18 Mai 2024
"O que resta, então, da razão e do seu método? Anything goes, 'vale tudo', teria respondido Paul K. Feyerabend logo depois em um livro que soa como uma rejeição àqueles primeiros cinquenta anos: Contra o método. Esboço de uma teoria anarquista do conhecimento, cuja publicação (1975) encerrava uma fase de gestação que durou pelo menos quinze anos", escreve Luca Guzzardi, Professor de Filosofia na Universidade de Milão, em artigo publicado por Settimana News, 13-05-2024. Tradução de Luisa Rabolini.
Este ano marca o centenário do nascimento de Paul Feyerabend, filósofo da ciência, conhecido especialmente pelo ensaio Contra o método. Esboço de uma teoria anarquista do conhecimento, do qual em 16 de abril foi lançada uma nova edição pela Feltrinelli, organizada por Luca Guzzardi. Pedimos-lhe que nos ajudasse a contextualizar a visão de Feyerabend, que com a máxima “vale tudo” submete os cinquenta anos de filosofia da ciência que o precederam a uma crítica séria, começando por Karl Popper.
Não uma posição “contra a razão”, mas um aviso para estar vigilante sobre qualquer concepção e método que queira, talvez de forma sorrateira, tomar a vantagem, e um convite para não se deixar governar pelos seus cantores (Scienza in rete, 11-04-2024).
Se existe uma era de ouro da filosofia da ciência, talvez seja a primeira metade do século XX. Mach, Poincaré, Duhem definiram os temas principais: os ingredientes fundamentais das teorias científicas e o papel da experiência e do experimento, a função das hipóteses e dos erros, o avanço do conhecimento e a mudança conceitual. Outros se acrescentariam graças ao Círculo de Viena e aos seus críticos, a começar por Karl Popper: a virada lógico-linguística, o debate sobre os critérios de cientificidade e a importância relativa dos procedimentos de confirmação e refutação e, de forma mais geral, a supremacia dos padrões racionais para a teoria do método científico.
Debatia-se sobre os critérios que levam à construção e avaliação das teorias que se sucedem na história (indução e procedimentos de verificação para os neopositivistas do Círculo de Viena; dedução a partir de conjecturas e tentativas de falsificação para Popper e seus seguidores), mas todos pareciam concordar que o jogo da ciência precisava de regras – padrões universais, válidos em qualquer tempo e lugar – e de árbitros habilitados a concebê-los e aplicá-los: os filósofos da ciência.
Mas as idades de ouro, como sabemos, nada mais são do que idealizações. Em 1962, o historiador da ciência Thomas S. Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas, mostrou que o desenvolvimento de toda ciência madura podia ser interpretado como uma alternância de raras fases "revolucionárias" com longos períodos de "pesquisa normal", em que as comunidades científicas se reúnem em torno de grandes quadros de conjuntos (que Kuhn chama de paradigmas), capazes de fornecer aos seus membros resultados inovadores e exemplos de aplicação, e de sugerir problemas abertos nos quais o próprio paradigma tenha condições de prosperar.
A variação daqueles que para os defensores da pureza do método eram elementos de contorno – a psicologia dos pesquisadores, as interações sociais, as estruturas institucionais, as conjunturas econômicas e políticas – pode induzir mudanças até nas regras do jogo, subvertendo critérios de racionalidade que só acontecem dentro de um paradigma. A dinâmica da ciência parecia ditada, por assim dizer, pela sua borda externa.
O que resta, então, da razão e do seu método? Anything goes, “vale tudo”, teria respondido Paul K. Feyerabend logo depois em um livro que soa como uma rejeição àqueles primeiros cinquenta anos: Contra o método. Esboço de uma teoria anarquista do conhecimento, cuja publicação (1975) encerrava uma fase de gestação que durou pelo menos quinze anos.
Feyerabend nasceu em Viena em 13-01-1924 e se formou naquela cidade. Tendo retomado os estudos interrompidos pela guerra – tinha sido convocado para o exército do ocupante nazista e ficou gravemente ferido – formou-se depois de um percurso bizarro: teatro, história da arte, física, astronomia, filosofia.
Durante os seus anos de universidade, com alguns amigos e sob a orientação do filósofo austríaco Victor Kraft, fundou um clube filosófico que retomou a tradição do Círculo de Viena. Nas reuniões que o clube organizava conheceu Wittgenstein e Popper. Como contou em sua autobiografia (Matando o tempo, Unesp), Feyerabend teria gostado de continuar seus estudos com o primeiro. Mas Wittgenstein morreu pouco antes que chegasse a Londres; e assim acabou na corte de Sir Karl.
Feyerabend talvez tenha sido o crítico mais implacável de Popper, e não poucas páginas de Contra o método são ataques irreverentes dirigidos a ele. A máxima de Feyerabend, "vale tudo", deve-se em grande parte à sua paixão pelo teatro (“Eu adorava chocar as pessoas”, recordaria na sua autobiografia), mas também aos anos vividos num sufocante clima de furor metodológico. É o grito libertador daquele que finalmente reconhece
“(...) que a ideia de um método invariável, ou de uma teoria invariável da racionalidade, assenta numa visão demasiado ingênua do homem e do seu ambiente social. Para aquele que examina o rico material proveniente da história sem a intenção de empobrecê-lo para satisfazer os seus instintos mais básicos, o próprio afã de segurança intelectual entendida como clareza, precisão, 'objetividade', 'verdade', ficará claro que existe apenas um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todas as fases do desenvolvimento humano. É o princípio: vale tudo".
Assim afirma o primeiro capítulo de Contra o método.
Mas Feyerabend concluía imediatamente: “Esse princípio abstrato deve agora ser examinado e explicado em detalhes concretos”. Seu livro é uma análise meticulosa e uma justificativa rigorosa daquilo que, em mais de um sentido, foi uma reviravolta.
Para Feyerabend, o "vale tudo" tinha que ser entendido à luz fraca, mas paciente, das investigações históricas. Isso não significava que qualquer ideia, independentemente das condições em que se apresentar, fosse boa, mas que das condições em que as ideias se apresentam não se pode prescindir.
Concepções que em algumas circunstâncias parecem bizarras, como a ideia de uma Terra em movimento parecia a Aristóteles, são resgatadas assim que aquelas circunstâncias mudam – por exemplo, uma vez que aceitamos, com Galileu, modificar as nossas "interpretações naturais" sobre a gravidade.
Os aristotélicos diziam, com um raciocínio ao estilo de Popper: se a Terra se movesse, uma pedra em queda livre de uma torre cairia mais longe (ou mais perto) da torre do que a sua posição inicial no topo. Mas isso não acontece, portanto, a hipótese de uma Terra em movimento é refutada. Resposta de Galileu: o movimento da Terra arrasta consigo a pedra que cai; não percebemos que estamos nos movendo só porque tudo que está sobre a Terra se move com ela, mesmo quando está no ar.
Galileu é racional ao fazer isso? Certamente sim, para nós. Mas o seu argumento violava as regras do jogo aristotélico: interrompia a sua racionalidade. Aristóteles invocava a experiência; Galileu a reprogramava formulando hipóteses sobre o que chamamos de inércia, sem outra razão senão trazer água para o seu moinho: uma odiosa "hipótese ad hoc", na linguagem popperiana, concebida para salvar a teoria que está sendo defendida.
Se, na época de Galileu, tivéssemos invocado os padrões racionais de Popper, teríamos que ter concordado com os aristotélicos, e não com os arautos da revolução! Galileu convenceu porque foi capaz de explorar habilmente “experiências sensatas” e “certas demonstrações” para construir um quadro repleto de hipóteses ad hoc, mas ainda assim convincente. A sua estratégia, racional pelos seus padrões inovadores, mas irracional para os adversários, deu certo. Mas outras opções deixaram de servir. Nessa perspectiva, vale tudo é um alerta cético, uma forma de nos lembrar que “todas as metodologias, mesmo as mais óbvias, têm os seus limites”.
Dá para entender a referência de Feyerabend ao anarquismo nas suas variantes mais libertárias e menos politizadas, que “embora talvez não fosse a filosofia política mais atraente, é sem dúvida um excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência”.
A versão ideal do anarquismo epistemológico, segundo Contra o método, era o dadaísmo, com o seu gosto pela utilização e combinação dos mais diversos materiais e a sua intrínseca crítica à própria ideia de obra de arte. Feyerabend reiteraria isso num texto pouco conhecido, significativamente intitulado Unterwegs zu einer dadaistischen Erkenntnistheorie (literalmente, “Rumo a uma teoria dadaísta do conhecimento”), que teria sido retomado e articulado mais extensivamente em A ciência em uma sociedade livre (1978).
O ensaio começava com uma citação do artista dadaísta Hans Arp: “O dadaísta provoca no epistemólogo o caos e um tremor distante, mas poderoso, de modo que os alarmes começam a soar, as suas teorias mostram um franzido incerto e as suas honras acadêmicas cobrem-se de manchas".
Que os atuais filósofos da ciência reflitam sobre isso, agora que as honras acadêmicas são uma memória de gerações passadas, as teorias avançam com manifesta incerteza, sinos e sinetas nunca param de soar alarmes de todos os tipos. “Neste tempo destruído”, para citar Musil, em que ainda vacila “o homem com o ponto fixo em, o homem racional da esfera racional”, só parece restar o caos e aquele distante mas poderoso tremor.
A ideia de que cada método tenha os seus limites não deveria nos fazer tremer sem esperança e gritar escândalo e falência da razão; deveria lembrar-nos que algo mais é sempre possível e encorajar-nos a encontrar algo que, afinal, possa servir – e convidar-nos a respeitar outras inúmeras, plausíveis e impensadas opções.
Portanto, não deveria surpreender os leitores e as leitoras da última edição de Contra o método (1993), livro agora publicado pela Feltrinelli (a edição italiana estava até agora parada na primeira edição inglesa de 1975), ao encontrarem o seguinte:
“À luz de algumas tendências na educação estadunidense (…) na filosofia (…) e no mundo em geral, acredito que agora se deveria reconhecer à razão a maior importância possível, não porque seja e tenha sempre sido fundamental, mas porque parece necessária para criar uma abordagem mais humana em circunstâncias que hoje se apresentam com bastante frequência (mas que poderiam desaparecer amanhã)”.
Eu suspeito que com isso Contra o método não perde, mas ganha radicalidade. Não é, nem nunca foi, “contra a razão”, mas um aviso para estar vigilante sobre qualquer concepção e método que queira, talvez de forma sorrateira, tomar a vantagem, e um convite para não se deixar governar pelos seus cantores.
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Feyerabend, contra os dogmas do método científico. Artigo de Luca Guzzardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU