Para o bispo, a missão nos obriga a “colocar-se em movimento e sair da frente do espelho em direção às periferias que mais necessitam da luz do Evangelho”
Durante muitos séculos, a ideia de missão para Igreja Católica consistia em batizar, cristianizar, numa redução de que só assim os povos seriam civilizados e dignos do Reino de Deus. Hoje, embora muita gente parada no tempo ainda pense que é assim que se procede, a concepção evoluiu. “A missão é o ser da Igreja e não se reduz a atividades ou a uma dimensão entre outras. A teologia da missão foi evoluindo na compreensão do próprio conceito de Missão Ad Gentes”, observa o dom Maurício da Silva Jardim. Ele, que preside a comissão que trata de missão na Igreja no Brasil, explica que atualmente “pensa-se a missão não para os povos, mas com e a partir dos povos que já possuem as sementes do Evangelho em sua cultura”.
Dom Maurício fala também a partir do lugar de quem já experimentou ser transformado pelo serviço missionário. “A missão é libertadora, pois tem um horizonte maior que nos coloca em movimento de conversão. É um dar e receber. Não somente levamos, mas encontramos Cristo já presente nas culturas e nas pessoas”, sintetiza. Assim, nessa concepção, o missionário não é mais aquele que leva e impõe sua fé a outro povo. Pelo contrário, é a personificação do encontro. “O missionário é um hóspede que entra na casa do outro com atitude de escuta e despojamento, ciente que o Espírito de Deus nos precede na missão”, completa. E, ainda, acrescenta: “ser missionário hoje é ser testemunha do Evangelho, colocar-se em movimento, sair da frente do espelho em direção às periferias”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dom Maurício detalha as missões que a Igreja no Brasil mantém na África e outros projetos missionários também em território nacional. Ele analisa os movimentos das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que fizeram história como Igreja em saída e os desafios diante dos tempos que vivemos.
Segundo o bispo, as CEBs se apresentam como um caminho para vida em comunidade de fé. “A vivência em comunidade não é secundária na nossa caminhada de fé. Diante da complexidade do contexto em que vivemos, a comunidade precisa de atenção, pois é tentada a perder sua identidade de tenda da palavra, do pão e da caridade em vista da ação missionária. A nossa vivência de fé cristã é comunitária. Não podemos ceder à tentação da autorreferencialidade”, resume.
Dom Maurício Jardim durante benção matrimonial em comunidade da África | Maurício da Silva Jardim/acervo pessoal
Maurício da Silva Jardim é bispo da Diocese de Rondonópolis-Guiratinga, em Mato Grosso. Ele preside a Comissão Episcopal para Ação Missionária e Cooperação Intereclesial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Possui licenciatura em Filosofia pela faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição – FAFIMC, de Viamão, no Rio Grande do Sul. É bacharel em Teologia pelo Centro de Estudos Teológicos São João Vianney – CETJOV, em Viamão, pós-graduado em Psicopedagogia pela FAFIMC, e possui especialização lato sensu em Missiologia pelo Instituto São Tomás de Aquino – ISTA.
IHU – O que é ser um missionário na Igreja e no mundo de hoje?
Maurício da Silva Jardim – O vocábulo missão hoje é muito usado. Chega-se dizer que tudo é missão. É determinante ter claro o conceito de missão, pois quando tudo é missão, nada é missão. Na sua origem, a palavra “missão” significa “envio”, “partir”, “sair”. O termo latino missio quer dizer também “libertar”, “deixar andar”, “soltar”.
A missão parte da Trindade, ela é de Deus (Missio Dei); cabe a nós cooperar na única e mesma missão de Deus de Salvar, curar, libertar, promover e defender a vida humana da concepção até a morte natural. O ponto de partida da missão é a pessoa e o projeto de Jesus. É necessário sempre partir de Jesus Cristo e de seu Evangelho para testemunhar, servir, dialogar e anunciar o Reino de Deus. Ser missionário hoje é ser testemunha do Evangelho, colocar-se em movimento, sair da frente do espelho em direção às periferias que mais necessitam da luz do Evangelho.
IHU – Como distinguir entre cristianização e missionação? Por que ainda as ações de missões da Igreja são associadas com aquelas realizadas nos séculos entre os séculos XV e XVIII, em que o batismo e a cristianização eram o ponto alto?
Maurício da Silva Jardim – O Concílio Vaticano II, no Decreto Ad Gentes, recuperou a Teologia da missão, entendida como identidade, essência, natureza da Igreja, ou seja, missão paradigmática, entendida como eixo integrador que perpassa a vida de todo batizado, comunidade, pastoral, serviço ou movimento. A Igreja é missão, a vida é missão.
A missão é o ser da Igreja e não se reduz a atividades ou a uma dimensão entre outras. A teologia da missão foi evoluindo na compreensão do próprio conceito de Missão Ad Gentes, surgido no século XV quando a Europa enviou seus primeiros missionários para terras distantes, onde o cristianismo não estava implantado. Os "pagãos" eram considerados os primeiros destinatários da missão. Porém, ao lado desta compreensão o projeto colonizador crescia junto com os meios de evangelização.
Hoje, pensa-se a missão não para os povos, mas com e a partir dos povos que já possuem as sementes do Evangelho em sua cultura. O Espírito de Deus nos precede na missão. Na expressão de São Paulo VI: "quem evangeliza, se evangeliza".
IHU – Como, ao longo de sua história recente, a Igreja no Brasil vem desenvolvendo as ações missionárias?
Maurício da Silva Jardim – No Brasil, há uma pluralidade de iniciativas missionárias, com maior ou menor organização metodológica, que tem lançado raízes em muitos lugares. Mas, também há um anseio de se ter um trabalho missionário com fios condutores comuns a fim de crescermos na comunhão missionária. Deste modo, em agosto de 2017, iniciou-se um processo de reflexão pela equipe executiva do Conselho Missionário Nacional – COMINA de responder de forma articulada os grandes desafios da missão do Brasil, através da elaboração do Programa Missionário Nacional – PMN, que deseja colaborar para que a missão seja o eixo norteador e integrador de toda vida eclesial.
Como resultado da escuta feita em todos os regionais da CNBB, foram aprovadas quatro prioridades nacionais, a saber: Formação, Animação Missionária, Missão Ad Gentes e Compromisso profético social.
Para a concretização de cada prioridade, foram aprovados diversos projetos e ações. Destaco dois projetos missionários em andamento: o projeto Igreja irmãs, que completou 60 anos e os projetos ad gentes assumidos pelos regionais com ações missionárias na África.
IHU – Quais os países em que há atuação de missionários brasileiros? Como é esta atuação e por que foram escolhidos estes países?
Maurício da Silva Jardim – A CNBB, através da Comissão Episcopal para Ação Missionária e Cooperação Intereclesial, atua em três frentes:
1) Animação Missionária: mais especificadamente, é o trabalho de conscientização missionária da Igreja no Brasil, através da articulação dos Conselhos Missionários em seus diversos níveis, isto é, Nacional, Regionais, Diocesanos e Paroquiais (Comina / Comire / Comidi / Comipa).
2) Cooperação Intereclesial: acompanha os projetos missionários assumidos pela presidência da CNBB: Guiné-Bissau, Timor Leste e Moçambique. Incentiva os Regionais em Projetos ad gentes e as Igrejas locais no envio através do projeto Igrejas Irmãs.
3) Pastoral dos Brasileiros no Exterior – PBE: este projeto manda e acompanha padres enviados para atender a comunidade de brasileiros no exterior. São vários países da Europa e América do Norte onde atua a PBE.
IHU – Normalmente, quando falamos em missões humanitárias, lembramos das missões de Paz da ONU ou de grandes ONGs internacionais como a Médico Sem Fronteiras e a Cruz Vermelha. No que as missões humanitárias da Igreja Católica têm em comum e de distinto em relação a estas outras missões humanitárias?
Maurício da Silva Jardim – Uma das prioridades do Programa Missionário Nacional é o compromisso profético social que destaca: “As condições de vida de muitos abandonados, excluídos e ignorados em sua miséria e sua dor, contradizem o projeto do Pai e desafiam os cristãos a um maior compromisso a favor da cultura da vida. O Reino de vida que Cristo veio trazer é incompatível com situações desumanas. Se pretendemos fechar os olhos diante destas realidades, não somos defensores da vida do Reino e nos situamos no caminho da morte” (DAp,358).
Recordo o projeto assumido pela CNBB em parceria com a Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB em 2010, quando no Haiti houve o terremoto. As congregações religiosas se uniram e constituíram uma equipe intercongregacional para atender a demanda humanitária.
A nossa primeira motivação de atuação missionária é o Evangelho de Jesus Cristo. Nosso modo de presença exige proximidade com a realidade do povo por tempo prolongado e não apenas durante uma situação de emergência.
IHU – Como surge a relação da Igreja no Rio Grande do Sul com Moçambique? Qual é o papel dos missionários gaúchos hoje naquele país?
Maurício da Silva Jardim – A semente foi plantada em 1989 por ocasião da vinda de Dom Francisco Silota, bispo auxiliar da arquidiocese da Beira, Moçambique, ao Rio Grande do Sul. Ao participar de um encontro com os bispos, sensibilizou-os relatando as necessidades e os desafios vivenciados no país africano. Após ouvir os apelos, os bispos do Rio Grande do Sul se comprometeram em fazer um gesto fraterno em favor dos irmãos de Moçambique, dando da sua própria pobreza.
Quatro anos depois, em janeiro de 1993, o bispo encarregado do Setor das Missões da CNBB Sul 3, dom Laurindo Guizzardi e a irmã Amalia Vivian, realizaram uma viagem a fim de verificar in loco as necessidades e o tipo de trabalho solicitado, bem como os locais de possível atuação. Na ocasião, os visitantes estiveram em oito das 11 dioceses do país, confirmando o propósito de ajuda aos irmãos necessitados. Após um tempo de diálogo com congregações e dioceses, e da preparação dos missionários, foi enviada a primeira equipe missionária em julho de 1994, composta por um padre dos Servos da Caridade, duas religiosas das Irmãs Bernardinas e uma religiosa das Irmãs Missionárias de Santa Terezinha. Em vários locais da Arquidiocese de Nampula e de Diocese de Gilê (Zambézia) os missionários do Regional Sul 3 estiveram atuando.
Hoje, a equipe missionária é composta de padres e leigas e leigos que atuam em diversas áreas da formação, saúde, educação e atendimentos com os sacramentos às mais de 140 comunidades de duas paróquias.
IHU – O senhor foi missionário em Moçambique. O que essa experiência o legou como religioso e como cristão?
Maurício da Silva Jardim – O apelo para Missão Ad Gentes veio através de um retiro orientando por dom Jaime Kohl, bispo de Osório e, na ocasião, referencial do Conselho Missionário Regional da CNBB e responsável pelo projeto Igrejas Solidárias do Sul III. Na época, a Arquidiocese de Nampula, em Moçambique, estava necessitando de um padre para ação missionária em duas paróquias para um período de três anos. Em diálogo com dom Dadeus Grings, coloquei-me à disposição de ser enviado pelo Regional Sul III para este serviço missionário.
O arcebispo, então, com generosidade e em espírito de cooperação com a missão universal disse: “quem somos nós para ir contra o Espírito Santo”. Palavra que me encorajou para partir em agosto de 2008 para esta ação missionária em Moçambique na África.
Foram três anos e seis meses de intensa vida missionária, assumindo duas paróquias com 140 comunidades. Um tempo fecundo para redescobrir a vocação missionária recebida desde o batismo e na configuração a Cristo missionário do Pai e bom pastor, através da ordenação sacerdotal. Em Moçambique, apreendi uma nova língua com seus desafios culturais de inserção na caminhada pastoral daquela Igreja local que até hoje necessita de nossa presença missionária.
IHU – Como e no que uma missão é capaz de transformar os sujeitos, tanto missionários como quem recebe a missão? Para o senhor, qual a maior transformação depois de conhecer e atuar em Moçambique?
Maurício da Silva Jardim – A missão é libertadora, pois tem um horizonte maior que nos coloca em movimento de conversão. É um dar e receber. Não somente levamos, mas encontramos Cristo já presente nas culturas e nas pessoas. O missionário é um hóspede que entra na casa do outro com atitude de escuta e despojamento, ciente que o Espírito de Deus nos precede na missão.
Dom Maurício abençoando o poço que abastece a comunidade em que foi missionário na África | Foto: Maurício da Silva Jardim/acervo pessoal
Aprendi muito nesta experiência missionária, ela se tornou um projeto para toda vida. A Missão é de Deus e não se restringe ao âmbito da pastoral ordinária das Igrejas particulares, mas é universal, conforme o mandato de Jesus para ir a todos os povos, até os confins do mundo. Creio que esta vivência missionária enriqueceu minha identidade de presbítero diocesano e a Arquidiocese de Porto Alegre que me enviou também se fortaleceu em sua identidade missionária.
Para dom Maurício, a missão permite “sair de frente do espelho” e nos ver em outros hábitos e culturas | Foto: Maurício da Silva Jardim/acervo pessoal
IHU – Que missões a Igreja desenvolve em território brasileiro?
Maurício da Silva Jardim – No Brasil, temos há mais de 50 anos o Projeto Igrejas Irmãs que começou na diocese de Caxias do Sul/RS, em 1969, com o envio de missionários, de forma programada, para diversas regiões do Brasil. Mas foi em 1972 que a CNBB lançou o projeto, com o nome de Igrejas Irmãs: “Uma diocese do Sul ou do Centro se propõe a ajudar de modo especial e permanente, uma circunscrição eclesiástica do Norte, mediante orações coletivas, ajuda de pessoal ou custeio de determinadas atividades pastorais” (Cir. 1972/CNBB).
O projeto, ao longo dos seus mais de 50 anos, oscilou entre avanços e recuos, mas sem perder sua essência de cooperação missionária. Ao longo dos anos possibilitou a muitos agentes de pastoral, cristãos leigos e leigas, consagrados, ministros ordenados, a experiência do apostolado em realidades tão distintas e encantadoras, ricas em cultura e história e desafiadoras, revelando e apresentando o rosto de Cristo nos irmãos e irmãs. Hoje, são mais de 60 Igrejas locais que possuem o Projeto Igrejas Irmãs.
O objetivo geral do Projeto Igrejas Irmãs é sensibilizar e conscientizar as Igrejas particulares do Brasil para a cooperação missionária, na partilha do dom da fé, das experiências pastorais, dos recursos humanos e financeiros como gestos concretos de caridade cristã.
IHU – Recentemente, sua diocese, Rondonópolis-Guiratinga, recebeu um grande encontro nacional das Comunidades Eclesiais de Base. Eu gostaria que nos relatasse este encontro e respondesse: em que medida a atuação das CEBs pode ser compreendida como ação missionária?
Maurício da Silva Jardim – O tema do 15º Intereclesial das CEBs foi Igreja em saída em busca de vida plena para todos e todas, ou seja, o remédio para superar as tentações da comunidade é a missionariedade, sermos Igreja em saída às periferias que mais necessitam da luz do Evangelho para tocar a carne sofredora de Cristo nos pobres, doentes e descartados de hoje.
Socorrer, cuidar, curar e testemunhar o Evangelho de Jesus Cristo. Creio que a imagem de Igreja mais adequada neste processo de renovar e cuidar da comunidade é aquela assumida pelo Concílio Vaticano II, a Igreja é Povo de Deus e o 15º intereclesial nos interpela a não desistir da comunidade, pois ela é sinal do Reino de Deus no meio do mundo.
IHU – Há quem defenda que o tempo da CEBs já passou, que o mundo é muito mais urbano e não rural, espaço em que houve grande atuação da CEBs. O senhor acredita que a metodologia das CEBs continua atual? Que atualizações são necessárias? Ou o movimento ainda é tão potente quanto em décadas passadas?
Maurício da Silva Jardim – Acredito que as CEBs, como outras experiências eclesiais e a Igreja como um todo, necessitam sempre estar em processo de reforma, renovação e avaliação para manter vivo o carisma original e responder aos desafios deste tempo. As CEBs, com sua metodologia própria, é uma experiência válida e estão vivas, porque vivem o seguimento a Jesus e o Evangelho de forma comunitária e com protagonismo dos cristãos leigos e leigas inseridos na realidade local, tendo a Palavra de Deus no centro de suas vidas e atuação missionária.
A vivência em comunidade não é secundária na nossa caminhada de fé. Diante da complexidade do contexto em que vivemos, a comunidade precisa de atenção, pois é tentada a perder sua identidade de tenda da palavra, do pão e da caridade em vista da ação missionária. A nossa vivência de fé cristã é comunitária. Não podemos ceder à tentação da autorreferencialidade, de ficar olhando mais para o espelho do que para janela.
É evidente que o modelo de CEBs da década de 70 mudou. Hoje, há um novo contexto eclesial, religioso e social que afeta a vida e a caminhada das comunidades eclesiais de base, por isso elas necessitam de constante renovação sem perder a essência da intuição original.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Maurício da Silva Jardim – Estive presente no Sínodo Especial para Amazônia em outubro de 2019. Recordo que o Papa Francisco, em uma de suas intervenções, propôs: “Diante dos desafios e conflitos, pensar respostas totalizantes para não ficarmos em remendos. Às vezes somos tentados a disciplinar os conflitos. Para cada conflito uma solução parcial. Há conflitos que não se resolvem com disciplina, mas com transbordamento, com excesso. Como Deus resolveu o conflito do pecado? Com o transbordamento do amor total na cruz”.
Na Igreja somos chamados a respostas totalizantes e transbordantes, não parciais.
Assista ao debate “Um olhar sobre a África a partir de Moçambique. Testemunhos, perspectivas e limites”, promovido pelo IHU.