26 Junho 2024
"'A Igreja tem salvação?' - a paradoxal pergunta faz todo sentido. Uma Igreja que viveu uma cultura milenar acreditando que ela mesma era o "depósito da fé", ou seja, lugar da salvação, desacostumou-se com a crítica interna. Confiou demais em si mesma e tornou-se palmatória do mundo. Hoje ela é questionada na sua "essência": ainda é um projeto de salvação? A resposta merece um alargamento histórico, para Kung", escreve Romero Venâncio, graduado em Teologia pelo Instituto de Teologia de Recife (ITER) e professor de Filosofia na Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Nos anos 70, quando o teólogo Hans Kung publicou Ser cristão na Europa, a Igreja Católica vivia ainda o clima do Concílio Vaticano II e toda uma reflexão sobre o processo de secularização que chegava ao(s) cristianismo(s). O desafio era evangelizar no mundo moderno. Naquele momento, a chegada dos "valores modernos" era encarada como inevitável por pessoas seculares.
A reação mais explícita dentro do catolicismo romano foi Marcel Lefèbvre e seus discípulos encastelados em alguns seminários e sua fraternidade São Pio X na vila de Écône, Suíça. Esse movimento abriu um conflito contra o Concílio Vaticano II e suas consequências pastorais e defendia o que ainda chamava de "Igreja de sempre".
Além dos lefebrvianos, nada parecia ameaçar a marcha conciliar. A teologia católica europeia liderada por Karl Rahner, parecia comemorar uma vitória (de Pirro?) dentro do mundo moderno. Só imaginava-se um processo de evangelização a partir dos pressupostos do modernismo e toda sua cultura.
A Igreja Católica não poderia mais se esconder do mundo ou tomar uma posição de combate à cultura moderna. Muita água passou debaixo dessa ponte e muita tinta no papel foi justificativa para esse caminho da Igreja. Vieram as teologias da libertação no assim chamado "terceiro mundo" e todo um esforço pastoral para acertar os ponteiros com a modernidade da vez.
Alguns teólogos nos anos 70 afirmam que a crise e a desconfiança com o mundo moderno e o papel da Igreja começariam já no final do papado de Paulo VI. A Igreja já estaria indo longe demais na implementação do Concílio Vaticano II. A baixa nas vocações e diminuição do clero, chamou atenção na década de 70. O crescimento do movimento protestante no mundo ocidental e, em particular na América Latina e África, já parecia sinal de alerta. As mudanças efetivas viriam com o papado de João Paulo II.
Os anos 80 foram marcados, internamente, na Igreja por uma reconfiguração do Vaticano e de embates. O polo volta-se para o cardeal Ratzinger e sua "Congregação para Doutrina da Fé". O Concílio Vaticano II, sim, mas com rédeas curtas, nada de marxismo, comunismo e esquerdismos ou mudanças bruscas na Igreja. A "cultura da tradição" volta com força nos meios eclesiais de maneira sorrateira.
Já na segunda metade dos 80 fica nítido uma coisa dentro da Igreja: não queremos Lefèbvre e seu seminário tradicionalista, mas jamais podemos aturar a teologia da libertação ou qualquer teologia fora dos padrões católicos. João Paulo II colocou em marcha seu peculiar conservadorismo - para fora, aparente abertura e diálogo com o mundo moderno; para dentro, mão de ferro. Houve mudanças na formação nos seminários com objetivo de formar padres devocionalistas, nomear bispos moderados e conservadores, cardeais integrados à cúria romana e dirigir um laicato tornando-o "infantilizado na fé".
O apoio aos movimentos como Opus Dei, Neocatecumenato, Carismáticos e tantos outros foi uma estratégia bem sucedida por João Paulo II, seus teólogos e pastoralistas.
Externamente à Igreja, o papado de João Paulo II e seus núncios apostólicos construíam uma fatal aliança anticomunista com Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Inglaterra). Chocaram o ovo da serpente do neoliberalismo. E, até hoje, amargamos essa ideologia, como bem dizia o Pe. José Comblin.
Com toda essa política do Vaticano e bancada a peso de ouro, o que restou na Igreja? O crescimento de toda uma movimentação pastoral de direita em todos os continentes onde a Igreja Católica tem peso político e pastoral. Ressurge uma direita católica atenta e militante. O sufocamento da Teologia da Libertação, por exemplo, representou o crescimento de movimentos conservadores, tradicionalistas pentecostais em todo o continente latino-americano. Aumentou o clericalismo e uma mentalidade de classe média dentro do catolicismo. O curto papado de Bento XVI só reforçou isso, mas sem a agilidade de João Paulo II. O resultado? Estamos assistindo, hoje, o Papa Francisco pagando caro um tributo a uma Igreja dividida cada vez mais, instigada por um ódio ao mundo moderno e um flertar com ideologias extremistas como o fascismo. Vemos a cada dia se consolidar uma extrema direita católica e um recuo da teologia moral inimaginável pós-Concílio vaticano II.
Mas, o que tem a obra de Hans Küng com tudo isso? Sendo simples e direto: tem a melhor análise desta situação, ainda. Num livro publicado originalmente em 2011, "Ist die Kirche noch zu retten?" e que foi traduzido no Brasil em 2012, com o título: "A Igreja tem salvação?" vemos uma reflexão madura de um teólogo experiente que precisava dizer o que ocorria na Igreja. Küng vinha prognosticando tudo isto desde os anos 70 e foi um dos atingidos pelo papado de João Paulo II/Ratzinger. O livro começa situando o problema da "restauração" e as suas consequências no modelo atual de Igreja. Mas era preciso ir mais fundo. O problema só pode ser compreendido em sua extensão quando situado na história da Igreja.
Hans Küng, desde a década 70, vinha enfrentando temas limites à teologia cristã: ser cristão no mundo moderno, existência de Deus em um mundo secular, diálogo inter-religioso e estudos sobre as tradições monoteístas, Filosofia e Teologia, os limites do celibato clerical obrigatório, o papel das mulheres na Igreja e o machismo, a necessidade de revisar o papel dos ministérios, a justiça social como ação da Igreja no mundo e a experiência de Deus na solidão e no ostracismo... Um teólogo que nos legou reflexão tão profunda e séria dentro e fora da Igreja merece ser ouvido nesta hora difícil. As perseguições e tentativas de punições canônicas a Küng não o levaram ao amargor da vida e da fé. Na solidão, provou a graça de Deus longe dos poderes centrais da Igreja.
"A Igreja tem salvação?" - a paradoxal pergunta faz todo sentido. Uma Igreja que viveu uma cultura milenar acreditando que ela mesma era o "depósito da fé", ou seja, lugar da salvação, desacostumou-se com a crítica interna. Confiou demais em si mesma e tornou-se palmatória do mundo. Hoje ela é questionada na sua "essência": ainda é um projeto de salvação? A resposta merece um alargamento histórico, para Küng.
A primeira frase do livro devia ser para todos nós a via de compreensão. Diz o velho e experimentado teólogo:
"Eu preferiria não ter escrito este livro. Não é nem um pouco agradável ter de submeter a minha amada Igreja a uma crítica tão contundente. E uma crítica aqui em forma de publicação."
Kung em sua obra jamais levou água ao moinho do cisma e da divisão. Seu interesse sempre foi a unidade da Igreja. Mas não a qualquer preço e sempre por meio de uma crítica precisa de coragem e criatividade. O livro é dividido em uma breve e provocativa introdução de 06 (seis) partes articuladas. Na introdução Kung apresenta-nos seu itinerário da compreensão da crise da Igreja, uma espécie de análise de conjuntura. Numa frase: "terapeuta, sim. Juiz, não". E conclama um "diálogo sobre o futuro". Não se pode ficar eternamente numa crise. Nem numa instituição e nem numa vida pessoal.
O título do primeiro capítulo nos diz muito: "Uma Igreja doente, e doente terminal?". Para "doença" aqui é o colapso das estruturas da Igreja. Com exemplos concretos, Küng nos leva a perceber desde a Europa, uma Igreja que não faz mais sentido para a maioria das pessoas. Mesmo católicos não conseguem viver um doutrinarismo anacrônico. A Europa do velho papado não existe mais. Só um paranóico-delirante se fixa no passado achando que esse passado é presente. Uma Igreja que não soube renovar a tradição, caiu num medo infantil do mundo.
Os segundo, terceiro, quarto e quinto capítulos nos apresentam uma longa história de alguns momentos decisivos da Igreja na tradição ocidental. Ela mesmo se confundindo com esta tradição em vários momentos de sua história. Estes capítulos nos remetem ao livro traduzido e publicado no Brasil, intitulado: "Igreja Católica" (Editora Objetiva, 2002). A obra faz parte de uma coleção chamada "História essencial", um breve livro de história da Igreja Católica bem ao estilo de Küng, contemplando historiografia teológica e análise.
Os títulos dos capítulos do livro "A Igreja tem salvação" são bem significativos e nos indicam o conteúdo: "Diagnóstico do sistema romano", "O germe de uma doença anacrônica", "Reabilitar com recaídas", "A grande salvação". Percebe-se que existe um interesse de entender a crise da Igreja como real e com enfermidades históricas que já duram muito tempo e que tem infeccionado a própria Igreja em sua situação interna e na relação com o mundo. Uma Igreja adoecida adoece ainda mais seus fiéis. Kung faz um percurso que vai da concentração de poder do papado ao Concílio Vaticano II. Não nos cansa e nem torna tediosa, mas nos faz mergulhar numa história "humana, demasiada humana" de uma instituição milenar que nunca soube como lidar com o poder de acordo com os "pais fundadores" do cristianismo. Kung nos faz ver que isso não foi um problema apenas do catolicismo, mas de todo o cristianismo.
O sexto capítulo "Terapia ecumênica - medidas de salvação" é muito instrutivo e programático. É preciso revisar fundo a Igreja: o papado, a Cúria romana, eliminar todas formas de repressão e inquisição; abrir todos os cargos eclesiásticos para as mulheres, ter o espírito ecumênico como exemplo, abolir esse comportamento beligerante contra o mundo moderno. Evangelizar não é mais doutrinar. Os poderes deste mundo e a lógica do capital jamais serão evangelizados. A vida de ostentação, medíocre, covarde e sem sentido de um clero mergulhado em sua contradições morais e políticas em nada ajudam a Igreja, que vai afundar ainda mais.
Para a América Latina e África, Küng abre um espaço para uma reflexão teológica decolonial e em sintonia com um real projeto de aculturação da fé. Küng sabe que não pode sair de sua condição de europeu, mas pode ajudar um pensamento teológico não-eurocêntrico, feito e vivido pelo povo cristão em todo o mundo, onde possa existir um autêntico catolicismo com potencial profético e evangélico. Um projeto realista com boa dose de esperança.
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Hans Küng e um diagnóstico da crise na Igreja. Artigo de Romero Venâncio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU