14 Julho 2023
Gustavo Castro estava na casa de Berta Cáceres, em Honduras, na noite em que essa defensora do povo lenca foi assassinada. Quase milagrosamente, naquela noite, Castro sobreviveu às balas dos assassinos e, desde então, somou a busca de justiça pelo assassinato de Cáceres a todas as suas causas.
Outros Mundos é a organização social, com sede em Chiapas, à qual este defensor do território tem dedicado mais tempo e energia em seu ativismo. De fato, este mexicano criou outros mundos ao seu redor e grandes alianças entre processos de resistência na Mesoamérica.
Entrevistado do Cauca colombiano, responde a todas as perguntas, com calma, de San Cristóbal de las Casas. São duas regiões atingidas pela guerra global contra os povos, onde abundam comunidades originárias construtoras de autonomia, bem como assassinatos sistemáticos das lideranças que mais incomodam a estrutura do narcotráfico e o modelo neoliberal. Conversamos a respeito de tudo isso, longa e duramente.
A entrevista é de Berta Camprubí, publicada por El Salto, 13-07-2023. A tradução é do Cepat.
Recebemos várias informações sobre o aumento da violência na região onde você mora. Em suas próprias palavras, como define a situação atual em Chiapas?
Vivemos um processo muito acelerado de indicadores de violência que já ocorria há anos em outros estados do país, mas que não havia se dado aqui e, portanto, chama muito a atenção. Contudo, na realidade, já se observa com muito mais força em Zacatecas e em Guanajuato. O certo é que avança em um ritmo muito acelerado, em um ritmo muito difícil de conter, sendo complicado elucidar qual é a alternativa a toda esta violência.
O que favorecia que todo o peso do narcotráfico ainda não tivesse chegado a Chiapas?
Essa pergunta é muito interessante, porque parece que vivemos um processo que foi se dando do norte ao sul do México. Não há uma única linha que explique como chegamos a isso, são vários elementos que foram coincidindo. O primeiro elemento: nas últimas décadas, houve políticos ligados ao narcotráfico, mas não com a dimensão atual.
É a partir do Tratado de Livre Comércio, em 1994, que essas dinâmicas foram se acentuando, pois houve uma ruptura no campo em todo o país. Se 52% do México era território coletivo e de uso comum, com o TLC entraram muitos produtos agropecuários altamente subsidiados dos Estados Unidos, o Governo eliminou muitos subsídios e apoios ao campo e isso gerou uma impressionante migração do campo para os Estados Unidos, um abandono que se acentua até hoje.
Outro elemento é que essa pobreza do campo levou a uma migração que também consome drogas no norte do país. Obviamente, os cartéis se perguntavam: “Por que transportamos drogas da Colômbia para os Estados Unidos, se também podemos consumi-las, aqui, no México?”. Então, além de ser rota das drogas, o México se tornou um território de consumo, os cartéis se instalaram no consumo e, inclusive, na produção de drogas.
Isso começou no norte do país, avançou para o centro e está chegando aqui, em Chiapas, onde 65% do território ainda é coletivo e de uso comum, o que de alguma forma permitiu a vigilância e o cuidado do território pelas assembleias comunais, indígenas, populares.
Que papel o zapatismo desempenhou nesse cuidado do território?
O levante zapatista gerou muitos espaços de controle para que não houvesse a produção de drogas. Durante o conflito, entre 1994 e 2005, não houve tanto tráfico de drogas porque havia muito controle em todo o Estado.
Contudo, pouco a pouco, todos esses indicadores de pobreza, migração, abandono do campo, crise econômica, fizeram Chiapas chegar a essa violência indiscriminada em que os cartéis lutam e disputam territórios para a passagem de drogas, para o plantio, com a disputa do consumo.
Uma violência que cresceu após a pandemia, porque os espaços políticos, culturais e sociais foram fisicamente abandonados e o narcotráfico fortaleceu suas raízes nesses vazios. E, então, passamos a ver o deslocamento de comunidades que, hoje, estão vazias, decapitadas, com fossas clandestinas, muitos desaparecidos.
Estamos falando do narcotráfico, mas não nos referimos apenas ao negócio das drogas...
Essa é uma característica fundamental: o negócio do crime organizado ultrapassou as drogas e viu nesse poder territorial a possibilidade de gerar mais renda com outros negócios ilícitos.
Então, vemos extorsões, sequestros, controle de bares, controle do transporte de café, da produção de outras mercadorias, roubo de ranchos, de casas, controle do comércio de carros roubados e o que, certamente, é a joia da coroa: o negócio do tráfico de pessoas indocumentados, a partir de 2008, quando se deu a onda de migrantes.
Chiapas é o canal pelo qual todos devem passar em seu caminho para os Estados Unidos. E cobram de 15.000 a 20.000 dólares pelo trajeto daqui até a fronteira. É mais rentável do que as drogas.
Então, começaram a controlar mais territórios em muitos sentidos: o território geográfico, com o controle das estradas, das terras, das veredas; o território social, sendo eles que dizem que horas é o toque de recolher e ninguém mais sai; o território dos meios de comunicação; o território religioso, em que controlam a voz de párocos, bispos, financiam festas religiosas; o território político, em que o traficante não só pressiona a presidência municipal, mas também tem acesso ao governo municipal, ou seja, ganha a presidência, o narcotraficante é o presidente municipal.
Esse controle também entrou em regiões zapatistas, inclusive, nos caracóis?
Sim, é claro. Um dos indicadores mais fortes é que onde havia grandes comunidades ou espaços controlados pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), agora, existem grandes cartéis e grupos armados.
É preciso levar em conta que os dois principais cartéis do país, Jalisco Nueva Generación e Sinaloa, estão disputando os territórios, aqui, em Chiapas. Em outros estados já enfrentaram o Exército com tanques, com drones, com bombas, estão muito bem armados. O EZLN não pode fazer muito em termos militares contra eles.
No momento, o EZLN não pensa em enfrentar militarmente esses grupos, mas criaram grupos de autodefesa comunitária. Como funciona essa lógica?
Até agora, o EZLN não considerou essa possibilidade. Na realidade, faz muito tempo que renunciou ao uso das armas dentro de sua agenda política e, então, isso levou algumas comunidades a abandonarem o EZLN. É o que se sabe, mas não se costuma dizer.
Contudo, enfrentar militarmente o crime organizado seria um suicídio. Já era contra o Exército, mas também contra o narcotráfico que é impressionantemente violento na forma como gera terror, medo e controle da população. Por isso, há tanta migração e tantas comunidades que, inclusive, estão vazias perto da fronteira.
Agora, a grande pergunta que nós, organizações, fazemos é: O que faremos? Como vamos enfrentá-lo? E caímos na contradição quando dizemos que não queremos a militarização do país, quando todas as organizações que se deparam com essa violência, a primeira coisa que dizem em seus comunicados é: “que venha a Guarda Nacional e o Exército”. E a verdade é que ninguém além deles pode enfrentá-lo.
A sociedade civil tem quatro opções: resistir e suportar em meio à violência; deslocar-se e abandonar sua casa, sua terra; somar-se a eles por dinheiro ou por medo; e enfrentá-los. Para enfrentá-los, é preciso estar armado e, então, surgem alguns grupos de autodefesa comunitária que conseguem expulsá-los de seus territórios, mas não conseguem suportar esse ritmo por muito tempo e, ao final, são cooptados pelos próprios narcotraficantes ou pelo Exército.
Sendo assim, também não se enxerga uma via de saída por aí. Eu sinto que há uma crise, um desespero, não sabemos quem, nem como o crime organizado será detido.
Que forma a presença do Estado está tomando em Chiapas?
É preciso considerar que em Chiapas a presença do Governo nas áreas indígenas foi muito deficiente ou nula. Contudo, chega um momento em que a influência do crime organizado nas estruturas do Governo, nas dependências, é gigantesca.
Primeiro, era o Governo, depois, as empresas transnacionais e, agora, é o narcotráfico que já está controlando o território político, econômico. Você luta contra a mineradora canadense Blackfire ou luta contra a monocultura da cana-de-açúcar e se depara com o narcotráfico. Já possuem interesses nos megaprojetos.
Sabemos que em todo o país controlam portos, aeroportos. O que o governo tenta fazer é retirá-los desse controle, militarizando portos, aeroportos, pensando que o Exército é obediente, que não é corrupto.
Qual é a estratégia de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) contra o crime organizado?
Eu não justifico a estratégia do Governo Federal, nem acredito que esteja funcionando, mas é preciso compreender as ações de AMLO como um conjunto de políticas que buscam resolver esse problema sem enfrentá-lo diretamente, como fez Calderón, provocando um cemitério no México com mais de 100.000 mortos e desaparecidos, mas com a estratégia de retirar a água do peixe.
Um dos problemas é que os jovens não têm emprego nas áreas camponesas e indígenas, geram demanda por drogas, são recrutados pelos cartéis à força ou porque gostam de dinheiro fácil, com os adolescentes recebendo fuzis de assalto. Então, o governo cria um programa que se chama Jovens construindo o futuro, subsidiando empresas e organizações para que paguem os jovens que queiram se habilitar. Claro, em torno disso também há muita corrupção, mas a intenção parece boa.
O presidente também diz: “vou tirar do narcotráfico os camponeses que querem plantar maconha e papoula, subsidiando o milho”, o que também não resolve tudo, mas a intenção é compreensível. Depois, a unidade de inteligência financeira está fechando milhares de contas bancárias de organizações criminosas.
Por outro lado, existe a lógica de colocar quartéis militares em todos os cantos do país para atacar de frente, mas isso leva muito tempo, é pouco realista. Sendo sincero, eu também não saberia como agir.
Em nível estrutural, a violência vivida por países como México ou Colômbia tem tudo a ver com o negócio global do tráfico de drogas. Que políticas seriam necessárias para acabar com esse flagelo? Como vê a proposta de Gustavo Petro, na Colômbia, de caminhar para uma regularização da cocaína?
Essa foi uma discussão de muitos anos atrás que talvez pudesse ter sido a solução, mas, agora, eu considero que não serve mais, porque o tráfico já ultrapassou esse cenário, o tráfico não existe mais apenas em função das drogas, seria necessário regularizar todas as outras atividades que mencionamos antes, nas quais o tráfico tem muito mais presença.
O panorama é um pouco desanimador...
Sim, mas temos que buscar a esperança para seguir em frente. É preciso segurar o touro pelos chifres e buscar alternativas. Muitas das reflexões das organizações e movimentos sociais giram em torno de como gerar autonomia territorial, unidade, protocolos de segurança familiar, comunitária, alternativas locais que permitam que povos e pessoas se enraízem nos territórios para evitar que sejam expulsos pelo narcotráfico.
Por isso, decidimos convocar um reencontro de movimentos mesoamericanos de resistência, em agosto. Temos que nos encontrar depois de muito tempo, faltam agendas comuns.
Para terminar, abordemos o processo judicial pelo assassinato da líder lenca Berta Cáceres. Até o momento, nove pessoas foram julgadas por esse crime, incluindo executivos da empresa DESA, oito foram consideradas culpadas... O que está faltando?
Os sete primeiros condenados receberam uma pena de 30 anos pelo assassinato de Berta e de 22 pela tentativa de assassinato, em que fui vítima. Esses são os autores materiais, e um deles é o gerente da empresa. No entanto, depois, continuamos insistindo e conseguimos a prisão de David Castillo, presidente da mesa diretora da empresa, mas é um meio-termo, não pertence à poderosa família Atala.
Exigimos que se chegue aos autores intelectuais porque essa decisão foi tomada com toda a mesa diretora, que são os donos da empresa e uma das quatro famílias mais ricas de Honduras. Na medida em que a pressão continuar, parece-me possível chegar a isso, embora implique um grande esforço, pois significa chegar ao centro do poder político e econômico hondurenho.
Os irmãos Atala foram chamados para depor e não quiseram ir. Seria preciso pressionar até o poder judiciário para chegar a uma família tão rica quanto a Atala, mas essa é a ideia, que os autores intelectuais sejam julgados. Acredito que é uma batalha que pode ser conquistada.
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México. “O narcotráfico está em todos os cantos do país e já está em Chiapas”. Entrevista com Gustavo Castro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU