20 Dezembro 2018
A recente morte de John Allen Chau, missionário americano morto ao tentar contatar uma tribo isolada nas Ilhas Andaman, no Oceano Índico, reviveu um debate dentro de muitas denominações cristãs sobre a natureza e o propósito da evangelização. Chau visitava a ilha ilegalmente, o que levou cientistas a pensarem que ele poderia ter colocado a população indígena em risco diante de doenças para as quais eles poderiam não ter anticorpos naturais. Sua morte levantou questões a respeito da forma das atividades missionárias cristãs inseridas num contexto contemporâneo.
John Allen Chau e Francisco Xavier (Foto: Reprodução revista America)
A revista America entrevistou o padre jesuíta e ex-missionário Anthony Lusvardi, que está estudando teologia sacramental no Pontifício Ateneu de Santo Anselmo, em Roma, devido aos seus pensamentos sobre o assunto. America falou com ele por e-mail.
A entrevista é de James T. Keane, publicada por America, 10-12-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Qual é o seu background no trabalho de evangelização, tanto no ministério quanto na academia? Como você se interessou por essa área?
Eu testemunhei o generoso trabalho dos missionários antes de me juntar aos jesuítas quando eu ainda era voluntário do Corpo da Paz, no Cazaquistão. Minha experiência mais importante com o trabalho de evangelização foi na Reserva Rosebud, em Dakota do Sul, um lugar para onde ainda volto todos os verões. As missões jesuíticas no território do povo Lakota (povo indígena americano) remontam os anos 1800, e têm uma história bem complicada. A experiência me deixou mais convencido de que a necessidade de evangelização é ao mesmo tempo respeitosa e ousada. Respeitosa, porque os Lakota têm algo único para oferecer à Igreja. Ousada, porque as pessoas precisam de Jesus Cristo. Numa situação como a reserva, você vê que os falsos deuses, como o álcool e a metanfetamina, não têm medo de proselitismo.
Meu trabalho paroquial em Rosebud me fez ver a evangelização através das lentes dos sacramentos. Durante muito tempo, a teologia acadêmica - tanto a escolástica quanto a teologia contemporânea - tendeu a subestimar o poder transformador dos sacramentos. A reintrodução de R.C.I.A. [sigla em inglês para Rito de Iniciação Cristã de Adultos] depois do Vaticano II nos dá uma espécie de guia sacramental para a evangelização, e eu gostaria de ver isso mais elaborado na teologia e na vida da Igreja. Meu atual projeto de pesquisa sobre o batismo de desejo está ligado à questão de por que os sacramentos são necessários para a salvação. Isso, por sua vez, entra na questão de qual é o nosso motivo para a evangelização. Estamos num momento da história da Igreja onde essas respostas nem sempre estão claras.
John Allen Chau contratou pescadores locais para o levarem ilegalmente à Ilha Sentinela Norte, e presumivelmente foi morto por membros de uma comunidade indígena local. Muitos meios de comunicação e analistas nos Estados Unidos condenaram as ações de Chau como fisicamente perigosas para a população indígena das Ilhas Andaman e uma agressão neocolonial contra sua cultura. Avaliaram também como uma abordagem antiquada para a evangelização. Você acha que essa é uma visão justa?
A interpretação vinda do governo indiano, que tem uma história de investidas contra as minorias religiosas, deve ser lida com certa cautela. Neocolonialismo? Não há indícios de que Chau usou força coercitiva para impor suas visões religiosas ou culturais. A tribo, por outro lado, claramente usou forças contra ele. Falar de “ultrapassada" para sua abordagem também me parece inútil aqui. Católicos, evangélicos e protestantes tradicionais têm diferenças em relação ao que acreditamos sobre a salvação, o que leva a implicações para nossa abordagem ao trabalho missionário.
Acabamos de celebrar a festa de São Francisco Xavier, que foi até os confins da terra levar o Evangelho. De certa forma, suas ações, e as de muitos outros homens e mulheres que a Igreja Católica e outros cristãos mantêm como santos, acompanham Chau de perto. É esse tipo de testemunho missionário que a Igreja utiliza a seu favor?
Acho que ainda podemos aprender com Xavier, mesmo que eu não apoie todos os aspectos de sua abordagem. Ele foi criativo, flexível e amoroso com aqueles que encontrou. Não podia imaginar nada melhor do que conhecer a Cristo e queria compartilhar isso com todos pois acredita que Jesus ama a todos. Espero que nunca percamos isso. Ele batizou milhares, mas precisamos ter mais atenção à genuína formação cristã para evitar conversões meramente superficiais.
Certa vez lhe foi perguntado por catecúmenos japoneses, de forma perturbadora eu diria, se os antepassados falecidos deles estavam no inferno e se não havia nada a ser feito para os ajudar. Ele se sentiu mal, mas disse: "Sim, eles estão, mas é tarde demais para fazer alguma coisa a respeito". A maioria dos teólogos de hoje depositam mais esperança nos pré-cristãos. A questão mais complicada é de que talvez essa esperança possa diminuir nossa motivação para anunciar as Boas Novas onde elas ainda não foram ouvidas. Afinal, a urgência que Xavier sentia parece consistente diante do chamado do Novo Testamento.
Podemos dar uma resposta melhor hoje?
A resposta de Xavier foi simplista. O Concílio de Trento, que aconteceu na mesma época em que Xavier estava no Japão, deu um pouco mais de liberdade para discussão, como debater se o batismo é realmente necessário para a salvação. Ao mesmo tempo, qualificou isso de duas maneiras importantes. Determinou que o batismo ou o desejo por ele se tornaria necessário após a promulgação dessa nova lei. Na realidade, hoje esta questão é ainda muito debatida. Será que os ancestrais dos catecúmenos japoneses desejavam o Evangelho de algum modo implícito, análogo ao modo como os profetas do Antigo Testamento desejavam a vinda do Messias? Poderia alguma coisa desse desejo ter inclinado seus descendentes a abraçar o Evangelho quando Xavier chegou para o anunciar? Alguns teólogos adotam uma abordagem diferente, embora isso me pareça a linha de resposta mais promissora.
Você acredita que a doutrina católica sobre a evangelização mudou?
No nível mais fundamental, não. A evangelização é a missão da Igreja. Dar uma nova perspectiva aos esforços missionários da Igreja era o objetivo central do Vaticano II. Assim, o Papa eleito durante o Concílio assumiu o nome de “Paulo”. Hoje, por outro lado, o magistério enfatiza a importância de realizar a evangelização de uma forma que respeite a liberdade dos indivíduos em poder aceitar ou rejeitar o Evangelho mais do que em outros períodos de nossa história. Também somos muito mais sensíveis a questões de inculturação se comparado a um passado recente. Também seria justo dizer que hoje o magistério tolera um debate muito mais amplo sobre questões relacionadas à evangelização do que no início do século XIX.
Os esforços contemporâneos no diálogo inter-religioso, a ênfase na liberdade religiosa e o medo de ser acusado de proselitismo reduzem o senso de urgência que parece ter motivado alguns dos grandes evangelizadores da história?
Talvez sim, embora eu pense que há uma maneira de entender e praticar o diálogo inter-religioso de modo que não diminua a missão principal da evangelização. A meu ver, se a evangelização não respeita a liberdade humana, então não é realmente o Evangelho que está sendo proclamado.
Em um nível mais profundo, se percebemos e reconhecemos que há algo de bom em outras religiões ou culturas não-cristãs, nos preocupamos de que nossas coisas boas serão perdidas. O cristianismo significa conversão, mudança, e essas coisas acontecem quer gostemos ou não. Tratar outras religiões como peças de museu é problemático. Para mim, é uma questão de esperança. Se proclamarmos Cristo em palavra e sacramento, não podemos esperar que ele seja capaz de nos guiar para uma mudança?
De que maneira as ações de John Allen Chau são defensáveis, ou não, de uma perspectiva missionária e ética?
Qualquer encontro intercultural - missionário, econômico, político, educacional, turístico e até mesmo dialógico - pode ter consequências positivas e negativas. Você menciona preocupações sobre a exposição a doenças, por exemplo. Será que Chau pensou o suficiente sobre quais seriam essas consequências negativas e como as minimizar? Eu não sei. Essas são perguntas que os missionários que trabalham em diferentes contextos culturais devem fazer a si mesmos, assim como devem ajudar trabalhadores, empresários e educadores. O bem que vem de conhecer Jesus Cristo é infinito, então tais preocupações não devem parar os esforços missionários. Em um longo prazo, a responsabilidade e a premeditação devem tornar o trabalho missionário mais eficaz.
A história da evangelização cristã está muitas vezes ligada à história da colonização ocidental. Você acha que é possível separar o trabalho missionário do colonialismo e, em caso afirmativo, como os missionários modernos podem tentar fazer isso?
A evangelização cristã começou com os apóstolos, não com o colonialismo. Agora, mais do que nunca, o Novo Testamento é o guia de que precisamos. No que diz respeito ao lugar do cristianismo na sociedade, nossa situação está se aproximando mais dos primeiros séculos do cristianismo do que das estruturas sociopolíticas da cristandade. O entrelaçamento da evangelização e do colonialismo era, pelo menos em grande parte, dependente dessas estruturas. Suspeito que hoje em dia as verdadeiras forças colonizadoras tendem a ser mais seculares em seus valores.
Você mencionou anteriormente o “batismo de desejo”. Você pode explicar melhor o que significa essa noção teológica?
O batismo é necessário para a salvação. Mas e quanto a alguém que deseja o batismo - digamos, um catecúmeno -, mas morre inesperadamente antes de receber o sacramento? O batismo de desejo é a doutrina que foi articulada pela primeira vez por Santo Ambrósio de Milão, numa situação que a pessoa ainda pode ser salva. No final da Idade Média, os teólogos falavam do batismo na água, do batismo de sangue (quando os mártires morrem antes do batismo) e do batismo de desejo. A doutrina levanta todos os tipos de questões. Quão firme o desejo pelo batismo tem que ser? De que forma? Alguém que nunca ouviu falar do Evangelho possui um desejo implícito de batismo? Essa última pergunta, como aludi anteriormente, mostra a relevância do conceito para a evangelização.
Você acredita que a noção do Vaticano II de missionários indo “ao encontro das nações” ainda é viável? Deveríamos aceitar as sugestões de alguns missiólogos contemporâneos e ver a evangelização “entre nações e dentro das nações”?
Não estamos revisando uma declaração de missão corporativa aqui. Jesus quer entrar num relacionamento de comunhão com todos e, se somos seus discípulos, temos o dever de torná-lo conhecido de todos. Teólogos não podem mudar isso. Sendo assim, o papel da geografia e nacionalidade na evangelização hoje está menos difundido.
Um aspecto do decreto conciliar sobre a atividade missionária, que foi chamado de “Ad Gentes”, algo que me parece datado, é a suposição de que os missionários geralmente virão de partes do mundo mais desenvolvidas economicamente e irão para as partes mais pobres. Isso certamente refletiu no mundo em 1965, e ocasionou em mudanças.
Como pensamos na evangelização quando as partes economicamente mais pobres do mundo são mais cristãs do que a América do Norte ou a Europa? Talvez, de alguma forma, isso purifique nosso senso de missão. Nesse caso talvez a realidade seja dolorosa como a secularização do Ocidente e nos mande de volta ao Novo Testamento porque realmente não temos outra escolha.
Como os missionários de hoje podem atrair a atenção de pessoas que um dia se sentiram atraídas pela ideia de “religião ou fé”, mas que por várias razões optaram por não aceitar a fé completamente?
Não há substituto para tal convite. No final, o cristianismo é o contato que temos entre pessoas. Convidá-las para os eventos da Igreja - até mesmo para o bingo - faz parte disso. Eu considero evangelização quando você oferece carona para um vizinho idoso que não pode dirigir, mesmo que essa pessoa seja mais devota do que você! Ainda assim, estará fortalecendo a Igreja.
O conceito de testemunho também é fundamental, algo que os católicos precisam reaprender. Testemunho significa dar testemunho. Significa ser capaz de articular “o que Jesus fez na minha vida”. Isso é importante porque não é de forma alguma coercitivo. É diferente de dizer: "Isso é o que eu acho que você deve fazer". De certo modo, não requer nenhum conhecimento específico.
A apologética e o ensino são importantes, mas nem todos têm o dom para esses ministérios. Todos os cristãos, no entanto, são chamados a testemunhar, mesmo que seja tão simples como dizer: "Eu não sei por que, mas eu sempre me sinto melhor depois de me confessar". Isso nos tira de nossa zona de conforto e é a coragem que a evangelização requer hoje.
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Lições de John Allen Chau (e de Francisco Xavier) para as missões católicas hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU