23 Mai 2024
Oliver Stone sempre se interessou pela política dos países da América Latina. Foi o que já demonstrou com muitos de seus documentários. Talvez o que melhor demonstre esse interesse seja Ao sul da fronteira, quando viajou por diversos lugares entrevistando os seus líderes, em um momento no qual parecia que as forças de poder do sul do continente guinavam para a esquerda. Foi quando entrevistou Lula da Silva, então presidente do Brasil, pela primeira vez.
A reportagem é de Javier Zurro, publicada por El Diario, 22-05-2024. A tradução é do Cepat.
Stone foi fisgado por aquele político que havia saído de uma metalúrgica. O seu sucesso demonstrava que um operário podia governar um país e fazer políticas para mudar a vida dos trabalhadores. Também que a união sindical era necessária frente ao avanço do neoliberalismo.
Outra razão do interesse de Stone na política da América Latina é a interferência que os Estados Unidos sempre tiveram. Frequentemente, o cineasta denunciou o apoio de seu país aos golpes de Estado sofridos pelos governos de esquerda, durante a Operação Condor.
Para Stone, o que Lula da Silva sofreu na operação Lava Jato, que o levou à prisão acusado de corrupção, foi algo parecido a um golpe de Estado. Posteriormente, foi declarado inocente, mas o dano já estava feito. Tinham acabado com o líder de esquerda incômodo para o poder e também com a sua sucessora, Dilma Rousseff. Agora, os golpes de Estado ocorrem sem violência. As armas são o Poder Judiciário e a imprensa. Chamem isso de máquina de lama ou lawfare.
Dez meses antes de ser reeleito, Oliver Stone voltou a se encontrar com o atual presidente do Brasil para contar sua história e o que sofreu, e mostra isso no documentário Lula, apresentado fora da competição no Festival de Cannes e pelo qual foi criticado por ser “muito entusiasta de Lula”. “Foi a BBC, é claro”, disse Stone, com ironia, em um encontro restrito com jornalistas, em um hotel em Cannes.
Ele não nega o fascínio, mas confessa que o interesse por este documentário vem de outro lugar, da proximidade dos Estados Unidos “nesse processo de lawfare que continua ocorrendo no Brasil”. “Isto é dito no filme. Fora a guerra, esta é a melhor forma de utilizar a lei como substituta dos meios mais violentos. É uma forma de eliminar as opções democráticas escolhidas pelas pessoas”, diz Stone, ao que o seu codiretor Rob Wilson, ao seu lado, acrescenta que significa “usar violência, sem violência”.
Será que Stone acredita, então, que o lawfare é uma das grandes ameaças para as democracias, inclusive para as europeias? “É claro que sim, é a forma de se desfazer das pessoas que o establishment não quer. É o establishment que pode conseguir isso porque tem a polícia, tem os meios de comunicação, tem o exército e o sistema judiciário, como no Brasil”, diz.
Para Stone, outro dos triunfos do establishment e dos “caudilhos” foi ter criado “o medo do socialismo”. “Aconteceu no Chile, no golpe de Estado. “Muitas pessoas foram assassinadas em nome do medo do comunismo, do socialismo ou do medo da esquerda”, ressalta, acrescentando que, desde 1917, “em nossa cabeça, lutamos contra os russos”. Um medo que define como “irracional”. Seu codiretor aponta de onde vem esse medo: “Basta seguir o dinheiro”.
O filme mostra como os Estados Unidos estiveram envolvidos na operação contra Lula, e por isso Stone deixa claro que “não se trata apenas do Brasil”. “Olhem para o que aconteceu no Egito, desfizeram-se de Morsi, e isto continua e continua, e os Estados Unidos não vão parar”.
Um dos depoimentos mais surpreendentes de Lula no documentário é a opinião que ele tem sobre a sua relação com Obama, explicando que foi complicada e que as relações do Brasil com os Estados Unidos são piores com os líderes democratas do que com os republicanos. Em paralelo, vê-se o ex-presidente Obama elogiando o líder brasileiro, um comentário que Stone define como “desagradável”.
“Quando o vejo dizer essas coisas, fico desanimado. É tão falso... Nem se desculpou com Dilma, quando foi descoberto que ela tinha sido espionada. Este é o tipo de comportamento hipócrita. Era muito bom sendo um ator hipócrita. Obama fez campanha como um tipo de candidato diferente daquele que acabamos elegendo. Houve muita decepção entre os seus eleitores pelas coisas que fez quando assumiu o cargo”, critica.
Oliver Stone relaciona o momento atual de seu país com uma de sus obsessões, o assassinato de Kennedy, que o levou a assinar uma obra mestre como JFK e a realizar um documentário que alimentava a teoria de que foi assassinado para eliminar um político incômodo para o poder.
“O ano de 63 foi um ponto de inflexão. Fomos para o Vietnã e, desde então, tivemos guerra após guerra. Realmente, nunca paramos de ir à guerra desde o ano 19. Do fim do Vietnã até 1989, houve um intervalo, mas naquele ano fomos ao Panamá e esse foi o início desta maldita doença. Depois veio o Iraque e depois o Iraque novamente. É um estado de emergência, um estado de tensão que os Estados Unidos parecem gostar”, ressalta.
Uma tensão que, para Stone, beneficia “um lobby industrial militar que ganha dinheiro com a tensão”. “A tensão é importante. Criar tensão com a China. Criar tensão com a Rússia, apoiar a Ucrânia e dar um golpe na Ucrânia. Genial. Assim introduzem os seus pró-estadunidenses na Ucrânia e já se tem tensão acumulada. E, agora, o que acontece se formos para a Terceira Guerra Mundial? Vamos nos lamentar. É perigoso. Vivemos falando de guerras. Não só na Ucrânia, em Gaza, em todas as partes. É a Terceira Guerra Mundial, e isso que me preocupa”.
Não enxerga solução possível, porque “o mundo não vai mudar enquanto os Estados Unidos não mudarem”. Ou talvez, sim, enxergue uma: “Uma revolução, é disso que o mundo precisa, mas uma diferente, não como a última”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Oliver Stone: “O lawfare é a forma que o establishment tem de se desfazer de pessoas que não quer” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU