05 Setembro 2023
"É claro que nunca considerámos os conflitos fundiários como um duelo entre contendores em pé de igualdade e sempre soubemos que envolvem agressores violentos e vítimas indefesas. Dona Elena, porém, me conta algo que me parece novo, mas que, evidentemente, é tão antigo quanto a conquista e colonização material e espiritual dos Abya Ayala", escreve Flávio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 03-09-2023.
Recentemente, o bispo da diocese de Brejo, Maranhão, Dom Valdeci Mendes, me contou uma conversa com Dona Elena, da comunidade de Baixão dos Rochas, município de São Benedito do Rio Preto.
Na madrugada de 19-03-2023, Dona Elena, 65 anos, juntamente com o marido doente, o filho e o neto de 6 anos foram sequestrados, durante toda a noite, por homens armados das empresas Bomar Agricultura e Terpa Construções, que atacou a aldeia. Eram quinze criminosos, fortemente armados.
A comunidade tradicional é formada por 25 famílias, agricultores e coletores, que vivem nesta área de cerca de 600 hectares há mais de 80 anos. As duas empresas, apresentando títulos de propriedade absolutamente questionáveis, pretendem expulsar as famílias, desmatar a terra e transformá-la em lavoura de soja.
Quando Elena conseguiu voltar ao Baixão viu as casas queimadas, os três fornos de farinha destruídos, os celeiros de farinha e arroz saqueados, galinhas e porcos roubados, cachorros mortos e árvores frutíferas derrubadas. Dom Valdeci, emocionado, reconheceu o sopro de profecia em Dona Elena e disse: “Não fui eu quem entrou no conflito, foi o conflito que entrou em mim”.
Esta afirmação franca chega-me como a revelação de algo essencial, forte e convincente, que, no entanto, excede a minha capacidade de compreendê-lo na sua intensidade e integralidade.
É claro que nunca consideramos os conflitos fundiários como um duelo entre contendores em pé de igualdade e sempre soubemos que envolvem agressores violentos e vítimas indefesas. Dona Elena, porém, me conta algo que me parece novo, mas que, evidentemente, é tão antigo quanto a conquista e colonização material e espiritual dos Abya Ayala.
Com extrema simplicidade, diz uma verdade sempre ignorada e pisoteada pelos europeus: os nativos e os camponeses não querem o conflito e não sabem o que é o conflito, até que o capitalismo o crie e o exporte para eles. É algo que se apresenta e disfarça de dialético, mas na realidade é sempre uma imposição violenta e unilateral: da violência constitutiva do sistema colonialista.
O conflito é heterônimo do capitalismo. Sempre foi assim, e mesmo quando as vítimas, em diferentes níveis de confronto, reagem à agressão com uma tentativa de violência proporcional, o conflito e o monopólio da violência continuam a ser propriedade e responsabilidade daqueles que os inventaram.
Não estou falando de conflitos em sentido geral, mas de conflitos fundiários ou, melhor, de territórios, que são vivenciados e interpretados pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades camponesas tradicionais em termos cosmológicos: para esses povos e comunidades, o ser humano é está numa relação de intimidade e reciprocidade com todos os seres vivos, com os Ancestrais e os Encantados, com a terra e a natureza do território em que reproduzem a vida. É esta vida, esta postura existencial, esta espiritualidade que é atacada pela violência do conflito exportada pelo capital.
Os corpos e os territórios estão profundamente interligados; portanto, quando Dona Elena expressa "o conflito entrou em mim", ela nos conta outra verdade incontestável: a violação do território é indissociável da violação dos corpos. Uma profecia eminentemente feminina, porque as mulheres indígenas e camponesas, mesmo no contexto dos patriarcados indígenas e afrodescendentes, tiveram experiências centenárias e dolorosas de corpos violados.
O que acontece no Baixão dos Rochas faz parte da violência cotidiana do sistema-mundo, que decretou que o Maranhão também é, com quase todo o seu território, uma "zona de sacrifício", um sacrifício indispensável, que, como em muitos outros territórios de Abya Ayala e do Planeta, deverá garantir o equilíbrio do mercado às regiões privilegiadas.
Em nome da sobrevivência do capitalismo e do bem-estar consumista de uma parte da humanidade, destroem-se biomas, ecossistemas, territorialidades originais e tradicionais, comunidades e corpos. O agronegócio, a agricultura industrial, a mineração, os projetos de infraestruturas e os investimentos na produção de energia hidroelétrica, solar e eólica – esta última contrabandeada como sustentável – estão a matar vidas.
Hoje, porém, este sacrificialismo radicaliza os processos de destruição e revela a sua impotência em reproduzir o sistema e, de fato, toda a humanidade está envolvida no desastre, incluindo os privilegiados, os negacionistas e os indiferentes.
Dado que já não é plausível, desde 1991, continuar a pensar no conflito em termos da tradicional “luta de classes” e do confronto ideológico e de guerra entre blocos opostos, o resultado da mudança de época é a violência anêmica do capital e a estado de exceção.
Em suma, parece mesmo necessário dar um novo significado ao conceito de conflito, partindo também da evidência da realidade. Para dar um exemplo, talvez demasiado radical, ousaríamos dizer que os campos de concentração nazistas se enquadram na lógica do conflito? Atualização: se a atual ontologia do capitalismo é o extermínio ou o genocídio, ainda poderíamos falar de conflito?
Juntamente com Dona Elena, é-nos oferecida a possibilidade de ressignificar os conflitos pela terra e deixar "o conflito entrar em nós". Junto com ela poderemos discernir a lógica e a logística do extermínio, que persistimos em definir como conflito, mesmo e sobretudo quando o tratamos no teatro do direito estabelecido, com atores que não querem e não podem dar inventam essa ficção e acabam naturalizando a violência contra os pobres e os pequenos.
Ficamos com uma indignação amorosa, que pode inspirar solidariedade e aliança com as lutas sagradas cada vez mais enfraquecidas das pessoas afetadas e ameaçadas. Saber que só por eles e com eles é possível defender e garantir o futuro da vida.
Esta esperança, porém, não se resume a boas intenções, pois requer atitudes e métodos adequados para desenhar tácticas e estratégias. A luta envolve sempre desafios de organização, articulação e mobilização. A luta dos verdadeiros lutadores, dos verdadeiros lutadores, é a luta contra o medo, como disse Margarida Alves: “Temos medo, mas não o usamos”.
É uma luta difícil, mas extremamente necessária e urgente, contra as tendências individualistas e autoritárias que marcam a nossa identidade. É ter cuidado para não assumir acriticamente os falsos valores do inimigo, mas aposta em processos radicais de ecumenismo, sinodalidade e colegialidade.
A luta também é feita de atenção permanente à realidade e por isso deve manter viva a capacidade crítica e de estudo. Sempre. E é também lutar contra os inimigos internos e os traidores que rompem os laços da fraternidade e prejudicam gravemente a luta.
Para enfrentar todos estes desafios somos necessariamente chamados a aceitar a companhia de Jesus de Nazaré, dos santos e santas, dos mártires, dos encantados e das encantadas , dos Orixás e do Ancestral, de Maria de Nazaré, acolhendo também aqueles que não abraçam uma fé explícita, mas lutam como verdadeiros irmãos e irmãs.
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Brasil: povos, territórios, violência do capital. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU