01 Julho 2023
“Eu sei que isto não se faz. Mas, em suma, tendo chegado ao 334º texto da coluna ‘Ora d’Arte’, permitam-me, por uma vez: hoje, vocês lerão um texto já publicado, e publicado há exatos 10 anos em uma coluna que foi o prelúdio desta e que se dirigia às crianças. Sobre a razão pela qual esse texto me voltou à mente exatamente agora, bem, os mais fisionomistas se darão conta imediatamente: pela impressionante semelhança entre a criatura imaginária que é a protagonista desta gravura de 200 anos atrás e o “pai da (pobre) pátria” italiana que foi recentemente inserido à força lá onde não devia estar: isto é, justamente, no Panteão nacional.”
O comentário é do historiador da arte Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado pelo caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 30-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Francisco Goya é um mágico que possui um espelho encantado: um espelho que faz o contrário daquilo que costumam fazer os espelhos. Esse espelho – seus quadros, suas gravuras, seus desenhos – deforma a realidade para permitir que você a compreenda mais profundamente. Essa forma de proceder dificulta um pouco a vida de quem estuda suas obras (porque a aposta é a de entender, o mais exatamente possível, o que o artista realmente tinha em mente quando realizava uma determinada obra sua), mas torna Goya familiar, próximo, contemporâneo a todos nós.
Francisco Goya, “EI Bobalicón”, quarta gravura da série “Disparates”, 1815-1820
Tomemos esta magnífica gravura, a quarta da série “Disparates”, feita por um Goya no fim da vida, já totalmente imerso em suas visões. Um anão gigante de cabelos de asfalto estica um sorriso diabólico: o sorriso gostaria de conquistar, mas revela dentes carnívoros. Finge ser afável, divertido: toca castanholas.
Seu público é uma menina ingênua, crédula, que pende de seus lábios como se estivesse em transe, presa por uma criatura horrível que a agarra pelas costas.
O que essa imagem representa? Certamente é uma cena noturna, que fala da linha tênue que separa o medo da piada: talvez tenha a ver com as figuras monstruosas do carnaval espanhol. Mas, na verdade, ninguém sabe. E, portanto, cada um de nós pode ver aí o que quiser: pode projetar nela seus medos, enxertá-la em seus pesadelos.
Certamente, vou fazer levantar a sobrancelha de fulano, beltrano ou de um sicrano qualquer, mas, para mim, aquele anão de cabelos de asfalto lembra invencivelmente um pesadelo do nosso país: um pesadelo que não acaba nunca, como os monstros dos filmes de terror.
E aquela menina me lembra a Itália: prisioneira da ignorância, do egoísmo, do medo. O obsceno palhaço dança, quer parecer inofensivo. Mas, de seus lombos, despontam cabeças monstruosas, que o traem.
Esses monstros podem representar o massacre da ética pública e da legalidade, o desprezo pela norma, o arbítrio do dinheiro, a aliança com a máfia. Goya tinha visto tudo isso em sonho: tinha visto até seu rosto, em um pesadelo profético, de 200 anos atrás.
Nós afundamos nesse pesadelo há quase 20 anos. Quando virá o amanhecer?
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Os pesadelos de Goya se assemelham aos nossos. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU