14 Junho 2024
Quilombola Marizelha Lopes vê governo empenhado no combate, mas limitado diante das ações dos estados e municípios.
A entrevista é de Lucas Weber, publicada por Brasil de Fato, 12-06-2024.
Anunciado no dia Mundial do Meio Ambiente, o Programa Nacional de Conservação e o Uso Sustentável dos Manguezais do Brasil (ProManguezal), do governo federal, não despertou esperança para a marisqueira Marizelha Lopes, liderança da comunidade quilombola de Bananeiras, na Ilha de Maré, em Salvador (BA). Coordenadora da Articulação Nacional das Mulheres Pescadoras Bahia (ANP), ela foi convidada e participou das reuniões de elaboração do plano, em janeiro deste ano.
Embora ela veja com bons olhos os esforços do governo federal, Lopes cita exemplos de ações do governo municipal e estadual que vão na contramão do ProManguezal. "Nós vivemos num país de muita contradição. Os que têm uma preocupação, que chamam a gente para pensar a proposta de como proteger [o meio ambiente], são os mesmos que licenciam, por exemplo, a carcinicultura [criação de camarões em viveiros], a privatização de áreas de manguezal", disse em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (12).
Segundo o governo, o programa vai atuar em 1,4 milhão de hectares, área que compreende os manguezais no país. São mais de 500 mil famílias que dependem diretamente de recursos dos manguezais para sobreviver, incluindo pescadores artesanais, marisqueiras e extrativistas. O programa foi dividido em seis eixos para dar conta de aspectos de conservação, uso sustentável e também fortalecimento e sustentabilidade financeira das famílias.
Nascida e criada na Ilha de Maré, Marizelha Lopes compartilha sua percepção sobre como o ambiente está mudando, especialmente nos últimos anos. "A Ilha de Maré precisa fazer uma contenção. Porque a água está crescendo, está avançando pela crise climática e aí cada vez mais está chegando mais perto", comenta. "A maré de março, que a gente esperava com tanta alegria, do ano passado para cá, a gente está com muito medo. Esse ano as casas que nunca chegaram, a água chegou".
Na última semana, a Justiça Federal deu prazo de seis meses para que o Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária (Incra) conclua o procedimento de titulação das comunidades remanescentes de quilombos de Ilha de Maré, em Salvador (BA). A sentença atende a um pedido do Ministério Público Federal (MPF) ajuizado em 2017.
Em 2024 se completam 20 anos da certificação quilombola da comunidade pela Fundação Palmares. De lá para cá, o processo de regularização avança a passos lentos, o que obrigou a ação da Justiça. Embora seja uma boa notícia, Lopes comenta que a comunidade não vê motivos para "estar em festa". Ela cita o racismo praticado pelo Estado como motivo pela falta de perspectiva de ver o processo concluído. "O próprio IBGE fala que Ilha de Maré é um bairro mais negro de Salvador. Então, é uma população de pretos, quem está se importando com a vida da gente? A gente vai sumir", conclui.
Vocês participaram da elaboração do Programa Nacional de Conservação e o Uso Sustentável dos Manguezais do Brasil (ProManguezal). Mas como veem ele chegando na prática? Quais são as expectativas?
Nós vivemos num país de muita contradição. Os que têm uma preocupação, que chamam a gente para pensar a proposta de como proteger [o meio ambiente], são os mesmos que licenciam, por exemplo, a carcinicultura, privatização de áreas de manguezal.
Aí a gente pode pensar quem são os pescadores, principalmente, no Nordeste? São indígenas e negros, mas quem está no poder ao longo desses anos?
A gente tem se colocado enquanto trabalhadores, enquanto militantes, pessoas que vivem diretamente da pesca, que vivem diretamente da natureza. E o que tem ainda de proteção dos manguezais está protegido por nós, povos das águas, das matas, das florestas.
Demos nossa contribuição, ao longo dos anos a gente não tem feito outra coisa. São muitas conferências e a gente debateu todas, levamos propostas.
Mas, assim, a gente tem poucas expectativas, na verdade. Porque a natureza não tem mais condições de aceitar tanta agressão, sabe? O que antes a gente chamava de mudanças climáticas, hoje, a gente chama de crise ambiental.
Os sinais lá atrás já foram dados. Quanto crimes foram causados pelo homem? Em Brumadinho, Mariana… Quantas cheias em Pernambuco, Bahia e aí agora estamos vendo aí no Rio Grande do Sul.
Mas a máquina de moer gente, de morrer, de contaminar a água não para. Tem uma mente diabólica mesmo que não para de arquitetar coisas para afetar o manguezal e ameaçar o meio e modo de vida do nosso povo.
Por que você diz que é um país de contradições?
Infelizmente, Ilha de Maré está muito próxima de empreendimentos, grandes polos. Tem Porto de Aratu, tem Alquímica, tem a Refinaria Landulfo Alves.
Porto de Aratu e a Alquímica geram produtos altamente cancerígenos. E fazem tudo de forma irresponsável, eles vão extraindo o bem natural, eles vão colando os produtos e tal, sem nenhuma responsabilidade e compromisso, nem com as águas, nem com o povo.
Então, não tem ano que não tenha um ou dois crimes causados por eles, não tem nada aqui na Bahia de Todos os Santos. Vários estudos comprovam o nível de contaminação que tem na Bahia de Todos os Santos.
Em 2020, quando a gente estava todo mundo aqui preocupado como se proteger por conta da pandemia, chegou um empreendimento chamado Bahia Terminais, que cortou quase dois hectares de manguezal com motosserra, licenciado pelo Estado.
Aqui na Bahia, quem está no poder é a esquerda, que está fazendo mais de 20 anos. Por isso que a gente fala, que eu falo, que a gente vive em um país de contradições. Porque tem essa preocupação do Ministério do Meio Ambiente em proteger o manguezal, mas nos estados, os governos de esquerda ou de direita estão destruindo o manguezal, estão licenciando o manguezal.
A gente está vendo, por exemplo, a ameaça, que é essa PEC aí puxada pelo filho de Bolsonaro, de privatização das terras de marinha, o que significa dizer que vai afetar os manguezais.
A maioria das praias tem áreas extensas de manguezais. Então eles pensam no seu bem-estar, no seu lazer… E o povo que vive exclusivamente da pesca? Eu não sei fazer outra coisa, sei pescar, mariscar. E igual a mim, são a maioria das mulheres.
Em Ilha de Maré, tem quase 10 mil moradores e 40% dessa população é de mulheres. A gente vive da pesca, a gente vive da coleta, do beneficiamento de siri, de caranguejo, de aratu, de peixe.
Não tem nenhum ser vivo que consiga viver num ambiente de trabalho tão inseguro, por contaminação, por ameaça de destruição do espaço, do seu espaço de trabalho.
Recentemente cortaram dunas, secaram lagoas, para fazer um porto para trazer as torres da energia eólica. Daí, no ano seguinte, aparece uma espécie de lagarta, uma lagarta exótica que vem de outro pais, de não sei de onde, e aí essa lagarta está destruindo uma espécie de manguezal que é o mangue branco.
Na semana semana a Justiça Federal deu uma ordem que o Incra reconheça os territórios quilombolas da Ilha de Maré. Essa notícia deu esperança para finalizar esse processo se arrasta há anos?
A gente enxerga como um atraso histórico, por parte do governo cumprir o que já era para ter sido feito.
Não justifica, por exemplo, a gente ter a certidão quilombola desde 2004. Em 2007, foi concluído o relatório RTD das comunidades da Ilha de Maré.
Só em 2017 foi publicado e a gente está esperando esse tempo todo para a terra ser regularizada. E foi a gente que pediu ao Ministério Público que judicializasse porque não tinha mais justificativa para o Incra e a SPU regularizar essa situação.
Até 2021, meu pai, meus tios, plantavam de meia, plantavam a roça e tinha que dividir com os grileiros, com os fazendeiros. Até 2022, minha família pagava arrendamento, não podia construir casas.
Então, a gente está falando de uma dívida histórica, a gente está falando de reparação.
Não fizemos tanta festa com isso. O que a gente vê é um racismo pesado, o que a gente vê é que [seguem] as mesmas condições. Que a gente viveu a século, a gente continua vivendo.
Aqui na comunidade tudo é muito recente. Tem 30 poucos anos que chegou a energia elétrica, tem 20 poucos anos que chegou a água encanada.
Até hoje nunca teve uma praça para as crianças brincarem. Do mesmo jeito que meus pais não tiveram direito a uma praça, meus avós, eu não tive, meu neto não está tendo.
A gente está falando dessa dívida histórica. A gente vê os empreendimentos chegar com aval do Estado, com liberação até de imposto, mas a gente não vê os impostos que a gente paga se reverterem em direitos.
Então tem um decreto quilombola, que foi uma luta que a gente fez, e que consegue sensibilizar o governo e que Lula assina esse decreto, mas de lá pra cá o que foi que avançou nesse sentido?
Essa celebração do Promanguezal a gente fica nessa pegada. Com que ritmo isso vai acontecer? Para nós, não tem mais tempo.
A gente nunca recebeu parte da riqueza do nosso país. A gente até hoje não tem regularizações de território e isso está tirando vidas.
A gente perdeu Mãe Bernadete, a gente perdeu Nega Pataxó, a gente perdeu quantas indígenas e quilombolas? Eu estou ameaçada. Eliete Paraguassu está ameaçada. Várias pessoas na comunidade têm sido ameaçadas.
A máquina do nosso país, do nosso Estado, que é o Brasil, está operando parcialmente. A gente vê que o Judiciário tem lado. A gente vê que as gestões, na verdade, têm lado.
A Ilha de Maré precisa fazer uma contenção. Porque a maré, a água está crescendo, está avançando pela crise climática e aí cada vez mais a água está chegando mais perto.
Já chegou em nossas casas, a maré de março, que a gente esperava com tanta alegria, do ano passado para cá, a gente está com muito medo. Esse ano as casas que nunca chegaram, a água chegou. A gente vai sumir.
O próprio IBGE fala que Ilha de Maré é um bairro mais negro de Salvador. Então, é uma população de pretos, quem está se importando com a vida da gente?
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“A gente vai sumir”: liderança da Ilha de Maré alerta para efeito da crise climática em comunidades quilombolas de manguezais. Entrevista com Marizelha Lopes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU