15 Junho 2024
“Quem olha dez anos para frente planta árvores, quem olha cem anos para frente planta homens”. Era o que gostava de repetir Danilo Dolci que conseguiu concretizar esse provérbio chinês, ampliando o olhar e transcendendo o complexo microcosmo suspenso fora do tempo das periferias e dos bairros proletários da Sicília ocidental, onde desembarcou em 1952. Movido pelo desejo de descobrir "a alma da vida", iniciou um percurso humano, político e social de âmbito internacional, ultrapassando o espaço restrito de um território “órfão” do Estado habitado por pescadores, agricultores, operários, pobres, enjeitados e últimos, a quem dedicou a sua existência, desempenhando ações de pedagogia social.
A reportagem é de Alicia Lopez Araújo, publicada por L'Osservatore Romano, 11-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dolci sabe desde a sua chegada a Trappeto e Partinico (Palermo) que enfrentar de forma nova e criativa um problema local significa contribuir para o crescimento de toda a humanidade. Se de um lado elaborou uma série de análises sociológicas e políticas sobre as condições de degradação da população siciliana, por outro lado, iniciou uma intensa atividade de tecelagem de redes internacionais por meio de viagens, congressos e seminários de formação. "Aqui na Sicília", dizia, "estamos tentando estabelecer alguns princípios operacionais que possam ser aplicados em qualquer área subdesenvolvida".
Em seu trabalho o local se conecta ao global, confrontando-se com outras experiências: América do Sul, China, Iugoslávia, Senegal, Gana. O método empregado é a maiêutica recíproca, que Sócrates comparou à arte da parteira, isto é, buscar e refletir juntos, dar à luz e compartilhar as potencialidades de cada um.
A visão progressista da educação de Dolci, como parte da emancipação da população da pobreza e da criminalidade organizada, fascinou e atraiu, por sua vez, para o Centro Borgo de Deus, estudiosos e intelectuais de todo o mundo. Na década de 1970 Trappeto tornou-se destino de uma peregrinação heterogênea, em que se fundia investigação acadêmica, voluntariado juvenil e empenho religioso. Entre as figuras de destaque estava o brasileiro Paulo Freire, que revolucionou a educação no mundo; Dolci e Freire, que compartilharam o mesmo ano de falecimento (1997), estavam ligados por afinidade de pensamento, estima e amizade.
Além da intensa correspondência, suas vidas paralelas se uniriam diversas vezes, apesar de estar imersos em contextos diferentes - sul da Itália e nordeste brasileiro — caracterizados, no entanto, por alguns processos históricos, sociais e culturais semelhantes: longa ocupação estrangeira, posição periférica, formação de uma sociedade a duas velocidades (opressores e oprimidos), fraqueza da burguesia local, alto índice de violência social e de grupos criminosos e grandes desenvolvimento da cultura popular em oposição à cultura institucional. Juntos exploraram os temas da educação popular, do diálogo e da transformação da sociedade para uma comunidade mais igual e justa.
Na sugestiva terra siciliana, feita de atávicas contradições entre beleza e sofrimento, Freire participou de duas conferências (1969 e 1976) organizadas por Dolci, para compartilhar ideias e inspirar mudanças. Para o italiano, o trabalho educativo visa sempre realizar a união entre micromudança e macromudança, isto é, entre a mudança cultural do indivíduo e o nascimento de novas perspectivas. Nesse empenho se reconectava ao trabalho de conscientização dos adultos e de alfabetização que o ativista social brasileiro realizava na mesma época na América do Sul com as comunidades marginalizadas e pobres. “Os objetivos educativos não podem ser separados por uma abordagem política", começava Freire em um dos seminários realizados em 1976 no Centro educativo de Mirto, nascido no campo entre Partinico e Trappeto entre flores, amendoeiras e oliveiras para que as crianças, salvadas das feiuras, pudessem observar a natureza no seu evoluir, estação após estação.
Como destacou Alessio Surian, professor da Universidade de Pádua, num recente encontro, pelo menos três elementos, estreitamente interligados e ainda difíceis de encontrar no sistema educacional italiano, aproximam Dolci e Freire: a observação, mas também a prática para a qual a educação é política; a dimensão coletiva, pois estamos acostumados com uma escola que nos avalia individualmente, enquanto a educação é por sua natureza, tanto quando a queremos justa como quando a queremos eficaz, um processo de um pequeno grupo em condições de procurar juntos; finalmente outro elemento imprescindível é a pergunta. Existem, portanto, duas pedagogias da pergunta.
Os Círculos Culturais de Freire e o Centro Educacional de Mirto são espaços onde as pessoas são incentivadas a se questionar constantemente, a não parar diante de explicações conformistas. Freire de fato introduziu o método de formulação de problemas, ou seja, a análise crítica como instrumento para a libertação, sobretudo das consciências, e da educação não transmissiva, depositária, colonizadora, mas criativa e libertadora.
Uma educação ligada à justiça social. Esses conceitos, desenvolvidos nos seus textos mais importantes Educação como prática da liberdade (1977) e Pedagogia do oprimido (1968, escrito em exílio no Chile), não estão longe daqueles já aprofundados por Danilo Dolci.
“Hoje, segundo uma leitura mais atualizada e tentando relacionar o seu trabalho com o que ainda falta, poderíamos indicar - afirma Surian - o início da obra de Dolci e a parte final da obra de Freire, relativa ao início dos anos 1990, ou seja, uma ecopedagogia: uma atenção significativa para o território numa perspectiva coletiva. Portanto, há uma profunda adesão a uma ideia fenomenológica e de coconstrução dos conhecimentos”. Não é por acaso que a Dolci, quando deve decidir onde construir a escola, recorre a um ancião, que dá respostas especialmente em chave do que as crianças deveriam ver dali: o mar, horizontes amplos, uma ideia de futuro e que a barragem do Jato pudesse ser vista, ou seja, o resultado de um esforço coletivo. “Ninguém educa ninguém - argumentava Freire - ninguém se educa sozinho, os homens se educam junto com a mediação do mundo”.
“Nada pode ser mudado sem o sonho e a utopia”, afirmava Dolci, referindo-se, no entanto, a uma utopia concreta. E justamente ele que havia sido definido, entre tantas maneiras, também como “árvore de folhas caducas” tornou-se força geradora. Os seus escritos, o seu pensamento autônomo e o projeto maiêutico de então, concebido para “plantar homens” livres que saibam cultivar a convivência pacífica, são hoje mais válidos do que nunca num mundo dilacerado por guerras, indiferença e injustiças.
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