23 Abril 2024
"Pressão permanente por ampliar ganho dos acionistas leva corporações a devastar e precarizar. Lógica degradou a internet, onde agora pouco se cria ou colabora – pois às Big Techs interessam a disputa, o conflito e… a impotência social", escreve Ladislau Dowbor, Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP, em artigo publicado por Outra Palavras, 16-04-2024.
"Duas diretrizes principais estruturam o sistema de gestão empresarial: maximização e competição. A maximização está centrada nos resultados financeiros e, para obter resultados, você deve superar os demais. Pode-se alegar adesão aos ESG, mas o verdadeiro jogo é sobre maximização e guerra econômica, quaisquer que sejam os custos. O que precisamos é de outro paradigma, baseado no crescimento equilibrado e na colaboração. A gestão precisa ser fundamentada em valores." (Ladislau Dowbor)
"Manolito, não é verdade que existem outros valores, além do dinheiro? Manolito: Claro que existem, também temos cheques." (Quino, Mafalda)
"Nesta nova era em rede, o paradigma tradicional da concorrência precisa de dar lugar à complementaridade, à conectividade e à cooperação." (Keyu Jin, p. 282) [1]
Os modelos de gestão no mundo corporativo são estruturados para maximizar resultados, e estes são definidos como meta principal, lucros financeiros e dividendos. Alguns chamam isso de otimização e parece bom. Os resultados também devem ser alcançados no menor tempo possível, prendendo o mundo corporativo numa corrida permanente. Os resultados sistêmicos e de longo prazo são mantidos fora do horizonte do processo de decisão e os impactos em maior escala são qualificados como “externalidades”, lavando as mãos das empresas. Um exemplo clássico é a reação da indústria de armas de fogo às críticas: produzimos armas, mas não puxamos o gatilho. Outro exemplo interessante é o da indústria de alimentos ultraprocessados: seria responsabilidade do consumidor ler os rótulos e proteger sua saúde. Na verdade, isto levou a outra indústria em expansão, a resposta farmacêutica à explosão da obesidade. Assim, temos duas indústrias em expansão, uma que produz alimentos ruins, a outra que produz remédios, e pagamos por ambas. Produzir alimentos saudáveis poderia ser uma escolha melhor, mas não no interesse da maximização dos lucros, quer nos setores alimentar, quer no setor farmacêutico.
A concorrência na época de Adam Smith poderia parecer boa e até continuar positiva nas pequenas e médias empresas. Uma padaria tem que produzir bom pão a preços razoáveis, ou outra padaria aparecerá. Mas se uma empresa produtora de chocolate na Bélgica conseguir comprar cacau mais barato no Gana, fechando os olhos ao trabalho infantil, o concorrente responsável que respeita alguns direitos humanos básicos será ultrapassado. Se uma empresa da indústria de carne bovina na Europa conseguir um acordo melhor com a JBS no Brasil, quaisquer que sejam os custos externos para o Cerrado ou a Amazônia, isso forçará os concorrentes a recorrer a práticas semelhantes, para não serem superados. Quando um algoritmo da Pfizer fixa o preço do Paxlovid, comprimido para tratamento da covid-19, em 1.390 dólares, enquanto o custo de produção, segundo uma pesquisa da Universidade de Harvard, é de 13 dólares, está apenas calculando que os muito ricos pagarão qualquer coisa pela sua saúde, e este é o preço ideal em termos de maximização de lucro. Não se trata de maximizar o impacto na saúde, vender o produto com lucro razoável e torná-lo acessível a muitos.
O estudo de Max Fisher sobre o impacto social, econômico e político dos meios de comunicação social deixa as questões evidentes. Facebook, YouTube e algumas plataformas semelhantes são basicamente empresas de marketing, vendendo nosso tempo de atenção para corporações. O marketing, por exemplo, representa 98% do faturamento da Meta. As taxas de marketing dependem de quantas pessoas são alcançadas, por quanto tempo e de outros critérios de “engajamento”. Como os algoritmos são estruturados para maximizar o engajamento, o que chega ao topo é o que atinge mais profundamente nossas entranhas, não o interesse intelectual ou cultural, a empatia ou a colaboração, mas motivações poderosas como o ódio, a confirmação do preconceito, o sentimento de pertencimento (“nós” contra “eles”) e outras emoções que maximizam a atenção. A profundidade disso pode ser vista em tantos conflitos e polarizações políticas absurdas ampliadas radicalmente pelas mídias sociais. O livro de Fisher é corretamente intitulado The Chaos Machine (A máquina do caos, em tradução livre).
A legítima otimização do lucro pelo padeiro da época de Adam Smith, quando inserido em algoritmos na era da revolução digital, com conectividade global e vieses de confirmação de epidemias, tem impactos negativos dramáticos. Não se trata de sermos “bons” ou “maus”, trata-se de ampliar instintos poderosos que existem em todos nós. Tendemos a esquecer que ainda somos fundamentalmente primatas, com grande inteligência, sem dúvida, mas com motivações profundamente problemáticas em relação à finalidade para a qual utilizamos essa inteligência. Somos parcialmente racionais, mas a capacidade cerebral acrescida não eliminou as motivações mais profundas que herdamos. O estudo de Frans de Waal sobre Nosso macaco interior mostra isso muito claramente. É assim que somos feitos, em nosso DNA. As plataformas de comunicação podem aproveitar essas emoções, e usar a tecnologia moderna para maximizar o comportamento dos primatas é simplesmente errado.
As mensagens do Facebook chegam a quase 4 bilhões, com horas de atenção, e têm custos radicalmente reduzidos em comparação com os anúncios de jornal que já tivemos. Somos apenas alimentados, e superalimentados, com mensagens tóxicas ajustadas individualmente. Anúncios e mensagens simplesmente colam nos seus olhos e filtram no fundo, gostemos ou não [2].
Lembremo-nos de que estas são as principais corporações mundiais, vender o nosso tempo de atenção é o grande negócio do presente. Também aqui a maximização funciona de mãos dadas com a concorrência: se uma empresa utiliza este tipo de manipulação de envolvimento emocional, outras vão segui-la, porque funciona, e estão lutando pela mesma mercadoria, o nosso tempo de atenção pessoal. Que é, na verdade, o momento das nossas vidas, o nosso capital pessoal mais precioso. Robert Reich resume: “Aqueles que procuram a nossa atenção – anunciantes, profissionais de marketing e políticos – enfrentam uma concorrência crescente para agarrá-la. Quando conseguem, nossa atenção se desvia de todo o resto. É por isso que a atenção está se tornando um recurso tão escasso” [3].
O sistema bancário brasileiro é outro exemplo rico. Neste caso, não se trata de competição, mas de conluio. Cinco bancos controlam 85% do crédito e cobram aproximadamente as mesmas taxas de juros extorsivas para famílias, empresas ou eventos sobre a dívida pública. Os juros da dívida de particulares durante 2023 oscilaram em torno de 55%, para uma inflação de cerca de 4%. Isto levou a uma fuga financeira para as famílias, equivalente a 10% do PIB, reduzindo drasticamente o poder de compra e, consequentemente, o estímulo da procura à economia. A taxa de juro média das empresas ronda os 23%, o que levou a uma redução do investimento produtivo. Para quem tem capital, tendo em conta que a procura está estagnada e as taxas de juro muito elevadas, se precisar de apoio financeiro, simplesmente optará por investir na dívida pública, pagando 8% líquido de inflação. Lucro sólido, sem risco, sem esforços de produção. Quando a renda financeira paga mais do que o investimento produtivo, é para lá que vai o dinheiro. Isto é simplesmente matar o ganso, com maximização a curto prazo. A economia está estagnada [4].
Não se trata de altos e baixos do mercado. É um sistema estruturado de extração de renda. Uma dimensão é a desinformação. Antes de 1994, o Brasil enfrentava hiperinflação, atingindo mais de 50% ao mês. Isso levou os bancos a apresentarem taxas de juros mensais. A hiperinflação foi reduzida, mas os bancos continuam a apresentar taxas de juro todos os meses, o que as torna semelhantes às taxas de juro anuais do resto do mundo. A taxa de juros de 100% será apresentada, nos bancos ou no comércio, como 6%, ou preferencialmente 5,9%. As pessoas pensariam que as coisas não poderiam ser tão simples: seria uma usura escandalosa. No entanto, isto é precisamente o que acontece, ao estilo do Mercador de Veneza, num país onde muito poucas pessoas sabem calcular o equivalente anual a uma taxa de juro mensal. Todos os bancos do Brasil, inclusive os internacionais, como o Santander, utilizam esse esquema. Temos 72 milhões de adultos na lista de incumprimento de crédito, cerca de metade da população adulta.
O Banco Central não deveria regular esse sistema de usura? Na Constituição de 1988, o artigo 192 estipulava que juros reais acima de 12% ao ano seriam considerados crime. Em 2003, com a entrada do recém-eleito Lula no governo, os bancos conseguiram eliminar o artigo 192. A usura, atualmente, não é crime, nem sequer é mencionada como questão legal. E o Banco Central, mais recentemente, foi declarado autônomo, colocado de facto nas mãos dos bancos e do sistema financeiro. O que levou a que a dívida pública pagasse as taxas de juro mais elevadas do mundo, basicamente ao mesmo sistema financeiro. Em 2023, a correspondente drenagem do orçamento atingiu o equivalente a 7% do PIB. O dreno financeiro improdutivo global que apresentei numa audiência do Congresso em Brasília é equivalente a 30% do PIB. Como grande parte dos congressistas tem forte investimento financeiro e, portanto, quer manter as taxas de juros tão altas quanto possível, isso se tornou uma deformação estrutural. É um drama para a economia e para a sociedade, mas é politicamente sólido. Até que ponto a democracia pode resistir quando a desigualdade atinge níveis absurdos?
A drenagem dos recursos naturais é outro exemplo. A água é um bem público e está rapidamente se tornando um recurso escasso. O The Guardian nos traz comentários a respeito do Relatório sobre a Água Doce, mostrando o impacto da privatização: “Mais de 30 anos depois da privatização da água, com a urbanização generalizada e a intensificação agrícola, é necessária uma nova abordagem – incluindo uma potencial reforma dos reguladores da água –”, diz o relatório. “Com os níveis de confiança nas empresas de água afetados por repetidos relatórios de poluição e especulação, tanto o público como os profissionais da água querem mais transparência e garantia de que as empresas estão agindo no interesse da sociedade e do ambiente” [5].
Apenas 14% dos rios no Reino Unido estão “em bom estado ecológico”. A lógica é simples: quando a gestão da água é privatizada, vender água é um bom negócio e o tratamento de esgotos é um custo. Enfrentamos problemas semelhantes em São Paulo, onde a Sabesp, empresa de gestão de água parcialmente privatizada, maximiza as vendas de água, mas mantém baixo o tratamento de esgotos. Paris mostrou o caminho, com a restauração da gestão pública de água e esgoto. Interesses equilibrados.
Estes são apenas alguns exemplos. Mas o impacto geral é dramático. A Oxfam apresenta o impacto na sustentabilidade: “Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram as suas fortunas. Durante o mesmo período, quase cinco bilhões de pessoas em todo o mundo ficaram mais pobres. As dificuldades e a fome são uma realidade diária para muitas pessoas em todo o mundo. Ao ritmo atual, serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso primeiro trilionário em 10 anos. Uma enorme concentração do poder empresarial e monopolista global está exacerbando a desigualdade em toda a economia. Sete em cada dez das maiores empresas do mundo têm um CEO bilionário ou um bilionário como principal acionista. Por meio da pressão sobre os trabalhadores, da evasão fiscal, da privatização do Estado e do estímulo ao colapso climático, as empresas estão promovendo a desigualdade e agindo a serviço da entrega de uma riqueza cada vez maior aos seus proprietários ricos” [6].
No Brasil, para uma população de 203 milhões de pessoas, temos 33 milhões passando fome e 125 milhões em insegurança alimentar. O que produzimos equivale a mais de quatro quilos de grãos por pessoa por dia. Não poderíamos pelo menos alimentar as crianças?
Todos esses magnatas corporativos reivindicam a sua adesão aos princípios ESG, os principais políticos assinam as sucessivas resoluções da COP, a OCDE é severa na sua luta pelo BEPS, John Ruggie lutou durante uma década pelo respeito corporativo pelos direitos humanos, mas como ele próprio escreveu, “para corporações internacionais, são apenas negócios”. A verdade é que, a menos que as empresas se organizem eficazmente para o bem comum sistêmico e aprendam a colaborar, dado o seu poder global, as coisas não funcionarão. Estamos presos em um processo autodestrutivo. Até que ponto devemos entrar nesta crise econômica, social e ambiental crítica, até termos uma reação global? Fizemos isso depois da Segunda Guerra Mundial, criando um mínimo de governança global. Isso foi em outra época.
É claro que podemos imaginar que fomos feitos à imagem de Deus. Stephen Jay Gould, em seu Wonderful Life, é mais pé no chão, lembrando-nos que somos “meros macacos nus que adotaram uma postura ereta”. Macacos nus de alta tecnologia. Eles não veem o que está acontecendo? Devemos aprender racionalmente como lidar com a irracionalidade. Entretanto, os políticos aprenderam a navegar com base nos nossos piores instintos. Funciona.
[1] Keyu Jin, The New China Playbook: Beyond Socialism and Capitalism , Viking, Nova York, 2023.
[2] Pallavi Rao, Visualizing How Big Tech Companies Make Their Billions , Visual Capitalist, dezembro de 2023.
[3] Robert Reich – Boletim informativo, Republicanos fazem afirmações selvagens sobre os perigos da imigração. Aqui está a verdade , The Guardian, 12 de janeiro de 2024.
[4] L. Dowbor, The Age of Unproductive Capital: New Architectures of Power , Cambridge Scholars, 2019.
[5] Sandra Laville, As ‘falhas’ conservadoras levaram a mais poluição de esgoto, dizem a água especialistas , The Guardian, 13 de janeiro de 2024.
[6] Inequality Inc , Oxfam, 14 de janeiro de 2024.
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