16 Fevereiro 2024
Mohammed Imad é um dos 1,5 milhão de deslocados que atualmente vivem em Rafah, ao sul da Faixa de Gaza. Ele é farmacêutico e explica ao El Salto que parte da população enfrenta uma morte lenta devido à escassez de medicamentos.
A reportagem é de Sara Plaza Casares, publicada por El Salto, 15-02-2024.
"Eu penso que ainda é 6 de outubro, estou dormindo e vivendo um pesadelo que vai acabar. Eu juro, não consigo acreditar em nada do que está acontecendo". Mohammed Imad está no escuro. Este farmacêutico palestino fala com o El Salto na terça-feira, 13 de fevereiro, superando os problemas de conexão, de um pequeno apartamento onde vivem 13 pessoas. Ele morava no norte de Gaza, sua casa foi destruída e agora está deslocado no sul, em Rafah, onde se aglomeram 1,5 milhão de pessoas, onde antes moravam 300.000.
Imad descreve uma paisagem coberta por tendas e longas filas de palestinos e palestinas em busca de qualquer fornecimento. Eles fugiram para lá empurrados pelo exército israelense em um local considerado seguro, mas o governo de Netanyahu iniciou uma ofensiva sobre este enclave que pode ter consequências catastróficas, como alertam as Nações Unidas. "Passamos duas noites de bombardeios. Neste momento, não consigo acreditar que estamos vivos. Espero que tudo isso acabe", diz ele.
🇵🇸Mohammed Imad desde Rafah: “Nosotros no somos leyenda, somos humanos”
— El Salto (@ElSaltoDiario) February 15, 2024
Por @SPlazaque 👇https://t.co/8BCDdZBooQ pic.twitter.com/alXTRbpJzg
"Não estamos morrendo apenas pelos bombardeios", acrescenta com firmeza. "Há muitas razões para morrer aqui na Faixa de Gaza. Um genocídio não é cometido apenas com bombas". Além dos bombardeios, os palestinos enfrentam a escassez de medicamentos, outra forma de morrer lentamente para os doentes crônicos. "Eu sou farmacêutico. Conheço muitas pessoas, muitos parentes e vizinhos, que quando precisam de um medicamento, me ligam. Essas pessoas têm doenças crônicas. Eu digo a elas que não consigo obter porque não há. E dias depois vejo nas notícias que essa pessoa que me ligou para pedir o medicamento já morreu por não tomar sua medicação", ele expressa em um espanhol perfeito, aprendido na Venezuela graças a uma bolsa de estudos para estudar medicina.
Durante este massacre, Israel tem como alvo os hospitais para atacar. A ofensiva contra os centros de saúde no norte já se replica por toda a faixa. Segundo dados da OMS de 24 de janeiro, apenas sete dos 12 hospitais do sul estão em funcionamento, e de forma parcial. Médicos Sem Fronteiras denuncia que os dois maiores hospitais, o Hospital Nasser e o Hospital Europeu de Gaza, atualmente são inacessíveis entre ataques e ordens de evacuação, deixando assim a população sem opções para receber tratamento em caso de grandes fluxos de feridos de guerra. Nesta quarta-feira, 14 de fevereiro, de acordo com o ministério da Saúde palestino na Faixa de Gaza, três cidadãos morreram e outros dez ficaram feridos dentro do Complexo Médico de Nasser por tiros de um atirador de elite israelense.
“A vida das pessoas está em perigo devido à falta de atendimento médico. Com o Hospital Nasser e o Hospital Europeu de Gaza quase inacessíveis, não há mais sistema de saúde em Gaza”, afirma Guillemette Thomas, coordenadora médica do MSF nos Territórios Palestinos Ocupados. “Esses ataques sistemáticos contra a saúde são inaceitáveis e devem terminar imediatamente para que os feridos possam receber a atenção necessária. Todo o sistema de saúde ficou inoperante”, expressa Thomas.
Nos hospitais não há mais gazes e elas precisam ser reutilizadas entre os pacientes, conforme denunciam os cooperadores do Médicos Sem Fronteiras. Rami, um enfermeiro dessa organização preso no Hospital Nasser, explica que durante uma emergência com 50 feridos e cinco mortos, "perguntei ao pouco pessoal que restava se eles poderiam fornecer gazes abdominais. Eles me disseram que não tinham mais, que as que tinham já estavam sendo usadas por vários pacientes”. "Eles usam uma vez, depois espremem o sangue, lavam, esterilizam e reutilizam em outro ferido", acrescenta Rami. "Essa é a situação na sala de cirurgia de Nasser, vocês podem imaginar?”
"No momento, não há mais trabalho. Havia muitas farmácias que foram destruídas. Não há nada para fazer, apenas escapar da morte", explica Imad com voz fraca. Sua mente só consegue criar ideias para encontrar um lugar seguro agora que Israel iniciou sua ofensiva em Rafah e as bombas não param de cair. Mas ele sempre chega à mesma conclusão. "Não há mais zona segura em Gaza", denuncia.
Na segunda-feira, 12 de fevereiro, os ataques aéreos massivos começaram em Rafah, deixando 100 mortos. A UNRWA denuncia que as pessoas estão se deslocando novamente após chegar ao suposto único lugar seguro e estão fugindo para áreas do meio da faixa. "O êxodo continua à medida que as pessoas se deslocam de Rafah para as partes intermediárias da Faixa de Gaza, em busca de segurança onde não existe. Quantas vezes essas famílias foram deslocadas", denuncia esta organização no X (ou Twitter). O exército israelense fala de uma possível "evacuação" da área, enquanto a evidência torna isso inverossímil. O comissário da UNRWA, Philippe Lazzarini, negou na terça-feira que fosse possível transferir as centenas de milhares de palestinos que se aglomeram em Rafah para outras áreas até a iminente ofensiva em grande escala que o governo de Netanyahu está preparando.
People in📍#Gaza pushed further into abyss. Forced to move again.
— UNRWA (@UNRWA) February 14, 2024
The exodus continues as people move from #Rafah to middle parts of the #GazaStrip, in search of safety where there is none.
How many times have these families been displaced? pic.twitter.com/6t2vhFvKKn
Na segunda-feira, após uma breve incursão terrestre do exército israelense neste enclave, em uma entrevista à rede de televisão americana ABC News, Netanyahu apontou Rafah como o "último bastião" dos membros do Hamas e ameaçou com uma invasão terrestre "iminente". "Hoje, estou soando o alarme novamente: as operações militares em Rafah podem levar a um massacre em Gaza. Também podem deixar uma operação humanitária já frágil em ponto morto", respondeu o responsável por Assuntos Humanitários das Nações Unidas, Martin Griffiths, após a ameaça. O secretário-geral da ONU, António Guterres, falou em "consequências devastadoras" se este "ataque total" a Rafah se concretizar. A África do Sul, por sua vez, emitiu um pedido à Corte Internacional de Justiça para que tome medidas adicionais diante da ofensiva planejada em Rafah.
Desde 7 de outubro, dia em que começou o massacre no norte da faixa e o deslocamento forçado de cidadãos para o sul, já são 28.500 mortos, 384 na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental por ação das autoridades israelenses. Imad ajusta as palavras para descrever o que está acontecendo: "Isso não é uma guerra, é um genocídio contra civis. Os que morrem todos os dias são civis. As casas que são destruídas todos os dias são casas de civis", expressa enquanto o exército israelense justifica seus ataques em um suposto cerco ao Hamas.
Neste contexto, mais de uma dezena de países, liderados pelos Estados Unidos, decidiram interromper o financiamento à agência da ONU que trabalha com refugiados palestinos, a UNRWA, após uma suposta investigação de Israel que ligava alguns de seus funcionários ao Hamas. Imad explica que essa decisão está causando escassez de suprimentos, que já é visível.
"A ajuda humanitária normalmente chega ao sul de Gaza. Quando as pessoas começaram a chegar a Rafah, chegaram comida e ajuda humanitária. Mas há dois dias não chega mais nada. Para obter comida, para obter qualquer coisa, é preciso sofrer muito. É preciso pagar muito. Tudo está muito caro. Aqui não chega mais ajuda humanitária além da que a UNRWA traz. Não sabemos o que faremos nos próximos dias", lamenta.
Em 30 de janeiro, um comunicado assinado por 15 autoridades de organizações internacionais como a ONU e a OMS alertava: "As decisões de vários Estados-Membros de suspender os fundos que contribuem para a UNRWA terão consequências catastróficas para a população de Gaza. Nenhuma outra entidade tem capacidade para fornecer assistência na magnitude e na variedade que 2,2 milhões de pessoas em Gaza precisam urgentemente".
"Eu quero perguntar a todo mundo até quando? Já são 130 dias de genocídio. Todo mundo está nos vendo e está dizendo que somos lendas. 'Vocês são fortes, continuam fortes e resilientes, assim devem continuar suportando'. Por que temos que viver tudo isso? O que fizemos nós? Precisamos agir. Eu não consigo ver alguém se afogando no mar e apenas incentivá-lo a respirar", expressa Imad. "Nós não somos lendas. Nenhuma lenda deste mundo procura alimentos todos os dias. Nenhuma lenda deste mundo procura água todos os dias. Nós não somos lendas, nós somos humanos e queremos viver em paz. Imagino que é nosso direito. A extensão da destruição aqui na Faixa de Gaza é enorme. Eu juro, nenhuma mente pode imaginar. Quando vejo a destruição nas ruas, só consigo pensar que o que estou vendo não é real. Quero acordar desse pesadelo", clama Imad enquanto se prepara para passar outra noite em vigília.
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Presos em Rafah: “Há muitas maneiras de morrer em Gaza, um genocídio não é cometido apenas com bombas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU