A tragédia no RS surge do capitalismo desgovernado que domina a política nacional. Entrevista especial com Tiago Holzmann da Silva

Com 428 cidades atingidas, as enchentes no Rio Grande do Sul contabilizam 149 mortos, 112 desaparecidos, mais de 1 milhão de afetados e 617 mil pessoas fora de casa, entre desabrigados e desalojados.

Em São Leopoldo, condomínios populares foram atingidos pelas enchentes | Foto: Digue Cardoso/Semae | Arte: Marcelo Zanotti/IHU

Por: IHU e Baleia Comunicação | 20 Mai 2024

Se formos apertando e buscando a origem do problema, chegaremos no modelo capitalista sem freios que tem dominado a nossa política nacional e local”, aponta o arquiteto e urbanista Tiago Holzmann da Silva ao avaliar o modelo de ocupação e de construção das cidades brasileiras e como ele levou à crise climática no RS.

Na avaliação de Silva, a ocupação territorial dos projetos de moradia popular, como o Minha Casa, Minha Vida, “responde majoritariamente a interesses privados, de viabilidade financeira tanto para os municípios como para as construtoras”, complementa. “A questão do valor da terra não faz parte da conceituação do programa, sendo o maior empecilho para a correta localização destes empreendimentos DENTRO da cidade e não na periferia da periferia como é o normal”, explica o arquiteto, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

O entrevistado retoma o debate se o Guaíba é rio ou lago. Pra ele, “o Guaíba é um rio, pois configura-se como uma espécie de continuação do Rio Jacuí que está submerso, mas também é um lago, visto que seu aspecto e comportamento tem muitas características similares a este”, justifica.

Contudo, ele deixa claro que o entendimento do Guaíba como “lago” está diretamente associado à especulação imobiliária que ronda essas águas. “Há claros interesses dos especuladores imobiliários na promoção da denominação de lago, pois reduz as áreas de proteção e amplia muito a oferta de terrenos para seus empreendimentos”, esclarece o arquiteto. Para tanto, “há conivência de alguns políticos e administradores públicos com esta permissividade, tendo em vista que o setor da construção civil está entre seus principais financiadores de campanha”, indica.

Tiago Holzmann da Silva | Reprodução/Linkedin

Tiago Holzmann da Silva é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; mestre em Projeto Arquitetônico pela Universidade Politecnica da Catalunha e em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS. Ex-professor do Centro Universitário Ritter dos Reis (1999-2009) e da Faculdade de Arquitetura da UFRGS (1998-2000), foi presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/RS (2012-2013 e 2014-2016) e vice-presidente extraordinário do IAB nacional (2014-2017), além de presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul – CAU/RS (2018-2020). É sócio e gerente da empresa 3C Arquitetura e Urbanismo, onde atua com consultoria em planejamento e urbanismo; planos diretores, mobilidade e habitacionais; planos e projetos urbanos, parques urbanos e ambientais; habitação de interesse social.

Confira a entrevista.

IHU – Como a questão sobre a definição do Guaíba, se rio ou lago, está, na verdade associada à questão da especulação imobiliária? Quais as consequências habitacionais disso?

Tiago Holzmann da Silva – A legislação ambiental brasileira determina Áreas de Preservação Permanente – APP nas margens de todos os corpos hídricos. Estas APPs restringem drasticamente a possibilidade de ocupação, urbanização e construção nas margens protegidas. A preservação dessas margens para os rios, com a largura do Guaíba, é de 500 metros e para um lago é de apenas de 30 metros. Ou seja, a amplitude de uma e outra é bastante distinta em função da simples denominação rio ou lago, sendo este o ponto crucial desta polêmica.

O Guaíba é um rio, pois configura-se como uma espécie de continuação do Rio Jacuí que está submerso, mas também é um lago, visto que seu aspecto e comportamento tem muitas características similares a este. Entendi, buscando compatibilizar as teses, que o Guaíba parece ser a continuação do Rio Jacuí que está submerso no espaço “alagado” do Guaíba em sua passagem até a Lagoa dos Patos.

Há claros interesses dos especuladores imobiliários na promoção da denominação de lago, pois reduz as áreas de proteção e amplia muito a oferta de terrenos para seus empreendimentos, assim como há conivência de alguns políticos e administradores públicos com esta permissividade, tendo em vista que o setor da construção civil está entre seus principais financiadores de campanha. Como consequência, a saudável discussão acadêmica acaba sendo utilizada com objetivo de atender aos setores interessados apenas em lucrar com a cidade destruindo suas qualidades ambientais e urbanas.

Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, algumas áreas do Rio Grande do Sul, cuja média de precipitação para maio fica entre 150 e 180 mm, receberam mais de 400 mm de chuva somente nos primeiros cinco dias deste mês (Infográfico: Rodolfo Almeida / Ambiental Media. Fonte: Landsat2)

Neste sentido, parece-nos muito importante separar estas duas dimensões da discussão. A discussão científica, que cabe aos pesquisadores, da discussão legal e política que cabe à toda a população. A forma como a cidade vai tratar as margens do Guaíba não pode ficar submetida à denominação do mesmo. Deveria estar vinculada a um PROJETO DE CIDADE amplamente discutido por todos e construído com o objetivo de integração plena do rio/lago com a sua população e a serviço do interesse coletivo.

O Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB RS defende um planejamento integrado para toda a margem do Guaíba que garanta a recuperação da qualidade das águas, a preservação da paisagem natural, a preservação e qualificação das áreas urbanizadas, tudo isto garantindo o caráter estritamente público destas margens. O Guaíba e sua paisagem natural e urbana são bens públicos de toda a sociedade porto-alegrense e gaúcha, sendo que qualquer iniciativa de privatização desses espaços deverá ser rechaçada seja ele cientificamente um rio, seja ele lago.

IHU – Como a questão do Cais Mauá e a entrega do espaço à iniciativa privada está no centro do debate sobre a ocupação e especulação imobiliária de áreas à margem do Rio Guaíba?

Tiago Holzmann da Silva – A privatização do Cais Mauá responde a uma prática de rotina do mercado imobiliário/gestores a seu serviço, que é patrocinar com recursos públicos a melhoria de áreas com potencial imobiliário de alto padrão e facilitar via alterações legislativas e corrupções urbanísticas a apropriação e/ou majoração dos índices construtivos dessas áreas para benefício das incorporadoras, seus parceiros e funcionários informais nos assentos de gestão pública.

IHU – Em várias cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre e do Vale do Sinos (São Leopoldo, Sapucaia do Sul, Canoas, entre outras), programas habitacionais do governo federal como Minha Casa, Minha Vida construíram residências em áreas que eram alagadiças. Por que uma política de estado tão importante quanto esta é realizada nesses espaços?

Tiago Holzmann da Silva – Porque também respondem majoritariamente a interesses privados, de viabilidade financeira tanto para os municípios como para as construtoras. A questão do valor da terra não faz parte da conceituação do programa, sendo o maior empecilho para a correta localização destes empreendimentos DENTRO da cidade e não na periferia da periferia como é o normal.

IHU – Com a tragédia que o RS vem vivendo, muito se fala em reconstrução. Contudo, bairros inteiros foram levados pela enxurrada, especialmente na Serra e nos Vales do Caí e Taquari. Qual a importância de se repensar completamente a ocupação desses locais e qual a viabilidade de pensar essa urbanização em outras regiões das cidades atingidas?

Tiago Holzmann da Silva – Acredito que ainda não há uma resposta que contemple todo o problema. Reconstruir do mesmo jeito no mesmo lugar é o que será feito, mais uma vez, e logo teremos outros episódios semelhantes. Eu acredito que um problema complexo não tem uma resposta simples. Nesse caso, reconstruir, relocalizar, revisar a forma de ocupação, trabalhar com mais resiliência, pensar na possibilidade de “conviver” com eventuais inundações (com riscos mínimos, claro)… são as possibilidades que devem ser analisadas técnica e socialmente em cada caso.

Todas as soluções simplórias e fáceis, nesse momento, certamente estarão erradas.

IHU – Em Curitiba há parques alagáveis, com pequenas represas que servem para drenar águas pluviais. Evidentemente que para uma catástrofe como a que estamos vivendo esses parques seriam insuficientes, mas qual seria a importância de estratégias como esta numa cidade como Porto Alegre, ao menos para minimizar os danos?

Tiago Holzmann da Silva – Planejamento. Colocar em ação as inúmeras boas propostas e projetos existentes… Vejo como um caminho importante os planos de bacias, que são ótimos, mas ficaram no papel… pois contrariam interesses diversos, sejam econômicos pelos custos e longos prazos de obras, sejam políticos porque são ações de longo prazo que não dão votos, sejam mesmo culturais e sociais das populações que se negam a relocações eventualmente necessárias...

IHU – Até antes da tragédia vivida pela população gaúcha os governos municipais, estadual e até mesmo federal sempre minimizaram a questão climática e, não raras vezes, flexibilizaram a legislação de proteção ambiental. Enquanto sociedade civil, como podemos nos mobilizar para que não sejamos vítimas desse descaso?

Tiago Holzmann da Silva – Cobrando responsabilidades. A máxima agora é: “não é hora de buscar culpados”… em geral essa frase é dita por um dos culpados diretos. Mas vejo com pessimismo essa frente. Temos amplos setores legislativos, judiciais, empresariais, midiáticos, etc. que são contra, abertamente ou não, a agenda do meio ambiente, a pauta das alterações climáticas.

IHU – Em que sentido o novo regime climático global, no qual eventos extremos como o que testemunhamos no RS tornam-se frequentes, nos convoca a repensar um outro conceito de cidade? Em outras palavras, como pensar as cidades diante das consequências do aquecimento global?

Tiago Holzmann da Silva – Certamente uma alteração do modelo de ocupação e de construção. Se formos apertando e buscando a origem do problema chegaremos no modelo capitalista sem freios que tem dominado a nossa política nacional e local.

IHU – Qual o papel do Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU/RS, que o senhor presidiu, diante do cenário que estamos vivendo e qual será sua atuação na reconstrução do RS?

Tiago Holzmann da Silva – Veja, sou ex-presidente, desde dezembro de 2023. Mas acho que o papel do CAU é de liderar e ajudar a organizar as reações técnicas e profissionais das entidades e instituições do setor. Também, como órgão público, cobrar de outros órgãos as suas responsabilidades e colaborar na correção destes rumos.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Tiago Holzmann da Silva – A “refundação” da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional – Metroplan, da Fundação de Economia e Estatística – FEE e das estruturas de planejamento do Estado do RS me parecem fundamentais se tivermos a intenção realmente de evitar e enfrentar situações futuras. Somente com bom planejamento e execução de suas ações é que conseguiremos sair da situação atual de desmonte do estado para uma de estado a serviço da segurança e da saúde da sua população.

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