Dark kitchen: um novo modelo de negócio ainda pouco conhecido, mas cheio de questões. Entrevista especial com Diogo da Cunha e Mariana Hakim

Segundo os pesquisadores, em grandes cidades do estado de São Paulo, esse modelo de negócio representa 27,1% dos restaurantes disponíveis em aplicativos de delivery

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 02 Junho 2023

Talvez, você nunca tenha ouvido falar, mas é provável que a comida que você pede via aplicativo de delivery venha de uma dark kitchen. Segundo pesquisa, que contou com a colaboração dos nutricionistas Diogo da Cunha e Mariana Hakim, 27,1% dos restaurantes que operam com entregas via aplicativo em grandes cidades de São Paulo atuam através de dark kitchen. Ou seja, suas sedes se resumem apenas à estrutura de cozinha e o negócio não possui fachada ou qualquer sinalização ou identificação visual no endereço. “Isso mostra uma relevância para o setor de alimentos, despertando uma ainda maior necessidade de atenção tanto para questões econômicas como para questões de segurança dos alimentos”, alertam os pesquisadores.

A partir da entrevista abaixo, concedida em conjunto por Diogo e Mariana por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, fica evidente que esse modelo de negócios é extremamente novo e requer mais estudos para que se conheça ainda mais essa realidade. “Não podemos fazer afirmações sobre dificuldades e falhas de dark kitchens. Sendo assim, reforçamos a importância de usar as informações para dar suporte a esses restaurantes e não os julgar ou entender sua existência como errada ou um mal”, destacam.

No entanto, “não julgar” não significa não fiscalizar ou não ter as ferramentas e procedimentos adequados para garantir a qualidade dos alimentos vendidos. “A questão não é exatamente sobre estar preparado para fiscalizar, mas sim sobre os órgãos de vigilância realmente conseguirem identificar e acessar esses espaços. Rastrear locais sem fachada pode ser ardiloso. Acreditamos que é importante não encarar as dark kitchens como todas iguais”, avaliam.

Além disso, o próprio tipo de alimento que comercializam requer atenção. “Não é exclusividade das dark kitchens. Alimentação por delivery costuma ser mais rica em calorias, gordura, sal e açúcar, devido à característica dos alimentos vendidos. Do ponto de vista sanitário, cria-se um alerta sobre a necessidade de regulamentação e políticas públicas que apoiem esse perfil de estabelecimento”, concluem.

Diogo Thimoteo da Cunha (Foto: Arquivo Pessoal)

Diogo Thimoteo da Cunha é nutricionista, formado pela Universidade Católica de Santos, mestre e doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo, especialista em Alimentação Coletiva pela Associação Brasileira de Nutrição – ASBRAN e livre docente pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor associado e coordenador do curso de Nutrição da Unicamp. Participou de projetos de cooperação internacional na África com a República do Malawi (2013), do Senegal (2014) e de Moçambique (2015) como consultor das políticas de alimentação escolar destes países.

Mariana Piton Hakim (Foto: Arquivo Pessoal)

Mariana Piton Hakim é nutricionista, graduada pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, mestre e doutoranda em Ciências da Nutrição e Esporte e Metabolismo pela mesma instituição. Pesquisa segurança alimentar, comportamento do consumidor e percepção de risco.

Confira a entrevista.

IHU – O que são dark kitchens? Que espaço ocupam atualmente no segmento de delivery?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – Dark kitchens são restaurantes que vendem exclusivamente por meio de plataformas digitais fazendo uso de delivery como forma de atendimento, não possuindo espaço para atendimento local. Esse modelo de restaurante atualmente representa 27,1% dos restaurantes disponíveis em aplicativos de delivery, quando olhamos as cidades de Campinas, Limeira e São Paulo. Isso mostra uma relevância para o setor de alimentos, despertando uma ainda maior necessidade de atenção tanto para questões econômicas como para questões de segurança dos alimentos.

IHU – Que implicações do ponto de vista nutricional esse modelo pode apresentar? E quais os impactos do ponto de vista do trabalho há para profissionais que atuam nesse modelo?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – Não é exclusividade das dark kitchens. A alimentação por delivery costuma ser mais rica em calorias, gordura, sal e açúcar, devido à característica dos alimentos vendidos. Do ponto de vista sanitário, cria-se um alerta sobre a necessidade de regulamentação e políticas públicas que apoiem esse perfil de estabelecimento, assim como trazer segurança para o consumidor.

É necessário um novo estudo, que será conduzido nos próximos meses, para identificar os pontos positivos, as dificuldades e falhas desses estabelecimentos. Até o momento, pudemos perceber somente questões relacionadas ao tipo de comida mais comumente vendido nas dark kitchens. Em São Paulo, as que vendem comida típica brasileira são as mais comuns. Já em Campinas e Limeira, as mais presentes são as que vendem lanches e doces.

IHU – Recentemente, uma pesquisa em que vocês participaram aponta que quase 30% dos restaurantes do iFood são dark kitchens. O que isso significa?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – Os preços das refeições de restaurantes convencionais são maiores do que os cobrados em dark kitchens. Isso se deve ao menor custo de abertura e manutenção do modelo dark kitchen. Ainda que isso possa trazer uma competitividade para os restaurantes padrão, esse não é o único e nem o principal fator a ser considerado pelas pessoas no momento de decidir se ela vai comprar de um restaurante ou outro.

Os dados do estudo são importantes para o mercado, para que seja trabalhada a melhoria do modelo, sua regulação e que o consumidor tenha direito à informação. Em um estudo anterior, vimos que muitos consumidores nem sequer sabem o que é dark kitchen, indicando a necessidade de maior divulgação do modelo.

IHU – O que mais surpreendeu na pesquisa sobre dark kitchens? Por quê?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – O que mais surpreendeu foi a diversificação dos modelos de dark kitchens. Foi interessante ver as diferentes estratégias de negócio e venda. Nessa pesquisa conseguimos observar os modelos:

IHU – O poder público está preparado para fiscalizar as dark kitchens, especialmente com relação às condições sanitárias e de trabalho dos funcionários?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – A questão não é exatamente sobre estar preparado para fiscalizar, mas sim sobre os órgãos de vigilância realmente conseguirem identificar e acessar esses espaços. Rastrear locais sem fachada pode ser ardiloso. Acreditamos que é importante não encarar as dark kitchens como todas iguais. Possivelmente cada modelo terá uma dificuldade maior a ser apoiada e que vá exigir maior atenção para um serviço seguro.

IHU – Como os aplicativos de delivery, como o iFood, chancelam, ou mesmo fiscalizam, as refeições das dark kitchens?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – Não sabemos os procedimentos do próprio iFood, se existe um tipo de protocolo ou fiscalização interna. Porém, notamos, no início de nossa coleta, que a empresa de aplicativo solicitava dos restaurantes apenas CNPJ, endereço e Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE para cadastro efetivo para vendas.

De qualquer forma, em pesquisa anterior observamos que os consumidores não entendem que as plataformas são responsáveis pelos alimentos comercializados, sendo responsabilidade única e exclusiva do vendedor.

IHU – A plataformização de aplicativos de entrega de comida tem revolucionado a cadeia de delivery sob vários aspectos. Mas, especificamente sobre o tipo e a qualidade do alimento, que transformações vêm ocorrendo?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – Como dito anteriormente, não podemos ainda afirmar sobre a qualidade dos alimentos, pois isso não foi avaliado em nosso estudo.

Porém, sobre os tipos de alimentos vendidos, acreditamos que a facilidade de iniciar um comércio pode estimular que mais negócios sejam iniciados por pequenos empreendedores. Vivemos em um momento no Brasil marcado por instabilidade econômica. Iniciar uma venda de produtos de produção menos complexa (como lanches e doces) pode ser a saída para a capitalização de muitas famílias.

No entanto, entendemos que as dark kitchens não são algo atraente somente para pessoas em vulnerabilidade econômica. A possibilidade de venda sem gastos de fachada e serviço local atrai grandes empresários para um modelo de negócio mais barato com a possibilidade de vender em aplicativos que podem trazer maior visibilidade aos seus empreendimentos.

IHU – As dark kitchens em grandes cidades geram atritos com a vizinhança pelo barulho de entregadores no entorno e, também, pelo cheiro de comida. Em sua pesquisa, como esse ponto aparece? Por que as dark kitchens costumam ocupar zonas mais residenciais e com pouco comércio e movimento nas ruas?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – A escolha desses locais para regiões mais periféricas, sendo, dessa forma, mais dispersos pela cidade, faz com que muitos estejam em bairros residenciais. A motivação para isso especulamos que seja financeira, uma vez que essas regiões podem ter aluguéis mais baratos do que regiões centrais ou movimentadas. Isso é possível pela não necessidade do deslocamento ou contato do consumidor com esses espaços.

IHU – Quais os caminhos para melhor lidar com as dark kitchens, tanto do ponto de vista do alimento que preparam como das condições de trabalho e modelo de negócio em si?

Diogo Cunha e Mariana Hakim – Não podemos fazer afirmações sobre dificuldades e falhas de dark kitchens. Sendo assim, reforçamos a importância de usar as informações para dar suporte a esses restaurantes e não julgá-los ou entender sua existência como errada ou um mal. O próprio nome DARK KITCHEN já pode trazer um estigma negativo para esses locais.

Dito isso, devemos tratar esse, assim como quaisquer novos negócios, com cuidado para o benefício dos empreendedores e consumidores, mas não inibindo sua existência. Resumidamente, o caminho é compreender melhor as dificuldades, os riscos e potenciais desses espaços para trazê-los como algo positivo à sociedade.

Por fim, acreditamos que será necessária a criação de políticas públicas para auxiliar na regulamentação e suporte das dark kitchens.

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