20 Fevereiro 2024
A tragédia de Gaza e as testemunhas “incômodas”. L'Unità fala sobre isso com Riccardo Noury, historiador porta-voz da Amnistia Internacional Itália.
A entrevista com Riccardo Noury é de Umberto De Giovannangeli, publicada por l’Unità, 16-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Saia daqui, você é contra Israel”. Assim foi a manchete do L'Unità na primeira página de terça-feira, em relação à decisão tomada pelas autoridades israelenses de impedir a entrada no país da Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios Ocupados, pedindo ao mesmo tempo à sua remoção. A acusação é muito pesada: antissemitismo.
Como recordou a própria Francesca Albanese, não é uma novidade. Pedidos semelhantes, dela e daqueles que a precederam no cargo, vem sendo rejeitados por Israel desde 2008. As autoridades israelenses têm uma constante atitude de fechamento em relação aos organismos internacionais de monitoramento sobre o respeito pelos direitos humanos.
Não é o único caso. A Amnistia Internacional é impedida de ter o nosso pessoal em Gaza.
Pedimos repetidamente às autoridades israelenses a permissão para entrar, mas os pedidos são rejeitados ou completamente ignorados. Não que isso nos impeça de fazer pesquisas, mas é uma atitude hostil que nos preocupa.
Não é a primeira vez que a Dra. Albanese acaba na mira dos “ultras” de Israel. No passado, a Anistia se fez promotora de uma carta aberta, que angariou muitas e qualificadas adesões, em sua defesa. Denunciar o apartheid na Cisjordânia ou o massacre em Gaza é off limits, mesmo em Sanremo e na Rai?
O esquema é o de sempre: criticar as violações dos direitos humanos cometidas por Israel contra os palestinos e defender os direitos humanos dos palestinos são quase automaticamente consideradas formas de antissemitismo.
Sejamos claros, o antissemitismo é em si uma violação dos direitos humanos, também está presente na Itália e reaparece periodicamente, como demonstram os Barômetros do Ódio da Amnistia Internacional. Mas definições cada vez mais amplas de antissemitismo, como aquela produzida pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, assumida por dezenas de países, entre os quais a Itália, corre o risco de produzir efeitos negativos na liberdade de expressão e na investigação acadêmica.
A mesma acusação de antissemitismo foi levantada contra aqueles que expressaram a opinião de que a história no Médio Oriente não começou em 7 de outubro de 2023. Veja-se bem que aqueles que condenaram os crimes de guerra cometidos pelo Hamas e por outros grupos armados palestinos naquela data – estamos falando do assassinato em massa de cerca de 1200 civis israelenses e da tomada de mais 200 como reféns – não o fizeram discretamente, entre parênteses, de passagem, em uma frase incidental ou en passant. Falaram com todas as letras. Depois fizeram uma pausa, colocando um ponto final e nova linha, para depois falar sobre o que aconteceu antes e do que estava acontecendo depois. Para muitos, ao contrário, o calendário na parede está parado no dia 7 de outubro passado. Não há uma história precedente de opressão, discriminação, ocupação, desapropriação por parte do Estado de Israel contra os palestinos e não há uma história subsequente de repetidos crimes de guerra e punições coletivas, como as transferências forçadas, do exército israelense contra a população palestina da Faixa de Gaza.
Pois bem, folhar o calendário para frente e para trás parece um tabu, a ponto de estigmatizar, através de um comunicado de imprensa lido ao vivo na TV, artistas que se manifestaram pedindo o cessar-fogo ou para parar o genocídio.
Concordo com a conselheira de administração da RAI Francesca Bria: naquele comunicado teria sido necessário expressar solidariedade tanto para com as vítimas israelenses como para com aqueles palestinas. Mas, evidentemente, o calendário parado no dia 7 de outubro não previa isso.
O Tribunal Internacional de Justiça de Haia considerou que existem elementos de direito fundamentados para abrir um procedimento por genocídio contra Israel. Como definiria a Amnistia Internacional o que tem acontecido na Faixa de Gaza há mais de quatro meses?
O Tribunal Internacional de Justiça deliberará mais adiante se Israel foi responsável pela violação da Convenção do Genocídio. Enquanto isso, em sua decisão preliminar do dia 26, considerou necessário levar adiante a denúncia apresentada pela África do Sul, impondo entre outras coisas a Israel seis medidas provisórias para proteger a população de Gaza do risco de genocídio.
Segundo a Amnistia Internacional, esse risco existe, é concreto e iminente, especialmente no caso de o exército israelense prosseguir com os planos de uma operação terrestre em Rafah: a província mais ao sul da Faixa de Gaza, menos de 70 quilômetros quadrados nos quais estão amontoados quase um milhão e meio pessoas. À frente deles está o muro de segurança erguido pelo governo egípcio, atrás deles as forças israelenses. A pergunta coletiva é “Para onde deveríamos ir agora?”. Falta a resposta.
Nos outros conflitos entre Israel e o Hamas de 2008 até hoje, nunca havia se chegado a um nível e uma dimensão de morte e destruição como as atuais. O conflito mais longo, entre os anteriores, havia durado menos de dois meses: um tempo enorme, mas hoje estamos em mais que o dobro.
A resposta de Israel aos crimes de guerra cometidos em 7 de outubro pelo Hamas e por outros grupos armados palestinos foi impiedosa. Pelo menos cinco por cento da população de Gaza (entre mortos, feridos e desaparecido) foi atingida diretamente pelo conflito; mais de 1000 menores perderam um ou mais membros inferiores ou superiores; mais de 85 por cento da população, pouco menos de dois milhões, foi obrigada a evacuar por ordem do exército israelense, que bombardeia regularmente justamente os locais “seguros” onde os deslocados foram forçados a ir; meio milhão de pessoas estão literalmente passando fome e mais de 90 por cento da população sofre de mal nutrição aguda; mais de 70 por cento das moradias da Faixa de Gaza e boa parte das infraestruturas civis básicas foram destruídas ou danificadas; mais de 300 agentes sanitários foram mortos e não há uma única estrutura hospital que esteja plenamente operacional.
O governo italiano não considerou expressar uma posição oficial em relação aos ataques à Relatora, italiana, das Nações Unidas. Questão de oportunidade ou de oportunismo?
Um aspecto precisa ser esclarecido: os relatores e as relatoras especiais da ONU não representam os países a que pertencem e exercem o seu mandato a título pessoal. Desse ponto de vista, não é obrigatório que o país de pertencimento deva assumir automaticamente as defesas de uma relatora especial; embora alguma expressão de solidariedade teria sido apreciada. Mas com mais razão ainda é insensato que seja atacada por representantes das instituições italianas ou mesmo que se peça a sua demissão.
Além disso, há um problema: na Itália o nível de conhecimento dos fatos do mundo fora da Europa e especialmente do direito internacional dos direitos humanos é geralmente bastante fraco. São temas relegados a “âmbitos restritos”, a “especialistas”. Mas justamente quando os “especialistas” são convidados a falar, os "não especialistas" os atacam. Assisti a sessões parlamentares e debates de televisão em que Francesca Albanese foi alvo de pessoas que desconhecem o que seja o direito internacional humanitário e que, no entanto, levantando a voz e fazendo mansplaning, trataram de explicar a ela como é a situação. Não foi o único caso.
Nos últimos anos, a Amnistia Internacional, com o apoio de organizações israelenses de direitos humanos importantes, como B'tselem, documentou os efeitos devastadores da massiva colonização israelense da Cisjordânia. Também aqui as palavras são substância. Porque é difícil, em certo tipo de imprensa, definir como pogroms os ataques armados dos colonos contra aldeias palestinas?
Há alguns dias, numa entrevista, perguntaram-me se concordava em definir Rafah como um "campo de concentração". Respondi que não é o caso de usar, por extensão, palavras que têm um significado histórico muito específico.
“Pogrom” é uma palavra que relembra os sangrentos motins contra os judeus no final do século XIX o início do século XX na Rússia e em outros lugares. Tem uma origem bem específica. Essa palavra está sendo usada pelas organizações israelenses de direitos humanos, que têm maior direito de usá-la, para definir ataques dos colonos contra os palestinos na Cisjordânia ocupada. Então está certo.
Para além do uso das palavras, à sombra da guerra de Gaza, a população palestina da Cisjordânia ocupada e de Jerusalém Oriental ocupada é alvo de uma campanha de violência desenfreada por parte do exército israelense e dos colonos. Lá, em 2023, as forças israelenses mataram pelo menos 507 palestinos, 81 deles menores: 299 desses 507 assassinatos aconteceram depois de 7 de outubro, no meio na indiferença geral. De 1º a 29 de janeiro deste ano, o exército israelense matou mais 61 palestinos, entre os quais 13 menores. De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, 2023 foi o ano com o maior número de vítimas palestinas na Cisjordânia desde que aquele órgão começou o acompanhamento em 2005. O 2023 foi pior que 2022, que por sua vez foi o pior ano desde 2005. Quantas centenas de mortes mais teremos que contar no final de 2024?
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“O calendário tem apenas um dia: 7 de outubro, o que aconteceu antes e depois é tabu”. Entrevista com Riccardo Noury - Instituto Humanitas Unisinos - IHU