02 Dezembro 2022
"Um Evangelho separado da vida não serve para nada. É preciso sermos intolerantes com a cultura do ódio e da violência, o culto às armas. O mundo irá crer na medida em que nos ver como nos amamos e não como nos matamos. Que o sangue derramado em Coqueiral de Aracruz e tantas lágrimas derramadas possam alimentar o sonho da paz e fortalecer a caminhada educativa de nossa sociedade", escreve Edebrande Cavalieri, doutor em Ciências da Religião e professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo, em artigo publicado no sítio da Arquidiocese de Vitória - Espirito Santo, 28-09-2022.
Um fim de semana tenso, denso, doloroso não apenas para a comunidade de Coqueiral de Aracruz, mas para o Brasil inteiro. Aquele bairro pacato tornou-se repentinamente manchete de notícias em todos os espaços e redes sociais. O mundo inteiro parecia estar nessa terra capixaba, mais conhecida pela indústria de celulose e pelas lindas praias, mas agora manchada de muito sangue. Sim! Não podemos diminuir o impacto da dor escondendo o chão ensanguentado.
As marcas da tragédia vão muito além dos caixões e das sepulturas. Muito além da ação das forças de segurança. Muito além dos dias de luto decretados pelas instituições oficiais. As marcas da tragédia atingiram nossos corações, nossa alma, nosso viver em sociedade. Atingiram nossa fé e nossa indiferença frente à vida. É impossível não se incomodar com o horror vivido e sofrido, noticiado e compartilhado. As marcas da tragédia não podem ser imputadas apenas à família daquele jovem vestido como um soldado atrás de inimigos. Se ele parecia estar correndo numa batalha, pulando obstáculos, portando máscara e empunhando armas de alto impacto, só nos resta refletir para além desse cenário bélico.
Confesso minha incapacidade de pensar nas 24 horas que se sucederam após a notícia, espalhada pelo mundo como uma explosão nuclear. Tinha a impressão de estar sofrendo impacto de átomos cujo núcleo fora rompido ou sofrera fusão. Padres da Diocese de Colatina estavam reunidos em Ibiraçu com seu Bispo quando foi noticiada a tragédia, e numa oração de profundo sentimento de solidariedade sagrada muitos deles deixaram escorrer lágrimas dos olhos. E no meio da noite o Bispo Dom Lauro Sérgio Versiani Barbosa veio até Coqueiral trazendo um abraço de pastor e de solidariedade humana às famílias enlutadas. O dia dele não poderia terminar sem estender a mão acolhedora de Deus no momento de dor daquelas pessoas.
Freud nos dizia que “a morte é um ato de destino brutal e absurdo”. E nesse cenário onde a batalha fatal ocorreu dentro de duas escolas onde se busca educar crianças e jovens, um deles (ex-aluno) de apenas dezesseis anos executou o plano diabólico, pensado há dois anos. Nesse mesmo texto Freud nos lembra que o destino brutal causado pela morte “não pode ser possível culpar ninguém”. Logo percorrendo as redes sociais ouvi tantas vozes gritando por vingança, por diminuição da maioridade penal, por pena de morte.
Nesse momento de consternação profunda, só pude abaixar a cabeça e receber o golpe como um pobre indefeso, como se estivesse submisso a um jugo de uma força maior. Sentia um vazio sem lugar, uma dor sem local, uma angústia sem fim. Então me senti carregando um pedaço de cada pessoa envolvida na tragédia, uma gota de sangue de cada um. Vi como esse mundo fica tão pobre e vazio em certos momentos. Na verdade, sempre é pobre e vazio. Nós nos impomos a negação do vazio, a negação da corresponsabilidade, a negação do pedaço do outro que carregamos em nós. Carregamos também as balas disparadas pelas armas daquele jovem. Nossas mãos também cheiram a pólvora. Estamos vivendo camuflados no dia a dia. Agora nossa hipocrisia grita por vingança contra o jovem assassino.
Aos poucos Coqueiral de Aracruz vai voltando ao silêncio, e a vida retomando seu rumo numa região de natureza exuberante, cheia de encanto. O desencanto do horror vai ficando num lugar e até poderá ser esquecido. Se isso acontecer, em vão serão nossas orações e nossas revoltas. O luto é um tempo de se acalmar, mas jamais de ser enterrado junto com os caixões. O luto necessita ser transformado. A melhor forma de acolher tanta dor é retomar o trabalho, rever o caminho trilhado até agora, mudar nossas formas de educar a sociedade.
O caminho mais fácil e equivocado é transformar aquele adolescente como único responsável, mesmo que seja considerado portador de algum transtorno mental. Essa tendência tão presente entre nós, inclusive nos meios de comunicação, de considerar o sujeito com transtorno mental como potencial violento que precisa ser retirado do meio social, não está de acordo com as ciências da psique. O comportamento violento não decorre do transtorno mental. Isso precisa sempre ser lembrado.
A violência é produzida nas relações que atravessam o sujeito desde seu nascimento. Portanto, ao longo de sua vida. Não somos violentos; tornamo-nos violentos. Nesse tempo de pós-luto precisamos retomar os processos de formação educacional e de caráter. Daí a responsabilidade de cada um de nós nos diversos contextos em que agimos e nos relacionamos. Sem cuidarmos desses processos de formação jamais iremos despotencializar os diversos transtornos mentais capazes de produzir tragédias como essa. Qualquer outro adolescente que não teve cuidados educativos e de formação de caráter poderia cometer tragédias como essa. Precisamos urgentemente descriminalizar o transtorno mental. Esse é o primeiro dever a ser cumprido pelas instituições sociais e religiosas.
Esse adolescente não nasceu assassino, não cresceu desejando se tornar assassino em série e nenhum aluno vai à escola para aprender a ser um soldado camuflado com a suástica nazista. Esse jovem teve outros ensinamentos e, como ele mesmo confessou, há dois anos estava planejando o horror. Há muitos elos que unem esse jovem com esse mundo de horror e nossas instituições não podem ficar fingindo que um gesto nazista de um grupo cantando o Hino Nacional seria uma forma de energização, como ocorreu recentemente no sul do país.
Como educador há quase quarenta anos fiquei com vontade de vomitar quando vi há tempos atrás um jovem professor de história entrar numa sala de aula para falar sobre o nazismo todo vestido no rigor nazista dizendo que era para ilustrar a aula. Deu-me nojo não dele, mas do entorno institucional que permitiu essa loucura travestida de estética. Esse jovem professor estava fazendo política muito forte sob a forma estética, mas fingimos não ver isso e trivializamos o acontecimento “educativo”.
Culpabilizar apenas o jovem adolescente é muito fácil. O entorno dele é até mais responsável pela tragédia do que o próprio. Ele é fruto desse meio que cultua a arma, o ódio, a violência, a morte. A inculcação de ideologia nazista que é em sua essência violenta e assassina como ocorreu na Alemanha precisa ser barrada, punida. Uma sociedade conivente com gestos nazistas é responsável por tragédias como essa de Aracruz.
É o coletivo que produz essas loucuras e sempre decorre de imagens, símbolos, de uma verdadeira estética política. É preciso que a sociedade brasileira construa um projeto que envolva de modo umbilical a educação, a cultura, a política e os meios de comunicação que sirva para a constituição de um futuro para as nossas crianças e jovens em vista da paz e da não violência.
É preciso que os cristãos e, de um modo especial a Igreja Católica, estejam aliados nesse projeto e façam em seus projetos de formação cristã nas comunidades e paróquias crescer a convivência pacífica. Um Evangelho separado da vida não serve para nada. É preciso sermos intolerantes com a cultura do ódio e da violência, o culto às armas. O mundo irá crer na medida em que nos ver como nos amamos e não como nos matamos. Que o sangue derramado em Coqueiral de Aracruz e tantas lágrimas derramadas possam alimentar o sonho da paz e fortalecer a caminhada educativa de nossa sociedade.
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Depois do luto. Artigo de Edebrande Cavalieri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU