02 Dezembro 2023
Pagamentos teriam como objetivo manipular consulta pública realizada em setembro deste ano, com a presença do presidente da Potássio do Brasil. Alguns representantes indígenas aceitaram receber outra área e desistir da demarcação do território, agora em estudo, abrindo caminho para empresa construir mina de produção de fertilizantes no local. Lideranças Mura indicaram falta de consenso e reunião foi considerada nula pela Justiça.
A reportagem é de Fábio Bispo, publicada por InfoAmazonia, 29-11-2023.
Uma decisão da Justiça Federal do Amazonas aponta que a mineradora canadense Potássio do Brasil pagou suborno de R$ 5 mil a R$ 10 mil a indígenas do povo Mura, “com o intuito de coagir e manipular as comunidades” a desistirem da demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba. O objetivo da empresa, segundo o documento judicial, era obter o consentimento dos indígenas para a escavação de uma mina de cloreto de potássio dentro do território, no município de Autazes.
Na semana passada, reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que a Potássio do Brasil ofereceu uma área de 5 mil hectares para os indígenas darem consentimento para o projeto da mina. A InfoAmazonia teve acesso ao áudio completo da reunião em que o presidente da mineradora, Adriano Espeschit, condiciona o oferecimento da nova área em troca da “não demarcação da terra indígena em cima da área do Soares”. Para influenciar na decisão, segundo a decisão da Justiça, cerca de 10 indígenas teriam recebido os pagamentos entre R$ 5 mil e R$ 10 mil.
Decisão judicial aponta que pagamentos teria intuito de “coagir e manipular” processo de consulta indígena. (Foto: Reprodução | JF)
“Esses 5 mil hectares estariam disponíveis a partir de hoje se vocês votarem favorável”, disse Espeschit. Por cerca de uma hora, ele detalhou o acerto da negociação e indicou como os indígenas deveriam decidir: “Nós não podemos ter terra indígena em cima da nossa lavra”, orientou.
A proposta ocorreu durante a reunião de consulta indígena com integrantes do povo Mura nos dias 21 e 22 de setembro de 2023. No encontro, os indígenas presentes – na decisão, a Justiça afirma que seria menos de 1% do povo Mura – teriam aceitado a proposta do presidente da Potássio do Brasil para desistirem da demarcação do território em troca dos 5 mil hectares fora do local de exploração. A decisão chegou a ser levada ao governador do Amazonas, Wilson Lima (União).
No entanto, após saberem do resultado da consulta, lideranças Mura apresentaram gravações ao Ministério Público Federal (MPF) e relataram a falta de consenso dos indígenas sobre o que foi aprovado. Em 16 de novembro, a Justiça Federal do Amazonas suspendeu o processo de consulta indígena, apontando nulidade da reunião que aprovou o projeto. Espeschit, presidente da empresa Potássio do Brasil, chega a afirmar aos indígenas que após a retirada do minério, o que pode demorar até 30 anos, eles poderão voltar a requerer a área como terra indígena.
“A partir do momento que acabar a retirada do minério, aquela terra vai poder ser terra indígena, o direito de vocês é adquirido, não existe problema nenhum, é só uma postergação. Vai continuar sendo possível depois que a empresa terminar”, declarou Espeschit na reunião.
Segundo consta na decisão de Jaiza Fraxe, juíza que julgou o pedido do MPF, a reunião não tem validade e não contou com representação de todas as lideranças indígenas das aldeias impactadas pelo empreendimento. Segundo ela, o resultado teria sido manipulado em favor da mineradora com apoio de pessoas aliciadas pela empresa.
“São mais de 12 mil indígenas Mura afetados com o empreendimento, dos quais nem 1% chegou a participar da reunião onde correu uma lista de presença depois transfigurada em lista de aprovação, havendo clara pressão de cerca de dez indivíduos – alguns já identificados e ouvidos no MPF”, diz trecho da decisão.
À reportagem, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informou que suspendeu o processo de consulta pública até que sejam concluídos os estudos para demarcação da TI Soares/Urucurituba.
A consulta livre, prévia e informada, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, foi determinada pela Justiça em 2017, em ação civil que acompanha o cumprimento dos direitos dos indígenas na área do projeto. Desde então, a mineradora tem sido seguidamente denunciada por interferir no processo de livre escolha dos indígenas e, segundo a decisão da Justiça, isso provocou a “desconfiguração ilegítima do Protocolo de Consulta”.
A decisão da juíza aponta que pelo menos sete aldeias do povo Mura registraram casos de coação, manipulação e intimidação. Por isso, cada uma poderá ser indenizada no valor mínimo de R$ 1 milhão pela atuação de má-fé da mineradora.
A Justiça também impôs uma multa de R$ 1 milhão à Potássio do Brasil por descumprimento de acordos anteriores que proibiram a presença de representantes da empresa em reuniões internas dos indígenas e determinou a retirada de marcos físicos instalados pela empresa na área ocupada pelas comunidades.
Além disso, desde agosto, todo o licenciamento ambiental concedido à empresa pelo estado do Amazonas está suspenso, sob o argumento de que é competência federal e não estadual licenciar a obra.
Esta não é a primeira vez que a mineradora é acusada de desrespeitar os direitos dos povos indígenas. O mesmo projeto de exploração de potássio em Autazes enfrenta conflitos desde 2015, quando a Potássio do Brasil iniciou perfurações em terras indígenas da região sem autorização. Após um acordo em 2017 com o MPF, a empresa aceitou respeitar as regras de consulta indígena como a OIT-169.
Na época, a Potássio do Brasil reformulou o projeto para evitar sobreposição com a Terra Indígena Jauary, e iniciou uma consulta indígena com base no Protocolo Mura, que tem validade legal e foi elaborado pelos próprios indígenas. O documento estabeleceu os critérios em que a comunidade deve ser consultada sobre projetos que impactam diretamente seu território. A criação destes instrumentos próprios de consulta tem sido estimulada pelo MPF para resguardar a autonomia e preservação das características próprias de cada povo sobre seus territórios.
No entanto, grande parte do empreendimento continua sobre área da Terra Indígena Soares/Urucurituba, que estava com processo para demarcação parado desde 2003 na Funai, e só foi retomado em abril deste ano após decisão judicial.
Em junho deste ano, o MPF pediu a suspensão do projeto de mineração até a conclusão dos estudos para demarcação da terra indígena. Segundo declarou o procurador federal Fernando Merloto na época do pedido, “se esses estudos comprovarem de fato os elementos da tradicionalidade e da ocupação, se extingue o projeto [da Potássio do Brasil]”.
A legislação brasileira não permite mineração em terras indígenas, no entanto, a empresa tem buscado alternativas para impedir a conclusão do processo de demarcação de terras na área onde pretende explorar o minério.
Em 2020, na gestão do ex-presidente Bolsonaro (PL), um projeto para liberar a mineração em terras indígenas foi apresentado ao Congresso e chegou a tramitar em regime de urgência. O ex-presidente chegou a usar o caso do projeto da Potássio do Brasil para justificar seu projeto para liberar a mineração em terras indígenas. Após assumir o governo, o presidente Lula (PT) pediu arquivamento do projeto.
Anunciado como promessa para reduzir a demanda externa do agronegócio brasileiro por fertilizantes, o projeto da Potássio do Brasil tem conquistado o apoio de grandes empresários do setor e de parte da classe política.
Segundo informações da própria mineradora, o projeto de potássio na Amazônia vai custar 2,4 bilhões de dólares (R$ 11,6 bilhões). A empresa tem buscado investidores internacionais e tentado uma liberação para captação de recursos na bolsa de valores dos Estados Unidos, onde a empresa tem sido acusada de esconder informações dos investidores.
Mesmo sem garantias da viabilidade do projeto, a Potássio do Brasil anunciou um contrato de exclusividade para venda de 2,4 milhões de toneladas de potássio com o conglomerado agrícola Amaggi, da família de Blairo Maggi, que foi ministro da Agricultura no governo do ex-presidente Temer (2016-2019) e é o maior produtor de soja do Brasil.
Os executivos da Potássio também são vistos frequentemente com políticos e já receberam apoio público do governador do Amazonas, Wilson Lima (União), que chegou a se posicionar publicamente contra a demarcação da terra indígena na região do projeto, e até do vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), que se encontrou com os empresários em março deste ano. Inclusive, um desses encontros não foi registrado na agenda pública do vice-presidente, no dia 3 daquele mês.
Alckmin se reuniu com executivos da Potássio do Brasil e gravou vídeo defendendo o projeto que pode estar totalmente dentro da terra indígena Mura. (Foto: Divulgação | Potássio do Brasil)
A Potássio do Brasil tem 177 requerimentos de mineração registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM). O projeto Potássio-Autazes, segundo informações divulgadas pela própria mineradora, é o maior dentro de um planejamento que prevê exploração em vários outros municípios no leito do Rio Madeira. A ideia é garantir a exploração e produção de fertilizante em plena Amazônia, e escavar o subsolo a quase um quilômetro de profundidade, abrindo galerias em uma área de 13 quilômetros de comprimento com 10 quilômetros de largura.
Na mesma reunião em que teria pressionado os indígenas a aprovarem o projeto, o presidente da Potássio do Brasil chegou a afirmar que a empresa considera uma liberação do Congresso para mineração em terras indígenas.
Segundo declarou aos indígenas, a empresa tem planos futuros para explorar potássio na Terra Indígena Jauary, que estava nos planos iniciais, mas foi retirada do projeto após acordo judicial.
Segundo Espeschit, a mineradora vai escavar até chegar no limite da terra indígena, o que pode levar 19 anos. “E aí, sim, a gente vai poder estar entrando dentro do Jauary com a regulamentação do Congresso Nacional, porque vocês vão nos ajudar”, declarou.
Procurada pela reportagem da InfoAmazonia, a Potássio do Brasil disse que os pagamentos de R$ 5 a R$ 10 mil para as lideranças indígenas ocorreu “dentro do processo através de depósitos judiciais com a devida liberação da juíza”.
Sobre a proposta de uma nova área para os indígenas fora do local do projeto de potássio, a empresa justificou que “todos os benefícios socioeconômicos e ambientais previstos para os indígenas e para os não indígenas no âmbito do Projeto Potássio Autazes são declarados publicamente pela Potássio do Brasil”.
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Mineradora canadense é acusada de subornar indígenas para desistirem da demarcação do território e explorar potássio na área - Instituto Humanitas Unisinos - IHU