09 Janeiro 2024
"Padre Júlio, como tantos outros, é vítima de mentiras que chegam até mesmo à manipulação de vídeos para poder mata-lo simbolicamente. A rotina das mentiras inunda as redes sociais de modos a enganar amplos setores da sociedade. Esse é o trabalho dos que odeiam e produzem a alienação da sociedade; combatem o justo, o bom e o belo. Embora reivindiquem o lugar cristão de suas asserções, ao usar o expediente da mentira, recusam o Amor e fazem o diabólico trabalho do mal".
O artigo é de Wellington Teodoro da Silva, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas.
Eu não luto para vencer.
Eu sei que vou perder.
Eu luto para ser fiel até o fim.
Padre Júlio Lancellotti
O pedido de realização de Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI – protocolado na Câmara dos Vereadores de São Paulo com objetivo de investigar Organizações Não Governamentais – ONGs – que atuam na Cracolândia revelou-se um ato contra o padre Júlio Lancellotti. O vereador que a propôs indicou esse objetivo nas mídias sociais. Não é necessária uma CPI para saber que não há envolvimento do padre Lancellotti com ONGs nesse lugar. Ele é coordenador da Pastoral do Povo da Rua que é um órgão da Arquidiocese de São Paulo que não recebe dinheiro público. Trata-se de instrumentalizar poder público para detratar pessoas matando-as simbólica e intelectualmente. Violentar a pessoa para combater o que ela significa é uma das traduções do ódio que, em nossa nação, alcançou a política.
"Eu não luto pra vencer, eu sei que vou perder, eu luto pra ser fiel até o fim.
— Luana ? ?? (@laleliloluana) January 5, 2024
A minha perspectiva é o fracasso, porque se nesse sistema eu não fracassar é porque eu aderi a ele"
Que paulada, Padre Júlio Lancellotti! Baita exemplo pra todos, religiosos ou não pic.twitter.com/MQSq78FYXE
Permanece a rotina do ódio entre nós. O ovo da serpente produziu seus filhotes que seguem na tarefa de permear setores da sociedade e do Estado por meio de mentiras e deturpações. Não poderia ser diferente: o ódio é inimigo da verdade. A política foi sequestrada pelo ódio e seus fantasmas. Esse fenômeno faz surgir no ambiente da política a sua negação, a saber, a antipolítica. Existe a negação da política. Não podemos propor que tudo seja política. Se fosse assim, ela seria um conceito e uma realidade humana inoperável e impensável. A política é exercício da liberdade. O ódio recusa a liberdade e ele mesmo é uma prisão para quem odeia. Ao sequestrar a política ele opera a antipolítica.
Esse sentimento surge contra as virtudes humanas. Sua condição de coisa má o coloca necessariamente contra o belo, bom e justo. O ódio necessita de um inimigo. Ele elabora esse inimigo com esmero. Trata-se de um inimigo fantasmagórico, imaginado, feito segundo a vontade de quem odeia. Esse fantasma é associado às pessoas reais que nada possuem que possa lhes aproximar em sua vida real a essa criação do imaginário odioso. Nesse processo, o outro é transformado no mal em essência representando forças nefastas igualmente imaginárias. O ódio produz um inimigo que é mal em sua essência. Portanto, o combate contra o mal é confundido com o combate contra a pessoa que perde sua dignidade. Não há espaço para o democrático e digno debate entre ideias com vistas à construção do bem comum. O outro é morto simbólica e epistemologicamente até se chegar à sua morte física. O assassínio torna-se, num primeiro momento, desejável, e, a seguir, necessário. Por isso, o culto das armas é fundamental e realizado na máxima potência ao ponto de se usar o corpo como símbolo da arma.
Nos últimos anos vimos, até mesmo dentro de igrejas, inúmeras imagens e vídeos de pessoas fazendo gestos com as mãos como se fossem armas. Essa simbolização do corpo ou o corpo como símbolo do ódio alcançou até a pureza das crianças. Circulou nas redes sociais vídeo de Jair Bolsonaro fazendo o símbolo de uma arma na mão de uma criança que estava em seu colo.
Causou polêmica nas redes sociais | Presidenciáveis criticam Bolsonaro por ensinar criança a imitar arma https://t.co/yvpynXnhw4 pic.twitter.com/4iSmHWJTZA
— UOL (@UOL) July 21, 2018
O que o ódio odeia tanto? Ele odeia o seu oposto, a saber, o amor. Não pensamos que o oposto do amor seja o ódio, mas, sim, o ódio se constrói tendo o amor como seu antagonista.
O amor é o objeto do ódio. As pessoas que buscam se orientar pelo amor são tidas inimigas por aquelas que odeiam. Os inimigos do amor produzem ódio e são produtos desse ódio. Eles festejam a morte, o grotesco e a violência. Os justos são objetos preferencias, mais saborosos, da sanha dos que odeiam.
Por sua vez, o amor é a atividade criativa mais nobre do humano responsável pela produção de tudo aquilo que torna a nossa condição bela, boa e justa.
Padre Júlio Lancellotti é um homem de fé cristã. Dentre os odiosos encontramos muitos que também se compreendem dessa forma. Todos se entendem como cristãos. Incrivelmente, essa mesma tradição de fé produz práticas que se opõem radicalmente. Não estamos tratando em interpretações divergentes, por exemplo, das escrituras sagradas. O ódio ressentido entorpece e aliena a razão impedindo-a de interpretar. Ela realiza sequestros hermenêuticos da literatura sagrada. Não se importa com seu conteúdo original; toma as palavras esvaziando-as de seu sentido original e preenchem-na com significados que lhes são estranhos.
Fazem algo parecido com a palavra esquerda. Retiram-lhes o significado próprio de conceito político; após esvaziarem essa palavra, preenchem-na com o significado que mais convém à fabricação do inimigo. Esquerda deixa de ser um conceito e passa a ser um símbolo que consegue conter todos os entulhos existenciais dos odiosos.
Mesmo não sendo teólogos ou biblistas treinados, sabemos que a tradição judaica e cristã estruturou a nossa compreensão sobre o bem o e mal de nossa civilidade. Também sabemos que o amor seduz; deseja estar sempre ao lado, nunca acima. Aqueles que amam creem e conhecem o Deus verdadeiro que é Amor: “Deus é amor: quem permanece no amor, permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1 João 4.16). O Deus verdadeiro demonstrou que não deseja ficar distante, acima de todos; por ser Amor e por não existir amor encerrado, dobrado sobre si, Ele é Emanuel, Deus conosco; participa, envolve-se com o humano em sua história com vistas ao encontro definito. Deus conosco porque Deus é amor e amou tanto o mundo que lhe deu seu Filho para salvá-lo (João 3, 16). O Filho de Deus viveu a condição humana por amor e, nesse ato, também por amor, nos convida a vier a condição divina.
Se, quem conhece o amor conhece a Deus e a sua vontade, como saber se estamos realizando a sua vontade? Vivendo o amor? Essa resposta é muito simples e clara nas sagradas:
Então o rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos do meu Pai, recebei em herança o Reino que foi preparado para vós desde a fundação do mundo. Porque eu tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; na prisão, e viestes a mim’. Então os justos lhe responderão: ‘Senhor, quando é que nos sucedeu ver-te com fome e alimentar-te, com sede e dar-te de beber? Quando nos sucedeu ver-te estrangeiro e acolher-te, nu e vestir-te? Quando é que nos sucedeu ver-te doente ou na prisão e irmos a ti?’ E o rei lhes responderá: ‘Em verdade eu vos declaro, todas as vezes que o fizestes a um destes mais pequenos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes’ (Mateus 25.34-40).
Não é rigorosamente isso que faz o padre Júlio Lancellotti na Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo? Onde estão os menores, senão nas ruas? Onde estão os pequenos, senão adoecidos e presos pelo vício? Famintos? Sedentos? Dentre os pequenos, esses são os menores. Esse padre está no meio deles para ser fiel ao seguimento de Jesus Cristo. Há muitos anos sua rotina é testemunha disso.
Minha Solidariedade ao Padre Júlio Lancellotti.
— Fernanda Melchionna (@fernandapsol) January 3, 2024
A extrema direita, liderada por um dos fundadores do MBL, instaurou uma absurda CPI na Câmara de São Paulo para perseguir e tentar criminalizar o padre Júlio. (+) pic.twitter.com/O9A86JwEWG
Padre Júlio, como tantos outros, é vítima de mentiras que chegam até mesmo à manipulação de vídeos para poder mata-lo simbolicamente. A rotina das mentiras inunda as redes sociais de modos a enganar amplos setores da sociedade. Esse é o trabalho dos que odeiam e produzem a alienação da sociedade; combatem o justo, o bom e o belo. Embora reivindiquem o lugar cristão de suas asserções, ao usar o expediente da mentira, recusam o Amor e fazem o diabólico trabalho do mal.
O vosso pai é o diabo, e vós estais determinados a realizar os desejos do vosso pai. Desde o princípio ele se empenhou em fazer morrer o homem; ele não se manteve na verdade porque nele não existe verdade. Quando profere a mentira, ele tira do seu próprio cabedal, porque é mentiroso e pai da mentira. (João 8, 44)
Por fim, vale propor um ponto iniciando com a fala do Padre Lancellotti que está na epígrafe desse texto. Devemos ser fieis ao Amor até o fim. O amor não busca a vitória, mas na fidelidade ao amado. A vitória sem mudar as estruturas que produzem injustiças é falsa. Se somos fieis à paz verdadeira, devemos compreender que ela apenas pode acontecer na justiça, caso contrário, teremos a silenciosa paz dos cemitérios.
É importante dar nomes adequados a esse fenômeno que nos interpela e destrói. Tratar com as palavras direita ou extrema direita não parece ser adequado. Direita é um conceito de natureza política e esse fenômeno é antipolítico. Essas palavras conferem-lhes um estatuto e dignidade próprios da política que eles não têm. Pelo contrário, combatem. Esse fenômeno repercute na política, mas não é compreendido se for pensado apenas politicamente. Ele é complexo e dessa forma deve ser entendido. As diversas áreas de conhecimento devem ser acionadas inclusive aquelas que se ocupam da saúde, tais como a psiquiatria, psicanálise, psicologia social etc.
Nomear como bolsonarismo parece igualmente inadequado. Esse termo pode reduzir o problema à figura de seu principal totem. Não compreenderemos tudo o que é necessário olhando apenas para o grande fetiche. Além disso, corre-se o risco de pessoalizar o fenômeno. Os atores sociais produzem os fenômenos. No entanto, esses fenômenos ganham autonomia e ultrapassam aquele cujo discurso de ódio lançou as centelhas iniciais que incendiaram os imaginários. Esse fogo é alimentado pelo ódio e produz uma luz que cega.
Deve-se chamar esse fenômeno daquilo que ele realmente é: ódio, odioso, valor negativo e distópico. Desse modo, é adequado se referir a ele como o fenômeno do ódio que sequestrou a política e amplos imaginários por meio do trabalho da mentira. Trata-se do fenômeno do ódio e seus promotores os odiosos. Melhor modo de chamá-los não há.
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Padre Júlio Lancellotti e o ódio de cada dia. Artigo de Wellington Teodoro da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU