05 Julho 2023
Para uma interpretação burocrática e estritamente pautada no Código de Direito Canônico, as obras do Prof. Lintner não oferecem um “religioso obséquio do intelecto e da vontade” ao magistério autêntico da Igreja e, por isso, caem fora daquilo que é permitido a um teólogo “obediente”, que, por isso, não é autorizado a assumir o cargo de reitor.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo é publicado por Come Se Non, 04-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "'pusilli animi est' pensar que a teologia só pode trabalhar dentro do recinto protegido da expressão magisterial autêntica. Esse ideal “mesquinho” de uma teologia posta sob tutela que nos diz respeito oficialmente há 50 anos (1983-2023) é um produto envenenado do pós-Concílio, e chegou a hora do pôr fim a ele, reformulando de modo diferente a relação entre magistério e teologia também no plano jurídico".
Não se deveria esquecer que os acontecimentos dos últimos dias – que colocaram em paralelo a não concessão do “nulla osta” à promoção do Prof. Lintner e o anúncio do novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, acompanhado de uma carta do Papa Francisco que descreve de modo novo as tarefas do próprio dicastério – se enraízam não simplesmente em hábitos ou em práticas tradicionais.
A aptidão a censurar por parte dos escritórios e a se autocensurar por parte dos teólogos é fruto de uma longa história, que encontrou uma aceleração surpreendente nos últimos 120 anos e que hoje levanta a tarefa de repensar a relação entre Magistério e teologia (ou entre magistério pastoral e magistério acadêmico) com uma pesada propensão sobre o lado jurídico.
Antes de abordar a questão, gostaria apenas de recordar que a luta com o Estado liberal e com o pensamento liberal marcou profundamente a história da teologia católica, fazendo-a se inclinar pesadamente, entre o Vaticano I e o Vaticano II, na direção de uma “teologia de autoridade”. Essa opção foi fortemente favorecida pela passagem antimodernista, que, a partir da primeira década do século XX, convenceu grande parte da teologia católica da irrelevância de um debate sério com o pensamento moderno, reduzindo-o muitas vezes a uma série de “erros” em relação aos quais é preciso se manter longe.
Em vez disso, poderá surpreender o fato de descobrir que, depois do Concílio Vaticano II, que certamente introduziu profundos motivos para repensar o antimodernismo católico dos primeiros 60 anos do século XX, pôde-se chegar, institucionalmente, a uma formulação da relação entre teologia e magistério que, no novo Código de 1983, encontra uma estruturação no mínimo escandalosa e certamente muito mais fechada e rígida do que estava prevista no Código de 1917.
Ao examinar essa normativa escandalosa, talvez possamos compreender melhor uma das raízes do “caso Lintner”: para uma interpretação burocrática e estritamente “codicial”, as obras do Prof. Lintner não oferecem um “religioso obséquio do intelecto e da vontade” ao magistério autêntico da Igreja e, por isso, caem fora daquilo que é permitido a um teólogo “obediente”, que, por isso, não é autorizado a assumir o cargo de reitor.
Para entender a gravidade dessa estrutura normativa, retomo o que um grande canonista, Ernst-Wolfgang Boeckenfoerde, escrevera há alguns anos, quando trazia à tona, com grande perspicácia, uma das raízes da atual crise entre magistério e teologia.
E.-W. Boekenfoerde questionou não apenas um certo modo de entender a “doutrina eclesial” em relação à “liberdade da teologia”, mas também levantou dúvidas sobre a legitimidade de uma normativa como a que define os deveres do teólogo em relação ao magistério eclesial. Refiro-me aqui ao estudo de Boeckenfoerde intitulado “Roma ha parlato, la discussione è aperta. Struttura comunionale della Chiesa e parresia del cristiano” e publicado em Il Regno-Attualità, 50(2005), pp. 739-744.
Na mudança de estilo predominante entre “negar o erro” (magistério negativo) e “afirmar a verdade” (magistério positivo), podemos detectar uma mudança da normativa que supervisiona os “deveres profissionais” do teólogo. Esse me parece ser um aspecto muito significativo da evolução que o Concílio Vaticano II determinou na relação entre magistério e teologia, e que hoje mostra toda a sua contradição.
Basta considerar a “mens” dos dois artigos muito diferentes com os quais o Código de Direito Canônico de 1917 e o de 1983 regulamentam os “deveres” do teólogo:
“Satis non est haereticam pravitatem devitare, sed oportet illos quoque errores diligenter fugere, qui ad illam plus minusve accedunt; quare omnes debent etiam contitutiones et decreta servare quibus pravae huiusmodi opinones a Sancta Sede proscriptae et prohibitae sunt”.
Fica claro que a tarefa do teólogo é relida dentro de uma relação com um magistério assumido em sua versão predominantemente negativa, que se expressa em termos de proposições errôneas, doutrinas heréticas, opiniões rejeitadas...
“Non quidem fidei assensus, religiosum tamen intellectus et voluntatis obsequium praestandum est doctrinae, quam sive Summus Pontifex sive Collegium Episcoporum de fide vel de moribus enuntiant, cum magisterium authenticum exercent, etsi definitivo actu eandem proclamare non intendant; christifideles ergo devitare curent quae cum eadem non congruant.”
Nesta segunda perspectiva, é evidente o que ocorreu: passou-se de uma leitura negativa para uma leitura positiva do magistério. Assim, a obediência a todas as “proscrições e proibições” tornou-se “religiosa obediência da vontade e do intelecto” a todo o “magistério autêntico”.
Foi W. Boekenfoerde quem abriu uma discussão extremamente franca e cheia de parrésia sobre a compatibilidade desse cânone com a função de “liberdade crítica” que o teólogo exerce dentro do magistério eclesial. Com efeito, se a obediência se estende a todo o magistério (irreformável e reformável), então perguntamo-nos como teria sido possível, com essas regras de 1983, sair das posições do magistério “autêntico”, mas “reformável” dos papas do século XIX em relação ao tema da “liberdade de consciência”.
Disso decorre necessariamente um distanciamento crítico necessário ao exercício de uma teologia pudica e crítica. Acompanhemos por um instante o raciocínio de W. Beokenfoerde:
“Esse tipo de legislação documenta uma clara tendência voltada a reforçar o máximo possível a autoridade e a obrigatoriedade das intervenções do magistério pontifício ordinário: embora sejam formalmente distintas das do magistério infalível, estas são de fato fortemente equiparadas a ele. A normativa em vigor busca presumivelmente o objetivo de defender o magistério pontifício ordinário de toda objeção e crítica publicamente exposta. Disso decorre um manifesto fortalecimento disciplinar da autoridade pontifícia; porém, isso ocorre em contradição com o intrínseco princípio vital da Igreja, certamente não favorecido pela imposição de tal tendência.
Ou se espera realmente que o fiel e o teólogo tenham que aceitar o fato consumado e esperem, sem poder se comprometer de forma alguma, que o magistério finalmente chegue a uma posição melhor? Esperar tudo do Espírito Santo e confiar-lhe a solução de todos os problemas sem se comprometer e agir autonomamente é uma atitude que pode ser definida no mínimo como presunçosa. Como poderia ter se chegado ao reconhecimento da liberdade religiosa se não tivesse havido teólogos e leigos comprometidos e dispostos a questionar em termos críticos e publicamente os ensinamentos então em vigor? Basta pensar nos expoentes do personalismo ativos no início do século XX” (“Roma ha parlato...”, p. 743).
Eis um belo exemplo de audácia e de modéstia do trabalho teológico, do qual a Igreja continua precisando, apesar de todas as formas de amor à “vida mansa” que a atravessam. A partir desse equívoco canônico, surgem também as tentações à censura e as propensões à autocensura, que são justificadas até “por lei”. Assim, seguindo a lei, renuncio a ser teólogo: fico apenas com a teologia de corte!
Esse problema indica uma série de tarefas, que aguardam um grande desenvolvimento futuro, para que um caso Lintner não tenha que se repetir. Eis os três principais:
a) O caso ocorreu com base na aplicação “rigorosa” do cânone 752, que não deixa ao teólogo nenhum espaço de diferenciação em relação a todo o quadro do “magistério autêntico”. Na intenção do cânone, o teólogo é reduzido a um funcionário do magistério: se ele não repetir o magistério, resta-lhe apenas a alternativa do silêncio.
b) Para sair dessa perspectiva, é necessária uma primeira condição essencial: a reforma do cânone 752, a fim de salvaguardar eclesialmente uma esfera legítima de pesquisa do teólogo, que lhe permita “institucionalmente” dizer também outra coisa em relação ao magistério autêntico. Para que o religioso obséquio se dirija não apenas ao Magistério, mas também à Palavra de Deus e à experiência humana.
c) Obviamente, o modo como o Dicastério para a Doutrina da Fé aborda a “promoção da teologia” também pode afetar profundamente a relação entre magistério e teologia. Mas não podemos nos iludir: uma reforma do dicastério que não toque na formulação jurídica do cânone 752 estaria muito próxima de uma encenação, na qual o roteiro de fundo não muda.
Com o caso Lintner aprendemos não apenas algumas dolorosas “imoralidades” na história dos dicastérios romanos, mas também uma imoralidade atual da normativa canônica em vigor. A tentativa de produzir uma teologia em forma de “capacho” conheceu muitas exceções, graças a Deus. Desde que o Código de 1983 está em vigor, não faltou a coragem de muitos teólogos e teólogas, mas isso pôde ocorrer sempre pelo menos “praeter legem”, senão até “contra legem”!
A norma atesta da forma mais clara a tentativa de impor a toda a Igreja um “dispositivo de bloqueio” em seu caminho de reflexão e de amadurecimento. Não pode haver nem inquietação, nem incompletude, nem imaginação no trabalho do teólogo burocraticamente confiável. Poderíamos referir também a essa formulação do cânone 752 aquilo que lemos na Amoris laetitia (n. 303) a propósito a tentativa de blindar em uma lei positiva todas as potencialidades santas de vida familiar e matrimonial.
Da mesma forma, “pusilli animi est” pensar que a teologia só pode trabalhar dentro do recinto protegido da expressão magisterial autêntica. Esse ideal “mesquinho” de uma teologia posta sob tutela que nos diz respeito oficialmente há 50 anos (1983-2023) é um produto envenenado do pós-Concílio, e chegou a hora do pôr fim a ele, reformulando de modo diferente a relação entre magistério e teologia também no plano jurídico.
Caso contrário, outros 10, 100 ou 1.000 “casos Lintner” poderiam se repetir, de forma institucional e juridicamente garantida e protegida.
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A sombra do Código de Direito Canônico sobre o caso Lintner: a teologia como capacho? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU