26 Junho 2024
Servidores da área ambiental criticam subordinação da proteção do meio ambiente a interesses de alguns grupos econômicos que aparelham o Estado.
A reportagem é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 25-06-2024.
Diminuição do corpo funcional sem reposição adequada, redução dos orçamentos dos órgãos ambientais, desconstrução do arcabouço legal ambiental, aparelhamento empresarial em instâncias da área ambiental, desconstrução nominal e conceitual dos órgãos ambientais e falta de participação dos servidores nos debates e decisões do governo: esses elementos constituem, na avaliação de profissionais concursados do Estado, uma espécie de jogo de seis erros que vêm sendo praticado nos últimos governos estaduais do Rio Grande do Sul, que tem como resultado um processo crescente de desmonte da política ambiental e de instrumentos de proteção do meio ambiente.
Para entender melhor como essas práticas vêm acontecendo, o Sul21 conversou com servidores da Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (Fepam). A conversa também abordou o atual estado da fundação, marcado por uma série de precariedades, que vão desde a defasagem do corpo funcional, passando pela falta de infraestrutura adequada aos desafios que o órgão enfrenta e chegando às sucessivas reduções orçamentárias. Rafael Fernandes é geólogo, analista ambiental e diretor do Semapi, servidor concursado da Fepam desde 2016. Luis Fernando Perelló, doutor em Ecologia e Recursos Naturais, é analista concursado da fundação desde 2011, trabalhando atualmente na divisão de Infraestrutura e Saneamento. Glaucus Vinicius Biasetto Ribeiro, geólogo, bacharel em História, também é analista concursado da Fepam, trabalhando no Departamento de Qualidade Ambiental.
Na conversa com Rafael, Luis Fernando e Glaucus, servidores que vivenciam o dia-a-dia de um dos principais órgãos ambientais do Estado, ficam evidenciados os obstáculos e dificuldades que os profissionais da área enfrentam para ajudar a construir uma política ambiental no RS. Eles detalham esse jogo de erros que, na verdade, são escolhas decorrentes de uma visão que subordina o cuidado com o meio ambiente a interesses particulares de alguns grupos econômicos do Estado.
A Fepam tem uma defasagem histórica quanto ao número de servidores, que se agravou nos últimos anos. Pelo que estabelece a lei 9.077, de 4 de junho de 1990, que marcou a criação da fundação, a entidade deveria ter cerca de 700 servidores para atender todo o Estado, mas hoje conta com cerca de 300 servidores ao todo, entre analistas e pessoal administrativo. As tarefas a cargo da fundação, conforme estabelece a referida lei são: “atuar como órgão técnico do Sistema Estadual de Proteção Ambiental, fiscalizando, licenciando, desenvolvendo estudos e pesquisas e executando programas e projetos, com vistas a assegurar a proteção e preservação do meio ambiente no Estado do Rio Grande do Sul”.
A falta de servidores adquire atualizada relevância na medida em que a Fepam vai se deparar agora com um novo desafio relacionado à reconstrução do Estado após as enchentes. A Fepam será chamada a tomar decisões relativas a licenciamento ambiental no contexto de um cenário de catástrofe climática. Esse novo desafio, assinalam os servidores, deverá trazer um aumento das demandas e da carga de trabalho sem um correspondente aumento do corpo funcional. Um concurso foi realizado em 2022, prevendo o ingresso de 50 servidores, mas ninguém foi chamado até agora.
“Essa defasagem é histórica, mas recentemente ela se agravou com saídas significativas – cerca de 50 – de servidores que se aposentaram”, assinala Rafael Fernandes. E os concursos realizados na última década estão longe de terem recuperado essas perdas no quadro funcional. O último concurso que teve servidores chamados efetivamente foi o de 2015. Em relação ao concurso realizado em 2022, ninguém foi chamado até agora.
Os servidores públicos que trabalham na área ambiental convivem há anos com pressões de setores empresariais e seus braços políticos que consideram os processos de licenciamento ambiental muito rígidos e demorados. Agora, com a catástrofe climática que se abateu sobre o Estado, esse debate adquire uma dimensão renovada, mostrando o custo de não levar a legislação e o conhecimento ambiental a sério.
Os analistas da Fepam citam como exemplo a legislação que estabelece a proteção para as áreas de preservação permanente, como são as áreas de beira de rios. Essa legislação define as distâncias que devem ser observadas para que haja uma mínima proteção. Essas áreas, idealmente, devem ser vegetadas, porque a vegetação cumpre um papel de proteção importante. No entanto, nos últimos 10, 15 anos, o Rio Grande do Sul está sofrendo uma desconstrução do arcabouço legal ambiental como nunca visto antes. E essa desconstrução está retirando as mínimas proteções que existiam nestas áreas, a um custo que está se vendo agora de modo dramático.
Outro exemplo apontado pelos servidores é a legislação recentemente aprovada no Estado que permite que se intervenha nas Áreas de Preservação Permanente para construir reservatórios d’água. Para eles, esses empreendimentos não são de utilidade pública nem de interesse social, mas sim de interesse privado, pois são, basicamente, reservatórios para irrigar lavouras. Ocupar essas áreas significa colocar gasolina nesta fogueira, alertam, representando mais um passo na direção de desproteger ainda mais o que já está deficitário em relação à proteção. O mínimo que se admite de proteção nessas áreas é 30 metros, conforme foi estabelecido há muito tempo com base em critérios técnicos. Só que os sucessivos eventos climáticos extremos que o RS vem vivendo estão mostrando que essa margem é insuficiente para garantir a proteção das pessoas e de seus patrimônios.
O Supremo Tribunal Federal (STF) pediu explicações ao governo do Estado sobre a aprovação deste projeto. Em sua resposta, o governo estadual disse que aprovou esse projeto com base em uma “vontade da sociedade”. Os servidores da Fepam contestam essa afirmação, assinalando que a sociedade nunca foi ouvida sobre isso e que, mais uma vez o governo se vale de inverdades para poder vender seu peixe, como fez com o Código Estadual do Meio Ambiente, que foi modificado praticamente na sua totalidade, com o argumento de que isso representava uma modernização e o anseio da sociedade. A sociedade nunca se manifestou sobre isso, reiteram os profissionais da área ambiental. “Nem a sociedade, nem técnicos, nem ninguém”, garantem.
Essa desconstrução, acrescentam, vem retirando dos órgãos ambientais as ferramentas necessárias para fazer uma boa gestão ambiental a partir do licenciamento. A cada dia, os servidores se deparam com um novo elemento para fragilizar o licenciamento ambiental. Hoje existem no Congresso Nacional pelo menos 28 projetos de lei que tratam da desconstrução da legislação ambiental. E eles vêm sendo aprovados a toque de caixa. Recentemente, por exemplo, foi aprovada a isenção de licenciamento para o plantio de espécies exóticas. Com isso, a silvicultura não precisa mais de licenciamento, com base no argumento de que essa atividade não geraria impacto ambiental, “o que é um absurdo”, criticam os servidores.
Além de não serem chamados para debater as diretrizes da política ambiental, os servidores convivem com uma pressão permanente por parte de entidades empresariais. Há uma ideia equivocada, diz Luis Fernando Perelló, de que a Fepam obstaculiza o desenvolvimento, “o que é outra inverdade”. “Nós somos extremamente preocupados com o desenvolvimento do Estado. Entendemos que é possível desenvolver o Estado e fazer a proteção ambiental. O que acontece é que o nosso empresariado é de um atraso fenomenal. Eles estão mais ou menos uns 40 anos atrasados. Pensam hoje mais ou menos o que se pensava na Europa há 40 anos. Só que a Europa se deu conta de que não podia mais bater na legislação ambiental. Essa visão imediatista que temos aqui está nos levando para isso que estamos vendo”.
Neste contexto, a capacidade de intervenção da sociedade na legislação ambiental é hoje muito pequena. A legislação ambiental no Rio Grande do Sul ou é aprovada na Assembleia Legislativa ou sai de resoluções aprovadas pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), cujo presidente é um representante do agronegócio, indicado pela Farsul (Federação da Agricultura do Estado do RS). Na avaliação dos servidores, há hoje dentro da Secretaria do Meio Ambiente um setor empresarial altamente privilegiado que busca intervir nas decisões da pasta que, acaba fazendo gestão para um setor, quando deveria fazer para a sociedade. “Infelizmente, o que aconteceu foi um aparelhamento do Consema”, resume Rafael Fernandes.
Perelló chama a atenção para um dado relacionado aos orçamentos destinados à área ambiental no Rio Grande do Sul. “Se você quiser matar um organismo na área pública, não precisa ir para o Diário Oficial extinguir o órgão, que sempre traz um desgaste. Basta fazer o que está acontecendo com os órgãos ambientais do Estado, ir matando pela diminuição do orçamento. Esse é o dado mais objetivo que mostra que o governo não está preocupado com a questão ambiental. Basta ver o gráfico da evolução orçamentária dos órgãos ambientais do Estado de 2001 até 2024”.
“A única vez que estivemos mais perto de 0,5% do orçamento do Estado, acrescenta, foi em 2003, no governo Olívio Dutra, quando foi criada a SEMA” (Secretaria Estadual do Meio Ambiente). Naquele ano, o orçamento chegou a 0,53% do total do orçamento do Estado. Hoje, nós não temos 0,3%. Basta ver esse gráfico para ver a evolução da desconstrução orçamentária. Isso aqui é que mata um órgão. Imagina o que era o licenciamento ambiental em 2001 e imagina as demandas surgidas a partir de 2020? As demandas só cresceram e o orçamento só veio diminuindo. Não tem tem argumento que desconstrua esse dado”.
(Fonte: Sul21)
A desconstrução não é apenas orçamentária e do corpo funcional, mas também nominal, observa Glaucus Vinicius Biasetto Ribeiro. Ele lembra que entre os anos de 2006 e 2007, durante o governo Yeda Crusius, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente mudou de nome, passando a se chamar Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. “Já era uma sutileza na forma de desconstruir a importância da área ambiental. No primeiro mandato de Eduardo Leite, ela mudou de nome, passando a se chamar Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura. Com essa mudança, a Corsan, a CEEE e a CRM foram para dentro da Secretaria do Meio Ambiente. Essa desconstrução nominal pode parecer sutil mas tem uma implicação institucional, do ponto de vista da atuação do órgão, e psicológica muito grande”.
No dia 5 de junho, Dia do Meio Ambiente, a Associação dos Servidores da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Assema) divulgou um manifesto denunciando o que definiu como “descaso” do governo Eduardo Leite com a pauta ambiental no Rio Grande do Sul. O manifesto destaca não só a insatisfação dos servidores com os salários, mas também com a falta de valorização do conhecimento técnico dos servidores que atuam na área. “Fazemos pareceres que são desconsiderados. Não somos ouvidos”, disse Pablo Pereira, presidente da Assema.
Além disso, o manifesto afirma que a participação dos servidores da Secretaria no Conselho Estadual do Meio Ambiente tem sido muito prejudicada, pois os representantes do órgão, em grande parte, são funcionários em cargos em comissão do governo do Estado e não servidores concursados com conhecimento técnico.
No dia 13 de junho, o governador Eduardo Leite empossou os membros do Conselho do Plano Rio Grande – Programa de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática do RS. Dos 178 integrantes, apenas quatro (2,2% do total) tem relação com o meio ambiente: um representante do Consema, um do Conselho Estadual de Saneamento, um do Conselho Estadual de Recursos Hídricos e um integrante do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas. Nenhuma entidade ambientalista do Estado foi convidada a integrar o Conselho.
Para tentar enfrentar esse déficit de participação e o desperdício de conhecimento, Rafael Fernandes lembra que o Semapi encaminhou, dia 24 de maio, à Assembleia Legislativa, uma proposta de criação de uma Fundação de Estudos Estratégicos, utilizando a inteligência que o Estado já possui entre seus quadros. Na proposta, o sindicato lembra que “no quadro das fundações estaduais, há profissionais com excelência e experiência, tanto na formulação quando na execução das políticas públicas, distribuídos por todos o Estado. São colegas que têm acesso a acervos e expertise para formar bancos de dados com informações estratégicas”.
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O jogo de 6 erros que desmonta a proteção ambiental no Rio Grande do Sul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU