03 Mai 2024
Professor e sociólogo conversa com o Sul21 sobre o dilema da guerra às drogas e como se tornou um dos primeiros parlamentares a levantar a bandeira dos direitos humanos no RS.
A reportagem é de Luís Gomes, publicada por Sul21, 02-05-2024.
O episódio desta semana do podcast De Poa recebe o sociólogo e professor Marcos Rolim. Em conversa com Luís Eduardo Gomes, ele fala sobre como se transformou em um dos primeiros parlamentares a ser identificado como “defensor dos direitos humanos” no Rio Grande do Sul após a ditadura militar. Ele também aborda os atuais desafios da segurança pública no País.
No início da conversa, Rolim conta que acabou virando uma referência na área de direitos humanos no Rio Grande do Sul quase que por acaso. Tudo começou quando, enquanto ainda vereador de Santa Maria, nos anos 1980, criou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal e recebeu a visita de uma mulher que tinha uma denúncia para fazer.
“Ela chega lá e diz: ‘eu quero falar com o cara dos direitos humanos’. ‘É comigo’. ‘A questão é a seguinte, vereador, eu acabo de vir do Presídio Regional, fui fazer uma visita e tem dois presos lá que apanharam tanto, mas tanto, que eles estão num canto e não dá nem para ver o rosto deles, de tão desfigurados que estão. Eles foram espancados e eu precisava que alguém fosse lá olhar’. E eu pensei: ‘Eu vou lá’. Nunca tinha entrado no presídio, mas pensei que sendo vereador, os caras não iam me barrar. Fui, peguei um assessor da Câmara tinha uma máquina fotográfica pra tentar pegar um flagrante. Tomei o cuidado de pedir para ela me fazer um mapa do presídio por dentro, para que lado que eu deveria ir, como é a galeria e a cela. Ela fez um mapinha. Quando batia na porta do presídio, abriu lá um sujeito e eu disse: ‘Sou vereador fulano de tal, vim fazer uma visita’. O cara prontamente abriu, pensando que eu fosse fazer uma visita de cortesia possivelmente, ninguém visitava presídio. O cara abriu, eu fui entrando, peguei o mapa. Ele disse: ‘Onde é que o senhor vai?’ Eu disse: ‘Já volto’. E fui. E cheguei na cela os caras estavam lá, desfigurados. Perguntei o que aconteceu. ‘Os caras bateram na gente’. ‘Quem bateu?’ ‘Fulano’. ‘Foto, bate foto’. Cheguei no diretor: ‘Explica o que aconteceu aqui’. ‘Ah, pois é, tem que ver’. ‘Como tem que ver?’”, relata.
Após esse episódio, Rolim conta que passou a receber denúncias de diversas partes do Estado, o que se estendeu após ser eleito deputado estadual.
Na segunda parte do programa, Rolim analisa a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45/2023, que insere no art. 5º da Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente. Para o sociólogo, o lado mais perverso da proposta, já aprovada no Senado e aguardando análise da Câmara, é o fato de constitucionalizar a análise subjetiva entre o que é tráfico de drogas e o que é consumo.
“Os Estados Unidos, por exemplo, que é o País que iniciou a guerra contra as drogas, lá nos anos 70. É o país que mais investiu dinheiro na guerra contra as drogas. Em metade dos estados americanos hoje a maconha está legalizada. Em Nova York, qualquer pessoa entra numa loja, escolhe o tipo de maconha que quer consumir, sabe a quantidade de THC, sabe quantos canabinoides tem, sabe de onde é que vem, qual é o efeito. As pessoas estão empregando gente, produzindo impostos, diminuindo encarceramento, os resultados são positivos no geral. Essa é a experiência dos norte-americanos, mas a discussão está acontecendo no México, no Uruguai. Caiu o mundo? As pessoas estão morrendo? Não, quem mata no Brasil é o tráfico. O que mata no Brasil é disputa de pontos de venda. E quem produz isso é o proibicionismo, é a proibição das drogas que cria espaço pro tráfico. Então, se as pessoas não entenderam isso, não entenderam nada”, diz.
O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.
Tu foi eleito deputado estadual em 1990 [assumiu em 1991], teve projetos voltados para as áreas dos direitos humanos e da segurança pública. E acompanhou aquele período efervescente para a área no início dos anos 1990, que teve rebelião no Presídio Central, o caso Melara. Como foi acompanhar como deputado que trabalhava com esses pautas?
Antes de chegar a ser eleito deputado estadual, eu cumpri um mandato de vereador em Santa Maria. Foi um mandato estranho, na época da ditadura, de seis anos. Eu fui eleito em 1982 o vereador mais votado de Santa Maria e fiz um mandato de seis anos, interrompido por um ano, esse ano eu interrompi para assessorar a prefeita eleita pelo PT em Fortaleza, Maria Luiza Fontelle, a primeira prefeita do PT em Capital. Ela era muito ligada ao grupo ao qual participava na época dentro do PT e acabou me convidando pra assessorar. Eu fui uma espécie de assessor da área de comunicação dela, trabalhava muita a comunicação política dela durante um ano em Fortaleza. Foi uma experiência muito bacana, muito forte para mim, eu aprendi muito lá, especialmente aprendi com os erros que os governos cometem e que a esquerda comete nos governos. Eu tive ali uma espécie de lição de várias coisas óbvias que não se pode fazer no governo e que por inexperiência na época se praticou. Bom, no retorno, eu termino um mandato como vereador, concorro à Prefeitura de Santa Maria, fiz uma votação muito boa, praticamente chegamos juntos quatro candidatos, perdi por um detalhe aquela eleição. Dois anos depois, a eleição para deputado estadual.
Quando eu venho a Porto Alegre, eu trago já uma bagagem bastante grande de luta por direitos humanos. Eu tinha sido presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores, que eu criei em Santa Maria. Eu comecei um trabalho nos presídios que eu nunca escolhi. Um dia, eu estava na presidência da Comissão de Direitos Humanos, no meu gabinete, aparece uma senhora que tinha um trabalho muito intenso de assistência social na cidade. Ela fazia um trabalho no presídio e ouviu no rádio que tinha uma Comissão de Direitos Humanos na Câmara, o que era uma novidade. Estou falando do final da ditadura. E ela chega lá e diz: ‘eu quero falar com o cara dos direitos humanos’. ‘É comigo’. ‘A questão é a seguinte, vereador, eu acabo de vir do Presídio Regional, fui fazer uma visita e tem dois presos lá que apanharam tanto, mas tanto, que eles estão num canto e não dá nem para ver o rosto deles, de tão desfigurados que estão. Eles foram espancados e eu precisava que alguém fosse lá olhar’. E eu pensei: ‘Eu vou lá’. Nunca tinha entrado no presídio, mas pensei que sendo vereador, os caras não iam me barrar.
Fui, peguei um assessor da Câmara que tinha uma máquina fotográfica pra tentar pegar um flagrante. Tomei o cuidado de pedir para ela me fazer um mapa do presídio por dentro, para que lado que eu deveria ir, como é a galeria e a cela. Ela fez um mapinha. Quando batia na porta do presídio, abriu lá um sujeito e eu disse: ‘Sou vereador fulano de tal, vim fazer uma visita’. O cara prontamente abriu, pensando que eu fosse fazer uma visita de cortesia possivelmente, ninguém visitava presídio. O cara abriu, eu fui entrando, peguei o mapa. Ele disse: ‘Onde é que o senhor vai?’ Eu disse: ‘Já volto’. E fui. E cheguei na cela os caras estavam lá, desfigurados. Perguntei o que aconteceu. ‘Os caras bateram na gente’. ‘Quem bateu?’ ‘Fulano’. ‘Foto, bate foto’. Cheguei no diretor: ‘Explica o que aconteceu aqui’. ‘Ah, pois é, tem que ver’. ‘Como tem que ver?’
E o diretor era, bom, não vou falar o nome, não importa.
Eu estava imaginando que ia ser alguém ligado à Ditadura.
A repercussão dessa visita às matérias que saíram na imprensa local foi muito forte, porque era uma coisa nova. Pensa o clima da época, a ditadura, tem uma denúncia de tortura num presídio, e estava lá na parte final da ditadura, então tinha um pouco já de espaço para tu questionar essas coisas. O que acontece? Quando a imprensa faz esse tipo de divulgação, tem uma demanda reprimida de denúncias nessa área que não tinha para onde escoar e sinaliza para onde tem que ir. Eu comecei a receber do Estado todo, cara. Começava a vir denúncia de vários municípios.
Então, na verdade, tu nunca quis ser o vereador dos direitos humanos, mas como teve esse primeiro episódio, acabou se tornando.
Eu tinha a importância dos direitos humanos muito clara. O meu primeiro projeto de lei foi o que criou a comissão. Antes disso, muito menino, eu militava na Anistia Internacional, então passava escrevendo carta para soltar perseguidos politicamente no mundo. Então, eu tinha uma formação em Direitos Humanos, mas essa história de trabalhar com presídios foi uma contingência. E aí quando tu te envolve nessas coisas….. Eu sou assim, se eu não sei uma coisa, eu não me meto. Agora, se eu me meti, tenho que aprender. Eu não podia dizer ‘não vou tratar disso’. Eu sabia que tinha que tratar. Então, vai estudar, cara. Vai te aprofundar na história. Desde ali, eu comecei a ler muito, a participar de muitos eventos, a me inteirar, a ouvir muitas pessoas, porque tu aprende muito com as pessoas, inclusive com os agentes penitenciários, com os policiais, promotor, juiz, com todo mundo.
No começo, tu não sabe direito, mas de repente tu começa a sacar como é que as coisas funcionam. E eu acho que, ao longo do tempo, eu aprendi muito. E também fiquei um pouco obcecado por essas coisas, porque eu não conseguia, depois como deputado, me esquivar das coisas. Tem situações que tu percebe claramente que são complicadas, que vão te dar um monte de trabalho e vão te abrir uma série de riscos. Não só riscos pessoais, isso também, mas risco político, o risco de desgaste político, o risco de ser atacado, ridicularizado.
Esse estigma que é ligado até hoje aos direitos humanos.
Até hoje eu fico sabendo, chega nos meus ouvidos, ‘ah, fulano’, não sei quem é, ‘falou que tu defendeu o bandido não sei aonde’. Esses dias um cara me falou: ‘Eu vi um cara falando que tu defendeu a degola de um brigadiano na praça’. Eu não era nem deputado na época, não tive nenhum envolvimento com isso. Então, tem um mito, tem uma história que vai se espalhando muito além de ti, que tu não domina.
O ‘pessoal’ dos direitos humanos foi um dos alvos originais da fake news no Brasil.
Sim, somos as primeiras vítimas.
E ali na época não era nem esse instrumento que temos hoje de internet, era por outros meios.
Era por outros meios, mas também funcionava, só que mais lento. Criou-se muito no Brasil inteiro, isso começa no final da ditadura, através de alguns radialistas, como Afanasio Jazadjia, em São Paulo, por exemplo, e outros. Tinham programas muito populares, eles criaram essa ideia de que o pessoal dos direitos humanos é o pessoal que defende bandido. Isso é uma marca e essa história foi tantas, tantas e tantas vezes repetida.
Para quem não conhece e é mais jovem, digamos que fosse um Cidade Alerta, esses programas policialescos começaram no rádio e eram muito populares nos anos 1980.
Esse pessoal sacou o seguinte, estava acabando a ditadura, a ditadura foi marcada por muita tortura, por muito arbítrio praticado por vários policiais que estavam a serviço da ditadura, e o grande medo dessa turma era o que vai acontecer depois que acabar a ditadura. Vai ter processo contra a gente, a gente vai ser preso, vai ser responsabilizado? Essa coisa estava em aberto. Aí começa esse discurso como uma espécie de prevenção a isso. Qualquer denúncia que surgisse sobre tortura, era defensor de bandido. Não foi por acaso que surgiu essa história, esse estigma surgiu para defender torturador. Os sujeito daquela época reproduziam essa ideia porque estavam preocupados de serem responsabilizados por aquilo que faziam.
Um bom profissional de segurança, um sujeito minimamente formado, que tem alguma capacitação, não precisa ter nível universitário, não é isso, o cara que é um profissional, que tem formação profissional, que sabe o que tá fazendo, nunca será contra direitos humanos. É simplesmente um atestado de burrice, de incompetência, de má formação. Porque segurança pública é um direito humano fundamental. Então, o policial, por exemplo, que está na rua para garantir a segurança pública, é um defensor de direitos humanos, ele tá defendendo os direitos humanos das pessoas. Se ele for um bom profissional. Agora, se for bandido, ele tá pegando grana do tráfico, torturando suspeito, batendo em gente, achacando pessoas. É um bandido, do pior tipo, porque é um bandido que é pago com o nosso dinheiro, que é pago com dinheiro público. Mas essa é uma parte da polícia, a outra parte não é isso. Eu tenho muitos amigos na polícia, gente muito bacana que eu admiro, com quem aprendi e aprendo. A gente vai aprendendo a separar o joio do trigo.
Tu acha que, dentro da polícia, existe esse estigma até hoje?
Certamente em alguns grupos, especialmente em quem não me conhece. Essas coisas se espalham com mais rapidez numa faixa de quem nunca conversou comigo, de quem nunca viu a minha atuação. Eu dou muita aula pra policial, já dei muita aula pra polícia no Brasil inteiro. Várias vezes aconteceu de dar uma aula para uma turma de policiais, termina a aula, as pessoas gostaram um monte da aula e vem um falar comigo: ‘Bah, professor, eu tinha uma imagem completamente diferente do senhor’. O que eu posso fazer? É isso.
Eu queria conversar contigo sobre o tema do momento na área da segurança pública, que é a questão da PEC das Drogas. A gente vinha em um momento em que, tudo indica, o STF iria descriminalizar o uso e o Senado apresentou uma proposta de criminalização total das drogas. Em caso de aprovação, que tipo de impacto terá na segurança pública?
Eu acho que primeiro é importante explicar pra gente ter bem precisamente do que que nós estamos falando. O que é a PEC 45 na verdade. Na verdade, a PEC estabelece o seguinte: a partir de agora, se a Câmara confirmar a aprovação, nós vamos ter na Constituição do País uma norma que diz que qualquer droga ilegal, independentemente da quantidade, a posse dessa droga será considerado um crime. Isso, de alguma forma, é o que a lei brasileira já diz. Então, do ponto de vista de uma mudança de paradigma, tu não vai ter um efeito muito grande. Por quê? Porque ele tá dizendo o seguinte: usar droga é crime, traficar é crime, e as penas são diferentes de acordo com a lei. Isso já está previsto. O que essa PEC faz é impedir, a pretensão pelo menos é essa, ela impede que num futuro, pode ser daqui a 10 anos, 20 anos, haja uma norma que descriminalize, por exemplo, o uso da maconha.
Teria que ser por uma nova PEC.
Teria que ser por uma nova PEC. Ou, se o governo tivesse coragem para isso, tirar do rol das drogas ilegais a maconha, porque quem define o rol das drogas ilegais é o governo, tem uma porcaria na área da saúde. É outra discussão pra ser feita mais adiante. De qualquer maneira, o que eles fizeram basicamente foi impedir que o Supremo Tribunal continuasse a sua votação ou provocar o Supremo para que não continue. Eu estou muito curioso pra ver como é que o Supremo vai reagir, porque se a PEC for aprovada, a rigor o Supremo pode entender que ela é incondicional, e já vou explicar o porquê, mas eu não sei se o Supremo vai querer bancar essa briga com o Congresso. Eu suspeito até que não, porque o Supremo é um órgão que também pensa muito sobre as repercussões políticas daquilo que ele faz, e talvez não seja uma vontade da maioria que está lá comprar esta briga com o Congresso, certo. Acho que se for aprovada a PEC, vai passar batido.
Mas qual é o mérito da questão, para a gente saber do que se trata? Nós temos uma lei aprovada no Brasil, a lei de 2006, que é a lei que está em vigor, a Lei Antidrogas, que estabelece claramente dois tipos penais: o consumo de drogas e o tráfico. O consumo de drogas é considerado um crime, mas não pode ser punido com prisão. Quais são as punições previstas para o usuário? Ele pode tomar uma advertência, ele pode prestar serviço à comunidade, ele pode ser obrigado a frequentar um tratamento para dependência, se for o caso. Então, a coisa mais grave que pode acontecer pra ele, no que diz a lei, é a prestação de serviço à comunidade. Foi detido pela polícia um jovem que estava com dois cigarros de maconha. ‘Ah, isso aqui é o uso’. Ok, então ele é um usuário, vai prestar serviço aí por seis meses, duas horas por dia numa instituição. É a coisa mais grave que poderia acontecer com ele. Ao mesmo tempo, se a polícia faz uma detenção desse tipo, uma apreensão de uma quantidade de pequena de drogas, e ela considera que isto é tráfico, esse cara pode pegar até 15 anos de cadeia.
E é uma coisa meio subjetiva.
Total? Esse é o ponto. Se tu for pegar no caput dos dois artigos quando se define os verbos que definem as condutas, portar, guardar, ter consigo, etc., tu vai encontrar que são oito verbos comuns. Tu tem oito condutas comuns nos dois tipos, tráfico e consumo. Tem uma evidente sobreposição. Isso é uma coisa que a lei brasileira acabou não resolvendo bem. Mas o que faltou na lei brasileira? Faltou oferecer um critério objetivo para separar o tráfico do consumo, como vários países do mundo fizeram, como a Espanha fez, por exemplo, como nos Estados Unidos. Em vários lugares se adota um critério de até tantos gramas dessa droga é consumo. A partir disso, é tráfico. Além disso, é tráfico agravado. Então, a quantidade importa muito em vários lugares. No Brasil, a gente fez a opção de deixar a cargo de quem? Do policial, do promotor e do juiz, que vão levar em conta as circunstâncias, até os antecedentes, entendeu? Você pegou um sujeito com uma pequena quantidade de droga, digamos dois cigarros de maconha, mas ele mora na periferia da cidade, ele tem um antecedente por tráfico, é tráfico, acabou. Não tem discussão. Pega o jovem de classe média alta com 1 kg de maconha no carro. Bom, o cara não tem antecedentes, ele foi talvez comprar o cigarro para ele, a maconha para ele, é uso, é usuário, entendeu?
Então, o que se estabeleceu na verdade no Brasil, não foi uma intenção da lei. Foi um efeito não pensado não imaginado. É que a lei em vigor instituiu um tratamento desigual no Brasil em relação aos usuários de droga. Alguns usuários são considerados traficantes, são mandados para cadeia, outros não. Neste ponto reside a inconstitucionalidade do artigo 28 da lei, que trata do consumo. O ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, que é notoriamente conhecido como conservador nessa área, foi ministro da Justiça do Temer, tocava fogo em plantação de maconha. Vem do Ministério Público, tem uma trajetória de repressão às drogas. Ele é totalmente contra. Se dependesse da visão dele, a prisão resolvia o problema da droga. Ele tem uma visão bem diferente da minha sobre drogas. Mas ele viu uma pesquisa, que é a maior pesquisa já feita no Brasil, com 500 e poucos mil ocorrências em São Paulo de pessoas presas com drogas. Ele foi examinar essa pesquisa, que mostra o seguinte: se tu é jovem, tu tem uma chance muito maior de ser preso do que se tu for uma pessoa de mais idade, com a mesma quantidade de droga. Se tu for negro, muito mais. Se for pobre, dezenas de vezes mais. Então, está dizendo que a mesma quantidade de droga apreendida pela polícia num caso da cadeia, no outro caso não dá nada. Isso aqui é inconstitucional. Conclusão óbvia. Se a Constituição estabelece que tu tem que tratar de forma igual as pessoas, tu não pode ter uma lei que está oficializando o tratamento desigual numa mesma cidade, no mesmo estado. Dependendo da delegacia, tem um entendimento diferente. O que ele tá dizendo? Se é para punir, vamos punir igual. E, para punir igual, precisamos de um critério objetivo. Então vamos estabelecer que até tantos gramas de maconha é consumo e, a partir disso, é tráfico. Ok, vamos discutir qual é o limite. Contra isso o Senado se ergueu, contra esse caminho. (…) Quais são os riscos disso? Se a gente congela essa situação, nós estamos congelando por uma Emenda Constitucional a guerra contra às drogas no Brasil.
E essa PEC não define o que é tráfico e o que é consumo?
Não, está dizendo que qualquer quantidade de droga é crime. Aplica-se a lei. O que a lei diz? Depende das circunstâncias. É como se eles pegassem a lei brasileira e tocassem dentro da Constituição. É isso que eles fizeram, a rigor. Eles não estão dizendo que vai pra cadeia e o cara que é usuário, só que o usuário já tá indo pra cadeia se for pobre. Esse é o ponto. Aprovando essa PEC, nós vamos congelar isso por várias décadas.
Na prática, acabou congelando a análise subjetiva.
Esse é o efeito perverso, porque o mundo inteiro está discutindo isso. Os Estados Unidos, por exemplo, que é o País que iniciou a guerra contra as drogas, lá nos anos 70. É o país que mais investiu dinheiro na guerra contra as drogas. Em metade dos estados americanos hoje a maconha está legalizada. Em Nova York, qualquer pessoa entra numa loja, escolhe o tipo de maconha que quer consumir, sabe a quantidade de THC, sabe quantos canabinoides tem, sabe de onde é que vem, qual é o efeito. As pessoas estão empregando gente, produzindo impostos, diminuindo encarceramento, os resultados são positivos no geral. Essa é a experiência dos norte-americanos, mas a discussão está acontecendo no México, no Uruguai. Caiu o mundo? As pessoas estão morrendo? Não, quem mata no Brasil é o tráfico. O que mata no Brasil é disputa de pontos de venda. E quem produz isso é o proibicionismo, é a proibição das drogas que cria espaço por tráfico. Então, se as pessoas não entenderam isso, não entenderam nada.
Aí tem muita gente interessada na guerra contra as drogas, muita gente interessada, porque são sócios do negócio. Vamos pegar o caso do Rio de Janeiro, tu tem policiais que estão vendendo armas, como esse Ronnie Lessa, por exemplo, matador da Marielle, vendia armas para o tráfico de drogas. É um baita negócio, né? Então, o cara é da polícia e vende arma para o tráfico. Muitos policiais no Brasil inteiro, maus policiais que envergonham as polícias, estão achacando pequenos traficantes para não serem presos. ‘Caiu a casa, meu. Me passa 20 mil ou tu vai acabar em cana’. É claro que esse policial não é a favor da mudança da lei de drogas. É muito bom pra ele do jeito que tá. Então, tem muita coisa por baixo desse tapete que não apareceu ainda. Mas eu acho que essa discussão toda tem que ser feita no Brasil sem preconceito. Tem argumentos contrários a isso? Tem. Tem argumentos da área da saúde? Tem.
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O lado perverso da PEC das drogas é constitucionalizar a análise subjetiva do policial. Entrevista com Marcos Rolim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU