14 Fevereiro 2024
O celibato era opcional durante o primeiro milênio de existência da Igreja e deveria se tornar opcional novamente. Esse passo está muito atrasado. Pelo menos, é bom que debatamos o assunto. Pelo bem do presbiterado. Pelo bem da Igreja.
Publicamos aqui o editorial do jornal National Catholic Reporter, 07-02-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando se levanta a possibilidade de que haja padres casados, normalmente isso ocorre no contexto da resolução de um problema – como conseguir mais padres ou manter os que já estão no ofício. Raramente a possibilidade é levantada principalmente como algo bom para o sacerdócio e para a Igreja.
O arcebispo Charles Scicluna, de Malta, deu esse raro passo na defesa dos padres casados. Seu ponto de partida, expressado em uma entrevista exclusiva ao NCR [disponível em inglês aqui], não é alguma estratégia para preencher um número crescente de vagas de ministros para ministrar sacramentos. Seu ponto de partida é a saúde do clero que leva àquilo que ele descreve como “vidas duplas”, assim como a perda para o ministério de homens que se apaixonam e vão embora para se casar.
Intencional ou não, a proposta de Scicluna também começa, por implicação, a escavar questões mais profundas sobre a natureza do sacerdócio, da vida sacramental das nossas comunidades, sobre o que a ordenação – moldada, modificada e remodelada ao longo dos séculos – passou a significar no século XXI.
O ponto de partida de Scicluna é uma proposta simples e incontestável, alicerçada em uma preocupação humana. “Uma das minhas preocupações é que as pessoas sejam postas em uma situação em que se sintam confortáveis com uma vida dupla”, disse ele.
“Isso não visa a diminuir a beleza do celibato ou o compromisso heroico das pessoas que aceitaram o celibato como um dom e o vivem”, continuou. “Mas acho que é bom discutirmos isso.”
Poderíamos acrescentar que não há melhor momento para discutir o assunto, dada a ênfase deste papado na sinodalidade, aquela abordagem amplamente consultiva ao discernimento.
O tema desfruta de um impulso favorável em muitos ambientes. Pesquisas mostraram que os católicos são a favor dos padres casados, e a proposta dos padres casados foi aprovada pelo Sínodo para a Amazônia de 2019.
As credenciais de Scicluna são impecáveis. Ele é um exemplo incomum de continuidade dos papados anteriores em um alinhamento profundo com o papa atual. O fato de ele ter conseguido fazer uma transição perfeita diz muito sobre sua integridade pessoal.
Ele é um advogado civil e também canônico que foi escolhido pelo então cardeal Joseph Ratzinger para ser o principal investigador dos crimes de abuso sexual do clero. Consequentemente, Scicluna tem um ponto de vista singular sobre o lado obscuro da cultura clerical.
Ele continua sendo uma autoridade da Cúria, além de arcebispo; foi pároco de paróquias, além de professor e palestrante muito requisitado. Sua experiência na investigação da crise dos abusos também lhe deu uma perspectiva global sobre outros problemas clericais. Ele é amplamente respeitado pela sua sabedoria, sua experiência e sua integridade. Ele não é um canhão descontrolado que faz sugestões disparatadas.
Sua proposta pode ser vista como a mais recente de um longo arco de sugestões, ajustes e preocupações institucionais sobre a questão do sacerdócio e o contínuo esgotamento dos clérigos ordenados em algumas partes do globo.
Os dados nos Estados Unidos são bem conhecidos: o número total de padres passou de um ápice de 59.426 em 1965 para 34.344 em 2022. Os padres diocesanos passaram por um declínio constante durante esse período, de 36.467 para 24.110. E hoje apenas 66% desses padres diocesanos estão listados como ativos e não aposentados; 95% dos padres diocesanos estavam ativos em 1965.
Várias tendências paralelas serviram para preencher algumas das lacunas deixadas pela diminuição do número de padres. Em 1965, não havia nenhum ministro leigo contabilizado, segundo dados do Centro de Pesquisa Aplicada ao Apostolado (Cara, na sigla em inglês). Em 2022, eram 44.556. Em muitos casos, eles são a verdadeira cola na estrutura paroquial, educadores, liturgistas e ministros de confiança para a comunidade local.
Da mesma forma, não havia diáconos permanentes em 1965. Hoje, eles são 18.043, e muitos mais estão sendo ordenados a cada ano. Tal como os ministros leigos, eles atuam ao sabor dos bispos e pastores. Em alguns casos, seus papéis estão bem definidos e são apoiados; em outros, as definições e atribuições são mais vagas. Alguns são pagos, outros não.
Não se sabe exatamente qual será o futuro deles, especialmente se os padres casados forem permitidos. Neste momento, porém, os diáconos permanentes constituem outra camada de clérigos ordenados, exclusivamente masculinos, em uma cultura clerical que já lida com questões difíceis e fundamentais.
A diferença com a abordagem de Scicluna é que não se trata de uma tentativa de resolver um problema de recursos humanos. Ela começa com o indivíduo, os padres que vivem vidas duplas e, por extensão, com outros afetados – as mulheres, as crianças, as famílias ampliadas e, certamente, as comunidades.
Sua experiência, como ele disse em uma entrevista divulgada no dia 7 de Janeiro pelo The Times of Malta, afirma que os padres que estão envolvidos em relações ocultas e de longo prazo são um fenômeno global.
Os padres, disse ele, “podem amadurecer, entrar em relacionamentos, amar uma mulher, amar outra pessoa, e eles têm que fazer uma escolha. Exatamente agora, eles têm que fazer uma escolha”.
Os católicos mais velhos vão se lembrar do êxodo em massa de padres, que começou em meados dos anos 1960 e continuou durante anos. Muitos foram embora para se casar. Muitas vezes, descobriram que não havia lugar para eles, apesar da longa formação, experiência e amor pela Igreja, simplesmente porque se apaixonaram. Alguns passaram para outras denominações cristãs que permitem clérigos casados.
Não muito tempo depois – e deixando muitos católicos perplexos – o Papa João Paulo II tomou a decisão em 1980 de permitir que clérigos casados de outras denominações fossem ordenados padres católicos.
A ironia em evitar os próprios padres que decidem se casar enquanto se aceitam outros é agravada pela constatação de que muitos daqueles que vêm de outras denominações defendem a regra do celibato.
Scicluna, em sua entrevista, faz a mesma pergunta feita por muitos católicos que testemunharam esse êxodo há décadas: “Por que devemos perder um jovem que teria sido um excelente padre só porque ele queria casar?”.
Permitir que os padres se casem dificilmente é a resposta para todos os desafios demográficos ou para os problemas mais amplos e profundos da cultura clerical. Certamente pouco contribui para responder à questão muito mais premente de por que razão as mulheres continuam excluídas dos quadros clericais.
Mas, em uma instituição que pode parecer mudar em um ritmo crescente e evolutivo, permitir os padres casados seria um passo significativo rumo à honestidade e à coerência. E, é preciso notar também que isso constituiria uma ligação com o nosso passado mais profundo, o milênio anterior ao século XII, quando os padres casados não eram incomuns.
Os obstáculos aos padres casados – pagar um salário que sustente as famílias, lidar com relações conturbadas entre marido e mulher – podem parecer significativos. Mas certamente há uma sabedoria a ser aprendida a partir da experiência daqueles antigos ministros protestantes que nadaram no Tibre e, talvez mais significativamente, dos padres casados em Igrejas de rito oriental que têm séculos de experiência com padres casados.
O ponto principal que motiva a sugestão de Scicluna não deve se perder no meio da floresta de preocupações sobre questões de recursos humanos e considerações práticas da organização institucional. Sua principal preocupação é a saúde e a integridade do clero.
Os padres que vivem em relacionamentos ocultos e os filhos que não podem reclamar abertamente fazem malabarismos com uma espécie de dupla fraudulência. Estão envolvidos em enganos que são, de fato, incompatíveis com o tipo de honestidade e transparência essencial para a saúde individual, assim como para o bem da comunidade cristã católica.
Essa não é uma questão doutrinal, observa Scicluna. Além disso, “o sacramento do matrimônio também é um estado de vida sagrado e não incompatível com o presbiterado”.
O celibato, disse Scicluna, “era opcional durante o primeiro milênio de existência da Igreja e deveria se tornar opcional novamente”.
Esse passo está muito atrasado. Pelo menos, é bom que debatamos o assunto. Pelo bem do presbiterado. Pelo bem da Igreja.
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Pelo bem da Igreja, é preciso debater o celibato. Editorial do National Catholic Reporter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU