11 Agosto 2023
"O êxodo destaca em primeiro lugar esse contraste irreconciliável destinado a repetir-se no tempo: a diferença entre o povo escolhido de Deus e os outros. E é, ao mesmo tempo, a construção voluntária de uma 'memória' que garante a sobrevivência".
O artigo é de Giorgio Montefoschi, escritor e crítico literário italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 08-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo Jan Assmann, professor emérito de egiptologia em Heidelberg, professor honorário de Teoria das Religiões da Universidade de Constança, o livro bíblico do Êxodo, ao qual dedica o importante livro intitulado Esodo (Adelphi), "constitui uma virada comparável apenas aos grandes saltos evolutivos que conduzem ao homem contemporâneo como a escrita e a formação dos estados: a virada do politeísmo ao monoteísmo". Os núcleos míticos que o compõem determinam sua força de atração ainda intangível na época em que vivemos; sua influência é imensa; seu eco incomensurável. As perguntas fundamentais que apresenta, aquelas que desde sempre, independentemente da denominação religiosa, questionaram os homens, e, inclusive aqueles que se declaram ateus, continuam a questionar, são duas: quem é Deus, e quem somos “nós”.
De fato, não é por acaso que na página 65 Assmann cita o filósofo Henri Bergson: "É do presente que vem o chamado ao qual a memória responde": porque a história bíblica articulada em três partes – a história da libertação de Israel da opressão egípcia, aquela da aliança que Deus propõe ao seu povo, e por fim a Terra Prometida e a criação do Templo – é também o símbolo, mais vivo do que nunca, de cada ação com a qual o homem joga tudo para trás, acorda, abandona o passado “por algo de novo, totalmente diferente". O Egito também representa o exílio de nós mesmos, o mundo terrestre em que os homens vivem como "estrangeiros" e sofrem uma opressão que os esmaga. A saída do Egito é também uma saída interior. Como a de Abraão, que respondeu ao chamado de Deus dizendo "Aqui estou!" e, não sabendo para onde ir, pôs-se em caminho.
Sabemos pela Bíblia que a tribo de Jacó, devido a uma carestia, mudou-se para o Egito, onde um dos filhos de Jacó, José, já havia ascendido às mais altas honras na corte do Faraó Akhenaton que por volta da metade do século XIV a.C. havia abolido a religião tradicional, substituindo-a pelo novo culto de Aton, o deus do sol e da luz, adorado como única divindade: o livro de Êxodo se insere nesse ponto. Nos 430 anos de sua permanência, a tribo, multiplicando-se prodigiosamente, tornou-se um grande povo superior em número àquele indígena, a ponto de este, tomado pelo terror, se entregou a formas de violência e coerção (centradas sobretudo no duríssimo trabalho de cavar pedras reservado aos prisioneiros de guerra e aos escravos), que acabaram se tornando insustentáveis. Dessa situação dramática Deus liberta os judeus fazendo seu servo Moisés intervir. Os israelitas eram diferentes dos autóctones; estrangeiros assim como aqueles que haviam seguido Abraão, estabelecendo-se na Mesopotâmia. O êxodo destaca em primeiro lugar esse contraste irreconciliável destinado a repetir-se no tempo: a diferença entre o povo escolhido de Deus e os outros. E é, ao mesmo tempo, a construção voluntária de uma “memória” que garante a sobrevivência, como em Genealogia da moral, citada por Assmann, explica Nietzsche: “Apenas o que não cessa de causar dor fica na memória. Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória".
"Mesmo que a sua existência histórica esteja imersa numa escuridão impenetrável, e ele deva a sua luz apenas à memória, Moisés", escreve Assmann, "é um dos maiores loci da cultura ocidental da memória, é um dos seus faróis mais poderosos": ilumina a fidelidade, a salvação e, em primeiro lugar, a dor. Com a lenda de seu nascimento – encontrado pela filha do faraó Ramsés II (1279-1225 a.C.) num cesto à beira do Nilo – o narrador bíblico prenuncia a grande salvação da água que no livro culmina no XIV capítulo: o recém-nascido tirado da água torna-se, aqui, aquele que ativamente tira da água Israel e o homem.
Em sua biografia de Moisés, Fílon de Alexandria relata que, quando criança, Moisés desdenhava os brinquedos e só se interessava por sua formação espiritual: conhecia aritmética e geometria, ritmo, harmonia e métrica, bem como a filosofia egípcia. Quando Ramsés morre, Deus vê que chegou a hora de acabar com o sofrimento de Israel e comunica a seu servo que ele terá que guiá-lo. Após quatrocentos anos de silêncio, abandona a ira e se revela em toda a sua magnificência: promete a salvação e a terra de Canaã, onde escorrem leite e mel. Moisés lhe apresenta uma pergunta: quando eu tiver dito aos filhos de Israel que é o Deus de nossos pais que me envia a vocês e eles me perguntarem qual é o seu nome, o que responderei? Deus diz a Moisés: Eu sou o que Sou. Hermes Trimegisto, o sábio egípcio autor do Corpus Hermeticum, um compêndio de textos platonizantes em língua grega, comenta: “Sendo Deus a universalidade das coisas, nenhum nome lhe cabe."
Com a sarça ardente, na qual Moisés pôde entrar depois de tirar as sandálias, para intervir na história, Deus abandonou o sigilo ultramundano e se revelou através de um raro fenômeno natural. O caminho da salvação terá que ser implementado em três fases: ou seja, as dez pragas que atingirão o Egito; a instituição da festa de Pessach, a Páscoa judaica que vê os judeus fechados em suas casas marcadas pelo sangue do cordeiro, para evitar serem envolvidos na matança de todos os primogênitos; por fim, a travessia do Mar dos Juncos, sem se molhar, enquanto o exército egípcio que os persegue é engolido pelas ondas que se fecham sobre ele. O Mar dos Juncos, segundo alguns seria o Mar Vermelho; segundo outros seria o lago Sirbônico, um baixo espelho de água perto das margens do Mediterrâneo. Quanto à travessia, outro episódio à beira do sobrenatural, o relato bíblico sugere duas versões. A primeira é que foi um fenômeno de maré baixa seguido por maré alta; a segunda fala de um vento forte: “Então Moisés estendeu a sua mão sobre o mar, e o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite; e o mar tornou-se em seco" (Êxodo 14,21).
Os fatos, que continuam com o deserto, o maná, a água que jorrou da rocha, a chegada ao Monte Sinai, o Cordeiro de Ouro e a aliança com Deus, devemos situá-los por volta de 1300 anos antes de Cristã. Este é o passado para o qual o presente nunca deixa de se voltar. Como acontece numa cantata de Bach para o segundo domingo do Advento, onde podemos ler: "Quando chegará o dia em que deixaremos o Egito deste mundo?"
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Êxodo, o mito se torna fé. Artigo de Giorgio Montefoschi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU