01 Novembro 2023
Shipra Narang Suri nasceu em Nova Deli, há 48 anos, mas vive em Nairóbi, no Quênia, como chefa de Práticas Urbanas no ONU-Habitat, o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos. Narang é urbanista e passou mais de 20 dias percorrendo a Espanha para tentar dar visibilidade ao modo como as cidades podem trazer à realidade as grandes questões que dizem respeito ao seu presente e futuro, além de seu valor como alavanca para impulsionar a famosa Agenda 2030 e seus objetivos de desenvolvimento sustentável. “Exploramos os recursos naturais muito mais do que deveríamos”, é um pouco o seu resumo.
Narang Suri conversou com o jornal El Diario pouco antes de terminar sua viagem e retornar para a África. “Vou ter um dia para fazer algum passeio, mas o lar é onde estão os filhos e os meus estão em Nairóbi”, diz, antes de entrar de cheio na análise dos desafios das cidades, a casa de cada vez mais pessoas. “É um processo imparável e irreversível”.
A entrevista é de Raúl Rejón, publicada por El Diario, 30-10-2023. A tradução é do Cepat.
Que elementos deve ter – e deverá ter daqui a cinco anos – uma cidade sustentável?
O desafio é que consumimos muito mais do que é sustentável. Nossos sistemas de produção não estão alinhados com a sustentabilidade e nossos sistemas econômicos são, fundamentalmente, desiguais e excludentes, em vez de inclusivos. Exploramos os recursos naturais e os ecossistemas mais do que deveríamos. Portanto, a definição clássica de sustentabilidade ainda é válida.
As cidades são, portanto, um campo crucial neste jogo.
São um fator muito importante quando se fala em sustentabilidade porque 50% da população vive nas cidades e chegará a 70%, em 2050. Os parâmetros da sustentabilidade serão centrais: sistemas energéticos, sistemas de obtenção de alimentos, a proteção social nas cidades, a educação, o clima, a biodiversidade... todos estes aspectos serão críticos.
Considera, então, que desacelerar o crescimento das cidades poderia ser uma boa estratégia?
Não acredito que a questão seja desacelerar esse crescimento, pois como fazer isso? Por que as pessoas vão para as cidades? Em busca de uma oportunidade, de melhores serviços, melhor qualidade de vida... porque percebem que seus filhos e filhas terão melhores oportunidades, um trabalho melhor, uma saúde melhor, melhores escolas. Elas vêm para as cidades porque estão fugindo de alguma coisa: mudança climática, desastres naturais, conflitos e guerras. Existem fatores que atraem e que repelem nas cidades, mas a urbanização da sociedade é imparável e irreversível.
O mais sábio é enfrentar o problema.
Seria mais prudente concentrar a nossa atenção no tipo de urbanização que faremos, em como administrar melhor esta urbanização. É claro que a chegada de população gera pressão sobre os serviços e infraestruturas, mas a solução não consiste em colocar uma barricada para deixar as pessoas de fora, mas, ao contrário, proporcionar moradias e serviços melhores, espaços públicos, mobilidade e transporte.
Você diz que para fazer isso é preciso ter um enfoque regional. Em que sentido?
Por exemplo, aqui. Não se trata apenas da cidade de Madrid, mas do território que a rodeia: as cidades menores, inclusive as comunidades rurais fora de Madrid. Desenvolvê-las em harmonia. Que tudo funcione como um sistema porque só assim funciona para todos. Nem todo mundo quer morar em uma cidade grande, querem viver em uma cidade pequena, mas também querem que os serviços funcionem. É fundamental olhar para isso como um sistema.
Existe uma relação entre o tamanho da cidade e a qualidade de vida?
Não há uma correlação no sentido de que a cidade grande é pior e a cidade menor é melhor. Isso não funciona assim porque, além disso, o contexto é diferente: o que na Índia é uma cidade pequena não vale para uma cidade pequena na Espanha. Você não pode fazer a comparação desse modo. Observamos que cidades de tamanho grande, quando desenvolvidas de modo que em seus bairros os moradores possam encontrar todos os serviços que necessitam com uma viagem de 20 minutos, permitem que cidades como Madrid, Londres e Mumbai possam ter boa qualidade.
Um multidesenvolvimento...
Se você não é obrigado a se deslocar por duas horas para chegar ao trabalho, deixar os filhos na escola e fazer a compra, mas faz tudo isso em um intervalo de 15 a 20 minutos, então, essas cidades são as que possuem a melhor qualidade de vida.
Isto é, basicamente, o que hoje se chama de ‘cidades de 15 minutos’...
Não devemos nos deixar levar pelas palavras. A frase “cidade de 15 minutos” gerou muitas reações. A questão não é lhe dar um nome, mas, sim, o conceito: posso acessar facilmente os serviços que preciso. Deveríamos poder deixar nossos filhos na escola, ir comer, buscá-los, fazer compras e, possivelmente, correr no parque. E o crucial não está se tudo acontece exatamente em 15 ou 30 minutos.
Portanto, o deslocamento e o sistema de transporte são pontos centrais para uma cidade sustentável e com qualidade de vida.
Deveria ser quase o ponto mais importante de concentração do planejamento das cidades. Muitas estão a serviço dos carros em vez dos cidadãos. O desenvolvimento urbano pensado em torno do trânsito consiste, basicamente, em projetar o uso do espaço e o transporte de forma integrada para que, por um lado, reduza a necessidade de usar o carro e se deslocar longas distâncias e, por outro, ofereça boas opções de transporte público. E, além disso, existe a possibilidade de transporte ativo para trocar o carro, ônibus ou metrô pela caminhada ou bicicleta. Onde fizeram isto, as cidades resolveram muitos problemas ao mesmo tempo.
Pode exemplificar?
As cidades holandesas. Muitas pessoas pedalam ou caminham para o trabalho. Há mais de 35 anos, Amsterdã costumava ficar cheia de carros e, agora, mudou completamente. A maioria dos deslocamentos é realizado de bicicleta. Contudo, existe uma regra fundamental para isto: o destino do dinheiro e do investimento público. Isto faz a diferença. Se você investe em uma rodovia, estimula que se dirija. Se você investe no transporte público, incentiva esta opção.
Dou outro exemplo: quando desembarquei em Genebra, antes de chegar à cidade, o hotel me enviou um cartão de transporte público, então, não tive qualquer motivação para ir de táxi. Eu poderia pegar o metrô ou o bonde, subir, descer... sem me preocupar com as passagens ou em ter o troco. São políticas públicas adotadas que podem incentivar as pessoas na direção adequada. E para isso é preciso vontade, criatividade e um sólido investimento público. O setor de transporte precisa de tudo isso.
Considera muito importante tornar as cidades mais verdes?
Definitivamente. Menos carros e mais árvores significam mais felicidade. Tornar as cidades mais verdes é uma questão crucial por muitas razões. Há poucos dias, estive em Donostia e me lembrava da visita que havia feito a este lugar antes da pandemia de Covid, quando estavam reformando uma praça no centro, retirando pedras e plantando árvores porque a praça não tinha árvores. Era bonita, mas não tinha árvores, então, onde uma pessoa poderia descansar? Ou uma mãe com os seus filhos? Como você pode incentivar as pessoas a caminhar ou usar um espaço público? Oferecendo-lhes sombra.
A todo tempo, você menciona as soluções baseadas na natureza para adaptar as cidades à mudança climática.
Essas mesmas árvores, essas sombras, também diminuem o efeito de ilha de calor das cidades. Permitem que você possa caminhar mesmo em dias quentes, pois é possível fazer pausas. Limpam o ar... Então, tornar as cidades mais verdes é uma dessas coisas que traz múltiplos benefícios.
Além disso, os espaços verdes e azuis [lâminas de água urbanas] devem estar ligados para tornar as cidades mais resilientes, por exemplo, em caso de uma inundação ou de um aumento do nível do mar. Quando se produz um excesso de água, pode ser absorvido se houver uma armadilha verde que, normalmente, será um parque público ou uma floresta urbana...
Contudo, trata-se de reverdecer de forma igualitária.
Outra coisa que fazemos no ONU-Habitat é mapear os espaços abertos e verdes que existem em cidades específicas, porque não se resume a dizer: ‘Temos 15% da cidade com espaços verdes’. Onde estão esses espaços? Trata-se de uma floresta no limite da cidade ou estão distribuídas por todos os bairros? E isso faz uma grande diferença.
Adaptar as cidades à mudança climática deveria ser uma prioridade para os governos locais?
Absolutamente. E em todos os lugares, porque os governos locais estão na linha de frente de qualquer crise. Quem são os primeiros a reagir quando ocorre uma onda de calor ou uma inundação? Os governos locais estão na linha de frente, razão pela qual deveria estar no topo de sua agenda criar resiliência diante desses problemas.
Considera que estão conscientes disso?
São muito mais sensíveis do que pensamos. São muito conscientes de que precisam mudar como são as suas cidades, mas vejo que muitos deles têm o problema de ficarem presos em investimentos e padrões de uso do espaço e das infraestruturas que os tornam incapazes de mudar sem grandes custos e polêmicas.
É difícil que olhem a longo prazo...
Investimentos em infraestruturas te comprometem por 50 a 100 anos! É muito difícil. Em Seul, capital da Coreia do Sul, desmantelaram uma rodovia e restauraram a margem de um rio em seu lugar e foram muito corajosos em fazer isto. Não é fácil eliminar uma infraestrutura que os próprios cidadãos consideram crítica e lhes dar, em troca, uma visão diferente. Demoraram de cinco a sete anos nesse trabalho e com as pessoas criticando e protestando contra o governo local. No entanto, agora, o número de pessoas que utilizam a nova infraestrutura é gigantesco e há muita satisfação com essa decisão.
Possivelmente, algum governo perca o seu emprego, mas, na realidade, é preciso coragem política para fazer coisas a longo prazo, inclusive, com o risco de uma perda a curto prazo. Contudo, é preciso ter coragem de fazer o que é certo e saber que o benefício virá em sete anos. Veja o que fizeram em Paris. Nos próximos Jogos Olímpicos, pretendem trazer competições de natação para o Sena... Há cinco anos, seria possível imaginar isto?
Além de coragem, o que mais é necessário para essa mudança?
Melhor planejamento e melhores sistemas de informação. É necessário que as políticas públicas sejam bem financiadas e que se utilize tudo o que for possível nessas soluções baseadas na natureza. É preciso olhar com ao menos cinco anos de antecedência. As projeções devem mudar porque as cheias que antes ocorria de dez em dez anos, agora, serão a cada cinco anos.
Também é necessário acumular dados mais eficientes para compreender quais as partes da cidade que são mais vulneráveis, que população é mais vulnerável: os deficientes, os migrantes, as crianças, as pessoas sem lar... São estes os mais expostos porque quando ocorre um desastre, perdem os seus modos de vida e ninguém está consciente disso. E se um governo local pode proteger os mais vulneráveis, pode proteger a todos.
Os casos de Seul e da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, que você mencionou, são uma forma de mostrar que existem alternativas, outras formas de fazer as coisas, certo?
Claro. Devemos usá-los como exemplos e inspiração. Existem riscos no momento de tomar essas decisões, mas podem ser gerenciados. Hidalgo é um exemplo, mas há mais prefeitos assim. Por outro lado, é preciso considerar que os cidadãos em todas as partes são cada vez mais conscientes de que estas questões são críticas. A qualidade de vida, a qualidade do ar e da água, a poluição... Por isso, os governos locais terão de construir alianças com a sociedade civil e outros níveis de governo. Nos lugares em que as administrações municipais construíram estas coalizões, conseguiram fazer o que era certo e mitigar esse risco político.
Na Espanha, o acesso à moradia é um problema, mas também é um dos principais assuntos na hora de enfrentar a crise climática.
A moradia é uma questão central para se adaptar e mitigar a mudança climática. Os edifícios são uma das fontes mais importantes de emissões de gases do efeito estufa, mas quando chegam os desastres naturais causados por esta mudança, os primeiros que se veem afetados por estes desastres são aqueles que não têm uma casa adequada. Estimamos que cerca de 1 bilhão de pessoas vive em algum tipo de bairro marginal, outro 1 bilhão em casas inadequadas e mais de 350 milhões não têm lar. A Finlândia é o único país do mundo que resolveu isto e não é uma brincadeira.
Como?
Com um programa chamado A casa primeiro. Proporciona-se uma moradia em primeiro lugar e, a partir daí, os serviços são ligados a essa casa: a saúde mental, a proteção social, o apoio ao emprego..., pois é muito complicado ter acesso a esses serviços, se você não tem um endereço. Por exemplo, a agência de emprego te pergunta: onde você mora? E se tiver que dizer na porta de um McDonald's ou naquele banco do parque ou na pequena entrada do Banco de Espanha... isso não é um endereço. A Finlândia rompeu esse círculo vicioso ao colocar as pessoas em uma casa. Esse é o enfoque necessário.
Considera que os responsáveis pelas cidades sabem o quanto são importantes para combater a crise climática?
Sim, sim. A questão é se os governos nacionais estão conscientes da importância das cidades. Receio que a resposta não seja satisfatória: há quem sim e quem não. Se os governos nacionais estivessem conscientes do que as cidades têm a contribuir, se fizerem os investimentos adequados, as políticas adequadas, estariam fazendo algo a mais para ajudá-las e trabalhando de mãos dadas.
Uma pergunta um pouco diferente: acredita que algumas cidades estão acordando do sonho da galinha dos ovos de ouro que supõe o crescimento sustentado do turismo, devido ao perigo de ‘gentrificar’ seus bairros e expulsar os moradores?
Temos de enfrentar esta questão no contexto da procura de moradia adequada e equitativa. Qualquer coisa que esteja empurrando o preço da moradia para além da capacidade dos cidadãos deve ser vista de forma crítica. No entanto, o turismo representa um ingresso importante para muitos países, não podemos perder de vista que isso é uma contribuição importante para a economia. E se é significativo, como negá-lo? Então, sim, é um desafio.
É necessário encontrar um equilíbrio entre as necessidades de quem vive e trabalha nas cidades e de quem presta serviços aos visitantes e ainda não temos um mantra para resolver isso. Contudo, em todo caso, o direito a uma moradia adequada é a nossa base e garantir esse direito é a prioridade número um. A partir daí, podemos conversar sobre qualquer outra coisa.
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“Menos carros e mais árvores significam mais felicidade”. Entrevista com Shipra Narang - Instituto Humanitas Unisinos - IHU