"À primeira vista, as palavras de Tarrou, personagem de A peste, de Albert Camus, não só expressam exatamente como nós somos, mas também a impossibilidade de mudarmos. Mas elas são somente parte da verdade. O restante, de modo mais aclarado e clarificado, o encontramos naquele que é o perito da natureza humana, mas também da graça: Santo Agostinho."
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
"— Em resumo – disse Tarrou com simplicidade –, o que me interessa é saber como alguém pode tornar-se um santo.
— Mas você não acredita em Deus...
— Justamente. Poder ser santo sem Deus é o único problema concreto que tenho hoje."
O problema concreto de Tarrou, personagem de A peste, do escritor argelino e Prêmio Nobel de Literatura, Albert Camus, não é decorrente da observação da pandemia que assolou a cidade de Orã, uma "cidade comum", na qual a narrativa é exposta. Tem origem, antes, no exame da própria vida, quando "compreendeu" o que se passava consigo:
"[...] não tinha deixado de ser um empestado durante todos esses longos anos em que, portanto, com toda a minha alma, eu julgava lutar contra a peste."
Na pandemia de Covid-19, uma das obras literárias retomadas para refletir sobre o momento atual foi A peste, de Camus. De fato, trata-se de um exemplar de reflexões sobre as doenças que acometem o ser humano, mas não dos remédios que o cura. Na conversa amigável com o Dr. Rieux no terraço, depois de um dia exaustivo, Tarrou expõe sua tese sobre ele próprio e os demais:
"Sei, de ciência certa, que cada um traz em si a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está isento dela. Sei ainda que é preciso vigiar-se sem descanso para não ser levado, num minuto de distração, a respirar na cara de outro e transmitir-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto - a saúde, a integridade, a pureza, se quiser - é um efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais se deter. O homem direito, aquele que não infecta quase ninguém, é aquele que tem o menor número de distrações possível. E como é preciso ter vontade e atenção para nunca se ficar distraído! Sim, Rieux, é bem cansativo ser um empestado. Mas é ainda mais cansativo não querer sê-lo. É por isso que todos parecem cansados, já que todos, hoje em dia, se acham um pouco empestados. Mas é por isso que alguns que querem deixar de sê-lo conhecem um extremo de cansaço de que já nada os libertará a não ser a morte."
À primeira vista, as palavras de Tarrou não só expressam exatamente como nós somos, mas também a impossibilidade de mudarmos. Mas elas são somente partes da verdade. O restante, de modo mais aclarado e clarificado, o encontramos naquele que é o perito da natureza humana, mas também da graça: Santo Agostinho; em particular em A natureza e a graça, na qual critica De natura, a obra de Pelágio sobre a natureza humana.
As objeções do bispo de Hipona à tese dos pelagianos de sua época eram seguidas da exortação:
"Não menosprezei a graça de Deus, sem a qual a natureza humana, já cega e viciada, não recebe a luz nem se cura."
A resposta de Agostinho ao "problema concreto" de Tarrou, que deseja a santidade e, consequentemente, a caridade, é a própria conclusão de sua obra:
"[...] não se creia que a caridade se difunde em nosso coração pela eficácia da natureza ou da vontade, que nos são próprias, mas pelo Espírito Santo que nos foi dado. Ele socorre nossa fraqueza e colabora para a nossa cura."