabe questionar: é sustentável uma atividade que promove a supressão de campos nativos (ecossistema natural) numa escala como a proposta no estudo da Serasa Experian, ou seja, 3,1 milhões de ha? Qual o impacto dessa expansão num cenário de mudanças climáticas e frente a compromissos como os da Convenção da Diversidade Biológica (Convention on Biological Diversity)?
O Pampa e o Cerrado foram os biomas brasileiros que mais perderam área de vegetação nativa entre 1985 e 2022, segundo a plataforma Mapbiomas [3]. O bioma Pampa perdeu 2,8 milhões de hectares ou o equivalente a 24% das suas formações originais neste período, passando de uma cobertura de 48% para 34% do seu território. Essa perda se deve à expansão de monoculturas agrícolas, principalmente a soja. [4]
Merece menção ainda o cuidado necessário à utilização dos dados disponíveis no CAR tendo em vista que diversos estados, a exemplo do Rio Grande do Sul, ainda não iniciaram a homologação de seus cadastros. Para os estados do sul do Brasil, há também o agravante de que os produtores rurais comumente declararam no CAR seus campos nativos como área rural consolidada como forma de burlar as exigências legais para sua conversão em pastagens plantadas ou cultivos agrícolas e silviculturais.
Já passou da hora de os agentes econômicos envolvidos na cadeia do agronegócio entenderem que não somente as árvores e florestas estão sujeitas à proteção legal, e que as formações naturais não florestais são importantes inclusive para a manutenção das áreas já cultivadas. Ademais, em um cenário já vigente de extremos climáticos, há necessidade premente de se estabelecer limites à expansão agrícola, especialmente das monoculturas de soja, sobre fisionomias naturais em todos os biomas brasileiros.
O Brasil precisa recuperar o caráter virtuoso de sua sua sociobiodiversidade, limitando as monoculturas que vêm degradando o solo e contaminando a água, os ecossistemas e a saúde humana. Ou o setor financeiro entende isso, ou nosso país não terá nem economia e nem futuro socioambiental sustentáveis.
Porto Alegre/RS, 29 de maio de 2024.
Associação dos Funcionários da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul - AFFZB
Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e do Plano Especial de Cargos do IBAMA-PECMA no Estado do Rio Grande do Sul - ASIBAMA-RS
Associação dos Servidores da FEPAM - ASFEPAM
Associação dos Servidores da Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado do RS - ASSEMA
Associação Amigos do Meio Ambiente de Guaíba - AMA-Guaíba
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural - Agapan
Associação para Grandeza e União de Palmas - AGrUPa
Centro de Estudos Ambientais - CEA
Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa
Ecos do Pampa-UERGS
Grupo de Estudos Frutifica-Ação/UERGS
Grupo Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade TEMAS/UFRGS
IGRÉ-Associação Sócio-Ambientalista
Instituto Curicaca
Instituto de Conservação Eco dos Campos
Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais - INGÁ
Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul - NEJ-RS
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas - NEPRADE/UFSM
Rede Campos Sulinos
Rede Sul de Restauração Ecológica
Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul - SEMAPI RS
Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Poder Executivo do Rio Grande do Sul-SINTERGS
UPP Camaquã - União pela Preservação do Rio Camaquã
[1] Parente et al., 2019. Assessing the pasturelands and livestock dynamics in Brazil, from 1985 to 2017: A novel approach based on high spatial resolution imagery and Google Earth Engine cloud computing. Remote Sensing of Environment, v. 232, p. 111301.
[2] Overbeck et al., 2022. Placing Brazil’s grasslands and savannas on the map of science and conservation. Perspectives in Plant Ecology, Evolution and Systematics, 53: 125687.
[3] Mapbiomas, 2023. Coleção 8 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso da Terra do Brasil. 14 p. Disponível aqui.
[4] Capoane, V.; Kuplich, T. M, 2018. Expansão da agricultura no bioma Pampa. In: 8° Reunião de Estudos Ambientais (REA), Porto Alegre, p. 1-9.
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Estudo da Serasa Experian tem ufanismo do tipo “República da Soja” e nada de sustentabilidade e adaptação às mudanças climáticas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU