11 Outubro 2023
"Se o dinamismo da vida eclesial for obediente ao poder da palavra de Deus, então os cristãos saberão abrir caminhos de evangelização e sentir-se-ão povo em missão", escreve Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, membro da comunidade Casa Madia, em artigo publicado por Vita Pastorale, outubro de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Quem é a Igreja? ", perguntamos, e não apenas "o que é a Igreja?". A pergunta: “Quem é a Igreja?” pressupõe que seja um sujeito, uma criatura. De fato, a Igreja tem uma personalidade, é certamente composta por homens e mulheres que em todos os tempos e em todos os lugares Deus chamou e continua a chamar; no entanto, a Igreja também é “pessoa mística”. As Sagradas Escrituras, e em particular o Novo Testamento, descrevem-na como redil, rebanho, fraternidade, assembleia-comunidade (em grego ekklesía, termo que depois designará a Igreja), povo de Deus, templo de Deus; em breve se chegará a designar a Igreja como corpo de Cristo, esposa do Cordeiro. Há uma compreensão crescente, por parte dos cristãos, de forma que aquele "pequeno rebanho" - como Jesus o chamava - é cantado no Apocalipse como "uma esposa ornada para o esposo" (Ap 21,2), o Senhor Cristo, a esposa que junto com o Espírito clama: “Vem, Senhor!” (cf. Apocalipse 22,17). Eis quem é a Igreja!
Infelizmente, quando usamos o termo “igreja” não evocamos mais a relação inseparável entre Igreja e palavra de Deus, e assim fazendo desfiguramos o sentido da palavra. Igreja, ekklesía, designa em primeiro lugar a realidade de homens e mulheres chamados, ek-kletoí, por Deus com a sua Palavra. Deus fala, Deus chama, isso é o que é extraordinário na fé judaico-cristã. E quando Deus fala, ele chama à existência, convoca, reúne aqueles que são alcançados pela sua Palavra e a escutam. Existe Igreja, existe povo de Deus quando existe a escuta da Palavra: essa é a condição sine qua non para que haja Igreja, entendida não só como realidade sociológica ou religiosa, mas como Igreja de Deus!
Uma igreja evangelizada. Se lermos atentamente a história do povo de Deus nas Sagradas Escrituras, poderemos compreender a relação inseparável entre palavra de Deus e Igreja, especialmente nos eventos em que há a epifania da Igreja, da assembleia desejada por Deus. Refiro-me em particular àqueles eventos em que mais do que nunca é visível o que é o povo de Deus. Nessas narrativas estão sempre ressaltados os seguintes elementos:
Essa é a assembleia que celebra a aliança com Deus sobre o fundamento da sua Palavra. Pois bem, não se pode deixar de notar que Jesus realizou as mesmas ações:
Em suma, da assembleia do Sinai até à nossa assembleia dominical vivemos e renovamos sempre o mistério da Igreja, povo de Deus, esposa do Senhor Jesus, corpo eucarístico no mundo. Dessa forma a Igreja é evangelizada, é uma comunidade que se deixa chamar e reunir como assembleia do Senhor e permite que seja a palavra de Deus a traçar o seu caminho na história. Especialmente no Dia do Senhor, no domingo, na liturgia eucarística, "culminância e fonte" de todo o ser e fazer da Igreja, Cristo ressuscitado e vivo, o Kyrios, molda com a sua Palavra o rosto da comunidade.
A Palavra celebrada, proclamada, feita ressoar com a homilia é palavra de Deus, não apenas palavra humana. Faz-nos crescer no conhecimento do Senhor, portanto faz-nos crescer no amor por Ele e conforma cada cristão à imagem de Cristo. Nunca se deveria esquecer: muitas vezes os nossos irmãos e irmãs têm um contato com a Palavra de Deus apenas na liturgia eucarística dominical e, se não for reconhecido esse momento do dia do Senhor, do dia da Igreja, então não há comunidade cristã. Em resumo, uma Igreja evangelizada tem discípulos cristãos de Jesus; uma Igreja não evangelizada tem cristãos que, no máximo, fazem propaganda, são militantes, muitas vezes improvisados. Continuo convencido de que a “nova evangelização”, lançada por João Paulo II no início da década de 1990, deu poucos frutos justamente porque a ênfase não foi colocada no aspecto da evangelização dos cristãos, mas insistiu-se imediata e desproporcionalmente em seu serem evangelizadores.
Uma Igreja evangelizadora. Se a Palavra de Deus ocupa realmente a centralidade na vida eclesial, se exerce a sua primazia numa Igreja que escuta, então o Espírito Santo que acompanha sempre a Palavra torna a Igreja capaz de dar conta da Palavra recebida, de anunciá-la, de evangelizar. Como foi dito no Sínodo dos Bispos sobre o tema ‘A palavra de Deus na vida e na missão da Igreja’, em 2008, a Igreja deve promover e implementar uma pastoral centrada na palavra de Deus. Mas atenção: isso não no sentido de acrescentar novas iniciativas ao que já está sendo feito nem de substituir as atuais formas da pastoral com novas obras. Não, incrementar a pastoral bíblica significa implementar uma animação bíblica de toda a pastoral sem justaposições com outras formas. Bento XVI esclareceu por ocasião daquele Sínodo: “Falar de animação bíblica da pastoral não pode significar acrescentar mais alguns encontros na paróquia aos muitos que já existem, mas rever o que está sendo feito à luz do encontro com a palavra de Deus que é Cristo. A catequese deve resultar bíblica, a formação deve ser feita dando à palavra de Deus a sua centralidade hegemônica, toda atividade comunitária deve ser inspirada pela Palavra e julgada pela Palavra”.
Se o dinamismo da vida eclesial for obediente ao poder da palavra de Deus, então os cristãos saberão abrir caminhos de evangelização e sentir-se-ão povo em missão. Aquele Sínodo reiterou que “a missão de anunciar a palavra de Deus é tarefa de todos os discípulos de Jesus Cristo como consequência do seu batismo." Nenhum cristão pode sentir-se alheio a essa responsabilidade. Essa é a consciência que deve ser adquirida por cada paróquia e comunidade, que deve estar profeticamente na companhia dos homens e levar profeticamente a palavra de Deus onde ela não ressoa.
A vida de cada cristão e de cada comunidade cristã deve, portanto, ser coerente com aquilo que acredita, com a palavra de Deus escutada e acolhida. Essa coerência é o testemunho que pode ser lido mais do que palavras, especialmente hoje, no contexto de uma sociedade indiferente. Esse testemunho põe em evidência a “diferença cristã”, o fato de que os cristãos não vivem a conformidade com a sociedade como querem a maioria, o mundanismo, a ideologia dominante. Uma vida que saiba ser diferente, alternativa à vida alienada dos ídolos e inspirada pela moda, pela opinião da maioria, pelo "é o que todos fazem"... Se os cristãos souberem viver o testemunho na vida cotidiana e entre pessoas, então evangelizam porque mostram dentro deles próprios uma convicção, uma esperança que humaniza a sua vida, suscitando questionamentos e interesse nos não-cristãos.
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Unidade inseparável entre Igreja e palavra de Deus. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU