A emergência de recompor uma humanidade que se dilacerou. Destaques da Semana do IHU

Confira os destaques de 06 a 12 de abril

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: João Vitor Santos e Cristina Guerini | 15 Abril 2024

Seis meses de uma guerra insana em Gaza em que discussões estéreis tomam o palco quando pessoas seguem morrendo; os desafios de superar um espírito belicoso que nos move a destituir tudo que é diferente de nós mesmos e os desafios de um Brasil que ainda patina em questões emergentes em nosso tempo. Esses e outros temas nos Destaques da Semana do IHU.

Acompanhe também a versão em áudio dos destaques da semana

Resgatar o humano que se dilacerou

Em uma guerra que dura seis meses, como a de Gaza, é triste perceber que enquanto vidas são ceifadas e ou mutiladas e territórios arrasados ainda vemos discussões estéreis sobre conceitos ou julgamentos levianos sobre quem começou a briga. Nesta semana, o IHU promoveu uma live sobre a situação de Gaza. Com o título “Israel e genocídio em Gaza”, a proposta de debate gerou reações e muitas acusações de antissemitismo pelo uso do termo “genocídio”. Mas, em meio a essa névoa que embaraça a visão, é preciso não perder vista o que é essencial ao debate. Como pontuou José Geraldo de Souza Júnior, ex-Reitor da Universidade de Brasília, o mais importante é parar a guerra. “É preciso 'parar a carnificina'. O direito à defesa, o direito de Israel de garantir a justiça para os responsáveis pelo massacre de outubro, não pode justificar essa carnificina”, apontou.

Barbárie: 13 mil crianças mortas e outras milhares amputadas

O humano que se esvai na guerra, destacado pelo professor José Geraldo fica mais evidente quando o jornalista Luiz Cláudio Cunha, o segundo participante da live, traz o relato do terror que se vive em Gaza. Com fatos, que inclusive também estão narrados em seu texto “Varsóvia e Gaza: dois guetos e o mesmo nazismo”, publicado no Cadernos IHU ideias, como morte de uma criança a cada 15 minutos, a destruição em hospitais onde até se amputam membros de vítimas de guerra sem anestesia, fica difícil não considerar que a reação de Israel é desproporcional. Enquanto o lado palestino, mesmo envolto nas ações do Hamas, se tem um Exército esquálido e um tanto amador, do outro o uso da alta tecnologia decide quem vive e quem morre. Ou melhor, joga com vidas através de máquinas em que tudo parece ser um game.

O imperativo da paz

O conflito entre israelenses e palestinos tem raízes profundas, e isso ficou mais uma vez evidente a longo da live, mas enquanto ainda se constrói vias para amainar esses históricos conflitos, é preciso parar a guerra. A paz é essencial neste momento!

Os 181 dias da guerra em Gaza representam: 33.037 palestinos mortos; 14.000 crianças mortas; 9.220 mulheres mortas; 75.668 palestinos feridos; 1,9 milhão de descolados internos; +360 mil unidades habitacionais danificadas ou destruídas. (Foto: Anadolu Agency)

E mesmo que o cessar-fogo chegue hoje, com tanta dor e destruição, viver em Gaza já será um desafio. Fugir, pela fronteira com o Egito, já não é uma possibilidade, mesmo com a iminência de um ataque à cidade de Rafah, que abriga mais de um milhão de deslocados. Por isso, como apontaramLuiz Cláudio e José Geraldo, agora, é preciso reconstruir a paz e no médio/longo prazo reconstruir Gaza e superar o que Eyal Weizman diz se tratar da arquitetura como instrumento de controle, de repressão e de perseguição entre povos.

Como resistir e seguir

Gaza nos choca pelo horror e inabilidade até se organismos internacionais em salvar vidas e mediar o conflito. Mas, como lembramos sempre no IHU, essa não é única guerra de nosso tempo. Podemos olhar para o Congo ou para tantos outros confins. A própria Europa está enredada com o conflito na Ucrânia que pode jogar todo o mundo novamente em outra grande guerra. Tristes cenários que endossam os questionamentos de Giuseppe Savagnone, sobre se já não estaríamos em guerra global. E como ter esperança? Leonardo Boff mais uma vez nos incita a pensar: “no meio desta melancolia, nossa esperança prevalece, porque, pela ressurreição de um irmão nosso, Jesus de Nazaré, antecipou-se nosso fim bom. É isso que nos confere algum sentido e de não desesperar face à dramática situação da humanidade e da Terra”. Mas, se ainda assim for difícil de entender este silêncio de Deus, um caminho é também ouvir a voz daqueles que sofrem e ainda brincam enquanto esperam um amanhã melhor.

Espírito da guerra

Ainda sobre o tema bélico e das guerras de nosso tempo, é importante que não perdermos de perspectiva de que há um espírito que vai incendiar a guerra, mas que também está muito mais perto de nós do que imaginamos. O professor Edelberto Behs, parceiro do IHU, há bem pouco trouxe essa reflexão que conecta Israel com um espírito de guerra que escorrega para a extrema-direita no mundo, do trumpismo ao bolsonarimso, passando por Javier Milei, ainda neste ambiente da fé e da religião.

Genocídio lá, genocídio cá

Se falamos em genocídio em Gaza, a preocupação não é de rigor conceitual, mas de revelar que um povo, no caso o palestino, está sendo dizimado. Situação também muito similar ao que vivem os povos originários no Brasil, especialmente os Yanomamis que ainda sofrem com as ações do garimpo ilegal. Enquanto o Estado brasileiro ainda tateia na relação com esses povos, o governo parece estar mais preocupado em não desapontar o mercado. E os indígenas? Eles resistem. E vão longe na sua resistência. Nesta semana, Davi Kopenawa foi recebido pelo Papa Francisco. Ele levou ao pontífice a denúncia sobre o que passam aqui por estas terras e Francisco, mais uma vez, se aliou a esta luta.

Resistência na ABL

Outro líder indígena, Ailton Krenak, também ergueu sua voz que ecoou longe, ou melhor, ecoou num lugar onde índio era só conceito e objeto de estudo: a pomposa Academia Brasileira de LetrasABL. Sua voz, entre os 'embecados' e solenes imortais, quebrou um silêncio de 127 anos dos indígenas na ABL.

Passado, presente e futuro na relação Estado-indígenas

Dia 19 de abril é sempre lembrado como "O Dia do Índio". Mas, mais do que fantasiar as crianças ou fazer “trabalhinho” com argila na escola, a data deve servir como memória da luta destes povos. Movendo-se nesse sentido, no dia 18-04, próxima quinta-feira, o IHU promove duas atividades para alimentar as reflexões sobre o tema. A primeira é uma live, às 10 a manhã, que tem como título “As Forças Armadas e o Brasil indígena. Passado, presente e futuro”. Participarão Egydio Schwade, do Conselho Missionário Indigenista – Cimi e Jussara Rezende, do CIMI no Rio Grande do Sul.

A segunda atividade é às 17h30min, dentro do espaço do IHU ideias. Dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho, em Rondônia, e Luís Ventura, Secretário executivo do CIMI participarão do debate “Política indigenista do governo Lula. Há algo a comemorar?”. Ambas as atividades são gratuitas, com transmissão ao vivo pelos canais do IHU.

Inabilidades e tropeços

Por aqui, no cenário da política nacional, enquanto o governo Lula III vai tropeçando em questões ambientais, ministros seguem insistindo em combustíveis fósseis, entoando o mantra do mercado como forma de não resvalar e cair de vez, tratando Saúde e Educação como mercadoria. Para Rudá Ricci, que nesta semana concedeu nova entrevista ao IHU, o governo realmente titubeia em questões centrais de uma política de esquerda e no enfrentamento ao baixo clero do Congresso. E acaba arrastando a esquerda nacional consigo. Mas, para ele, a própria história do PT o caminho a ser trilhado. O que problema é que...

... a esquerda virou gestora de crises

Num caminho parecido com o de Rudá, Vladimir Safatle, em entrevista concedida essa semana, reflete que o problema é que a esquerda está operando somente como uma gestora de crises do capitalismo. Ou seja, para não derrapar no terreno movediço que a extrema-direita passa como um trator, vai se agarrando onde pode, flertando até com temas que eram riscados de sua cartilha. Para ele, é preciso vencer esse medo para finalmente a esquerda realizar as mudanças estruturais urgentes e necessárias.

Farol

Na semana passada, já destacamos que a conferência de Raul Zibechi aqui no IHU traz algumas luzes. Mas, vale recuperar, pois ele traz chaves de leituras bem interessantes para evitar esses tais tropeços do governo, da esquerda e até dos progressismos de nosso tempo. Na questão indígena, por exemplo, para ele, não se trata de conceder um ministério para índios e sim ouvir as vozes que ecoam da floresta. Por isso, sugerimos retomar sua fala, que agora publicamos também em texto.

Antropologia caquética

Nesta semana, o Dicastério para Doutrina da Fé publicou Dignitas Infinita, documento sobre a dignidade humana. Em tempos de guerra em que o humano acaba sendo violado, um documento com esse tema parece necessário. No entanto, o problema é que, como bem pontua o teólogo Andrea Grillo, o texto toma outro rumo e reflete uma antropologia velha, empoeirada e carcomida pelo tempo. Para ele, um atraso de 200 anos “não tendo em conta os homens e mulheres de 2024, mas continuando a falar aos homens e mulheres de 200 anos atrás” - mas isso o cardeal Carlo Maria Martini já sabia. “Este é o inconveniente que o Dicastério deveria remediar com grande urgência”, conclui.

Só uma colherada

O assunto de Dignitas Infinita é áspero e mexe com muita coisa por onde há séculos se lastreia a moral cristã católica. Por isso, remover essas colunas não é tarefa fácil mesmo. Qualquer milímetro que se mova, nesta Igreja de estrutura paquidérmica, pode haver desabamento que resultem só em escombros. Por isso, como aponta o teólogo moral Alain Thomasset, é preciso reconhecer que o documento também tem o dedo do Papa Francisco, quando diz respeito aos “ataques contra a dignidade humana na tragédia da pobreza, à situação dos migrantes, violência contra as mulheres, tráfico de seres humanos e guerra”. O problema é que, ao que parece, Francisco conseguiu dar apenas uma colherada neste caldo.

Reações

Não por acaso essa antropologia carcomida pelo tempo presente em Dignitas Infinita tem gerado reações. Uma delas é de Andrea Rubera, porta-voz da associação cristã LGBT “Caminhos de Esperança” e pai de três filhos com gestação de substituição. Como católico e gay, ele se diz ofendido com posições do documento. A Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+ vai mais longe: “Ao categorizar levianamente a inclusão LGBTQIAPN+ como um fenômeno ocidental imposto de forma colonialista a outras culturas, o texto ignora o fato antropológico, documentado por muitos estudiosos mesmo antes dos dias atuais, de que culturas ao redor do mundo e ao longo da história reconheceram e celebraram identidades de gênero além das reivindicações da igreja de binarismo de gênero masculino/feminino”.

Medo do gênero?

Fato é que a Igreja, e talvez até Papa Francisco, ainda possuem sérios limites para lidar com as questões de gênero em nosso tempo. Numa Igreja em saída, com tantos avanços pastorais, limites são revelados em questões dogmáticas por meio de sinais dos tempos, como estes dessa seamana. É quase como se que tivesse medo de tocar no assunto de gênero. Mas, em tempos de desmaculinizar a igreja, falar de gênero é necessário e cabe muito bem numa leitura cristã católica, como aponta Adam Beyt.

Uma Igreja humana, no tempo

Entre avanços e limites, o que fica claro é que na Igreja os valores da humanidade devem ser aqueles inegociáveis. É preciso que saiamos de nós mesmos para acolher ética, moral, pastoralmente, e até dogmaticamente, aquele que é diferente de mim, seja um homem, uma mulher, uma criança, um homem ou mulher trans, gay... um povo com cultura tão estranha a minha. Sem se isolar dos dilemas do mundo, carecemos de uma Igreja humana e para humanos em temos de tanta guerra. E o mais interessante é que na história já temos história tem interessante neste sentido, como as Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs, que ensinaram um jeito de ser Igreja no mundo até quando não se tem templo ou padre. Por isso, nessa inspiração do passado, encerramos com um convite especial a revisitarmos essa experiência no 16º Encontro Estadual da CEBs, que ocorre em São Leopoldo, de 19 a 21 de abril.

Na certeza de que o resgate da humanidade, desde as nossas práticas mais cotidianas, é capaz de superar tempos de guerras, desejamos uma ótima semana a todas e todos!