17 Junho 2023
“O problema que não se quer ver, em parte pelos interesses imediatistas das esquerdas, mas também pela inércia que arrasta toda a cultura política, é que o Estado mudou, que foi sequestrado pelo 1% para blindar seu poder e riqueza. Esta mutação do capital, da acumulação por reprodução ampliada à acumulação por pilhagem, está na base dos atuais Estados para a pilhagem”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 02-06-2023. A tradução é do Cepat.
A realidade não é como gostaríamos que fosse, nem mesmo como foi décadas atrás. Desde que o capital declarou guerra aos povos para se apropriar dos bens comuns (água, terra, ar e tudo o que é vivo), transformou os Estados-nação no escudo dos poderosos, usando e abusando de aparatos armados, legais e ilegais, para conter e disciplinar os setores populares.
Ao contrário do que sustenta boa parte da esquerda, o neoliberalismo não é menos, mas, sim, mais Estado. Se observarmos em seu conjunto, a militarização é a resposta estrutural do capital para realizar a pilhagem, controlar os povos que a resistem e estimular a acumulação violenta e predatória. É o Estado que militariza os territórios onde vivem os povos. Portanto, sem essa demolidora presença estatal não seria possível ao capital concretizar suas malfeitorias.
Aqueles que sustentam que o progressismo não é neoliberal porque aumenta a presença do Estado na sociedade e na economia, ignoram deliberadamente o fenômeno da militarização, que transcende governos e cores políticas para se tornar uma realidade asfixiante em toda a América Latina. No Peru, a Anistia Internacional reconheceu, em um relatório de 16 de fevereiro, que a violência estatal contra camponeses e indígenas, durante os protestos dos últimos meses, é uma demonstração de “desprezo à população”.
Érika Guevara, diretora para as Américas da Anistia Internacional, disse que “não é por acaso que dezenas de pessoas disseram que sentiam que eram tratadas pelas autoridades como animais e não como seres humanos”. Que indígena, camponês ou pessoa dos setores populares não sentiu algo semelhante em sua relação com as autoridades e, em particular, com os aparatos armados do Estado?
Devemos rejeitar a ideia dos particularismos, se quisermos compreender o sistema. Peru, México, Guatemala, Honduras, Chile, Equador, Argentina, Brasil e Venezuela atravessam situações em que as semelhanças e tendências de fundo são muito mais importantes do que as diferenças pontuais. Caminhamos para regimes cada vez mais autoritários, em todas as geografias, com diferenças de tempos e modos.
O último exemplo ocorre, nesses dias, no Brasil. O presidente Lula prometeu aos indígenas, durante a campanha eleitoral, que legalizaria seus territórios, conforme determina a Constituição aprovada em 1988. Não poderá porque o agronegócio bloqueia qualquer iniciativa em favor dos povos originários e camponeses. Há anos, também impedem avanços sólidos na reforma agrária.
Uma recente reportagem na página Sumaúma, intitulada “Lula pode cumprir o que prometeu aos indígenas?”, explica que durante o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) foram homologados 145 territórios indígenas, em oito anos, e que com Fernando Collor (1990-1992) foram alcançadas 112 homologações em apenas dois anos e meio de governo. Em contraste, durante os dois governos de Lula (2003-2010), foram homologados apenas 81 territórios e com Dilma Rousseff (2011-2016) apenas 21 territórios. É chocante que governos conservadores tenham superado com folga o governo do Partido dos Trabalhadores, tanto na legalização dos territórios indígenas quanto na entrega de terras aos camponeses.
Devemos explicar essa realidade, compreender que estamos diante de uma guinada do capital e do Estado. O problema que não se quer ver, em parte pelos interesses imediatistas das esquerdas, mas também pela inércia que arrasta toda a cultura política, é que o Estado mudou, que foi sequestrado pelo 1% para blindar seu poder e riqueza. Esta mutação do capital, da acumulação por reprodução ampliada à acumulação por pilhagem, está na base dos atuais “Estados para a pilhagem” que forçam os povos a se protegerem de diversas formas, de guardas indígenas e quilombolas a autonomias e autogovernos territoriais.
No recente encontro internacional O Sul Resiste, convocado pelo Congresso Nacional Indígena e realizado no Cideci (San Cristóbal de las Casas), explicamos que a guerra de pilhagem está apenas começando, porque quase 40% das terras do continente seguem nas mãos dos povos originários e negros, de pequenos produtores, pescadores e todas as aquelas famílias que produzem alimentos, segundo relatórios anuais do Instituto para o Desenvolvimento Rural da América do Sul.
A disputa no continente é por esses territórios que o capital ainda não controla. Contrariando Max Weber, devemos dizer que hoje o Estado é a instituição que articula as violências contra os povos: militares, paramilitares, narcotraficantes e as mais diversas gangues. Apostar no Estado como ferramenta de transformação supõe abandonar os povos aos bandos armados.
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Os Estados existem para a pilhagem. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU