Cardeais da Cúria Romana travam batalha sobre moral sexual

(Foto: Norbu GYACHUNG | Unsplash)

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24 Mai 2023

Em um raro debate público, duas altas autoridades do Vaticano apresentam opiniões divergentes sobre a Humanae vitae, texto-chave da Igreja sobre sexualidade e procriação.

A reportagem é de Loup Besmond de Senneville, publicada por La Croix International, 22-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Debates abertos entre altas autoridades do Vaticano são raros, especialmente sobre questões tão delicadas quanto a moral sexual. Mas um deles ocorreu na sexta-feira passada, na abertura de um congresso em Roma sobre a Humanae vitae, a encíclica que Paulo VI publicou em 1968 para reafirmar a oposição da Igreja Católica à contracepção artificial.

O congresso dos dias 19 e 20 de maio, organizado pela Cátedra Internacional Jérôme Lejeune de Bioética, reuniu pesquisadores de várias universidades católicas. O cardeal jesuíta Luis Ladaria, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, abriu o evento com um longo discurso em espanhol, no qual ele defendeu a “visão profética” que o falecido papa expôs na encíclica.

“A verdade expressada na Humanae vitae não muda”, disse o cardeal de 79 anos. “São muitas as vozes, amplificadas pelos meios modernos de propaganda, que estão em contraste com a da Igreja”, lamentou, tomando emprestado um trecho da controversa encíclica [n. 18].

Em seu discurso, Ladaria insistiu que “a encíclica continua válida, porque é a resposta correta do magistério às antropologias dualistas que visam a instrumentalizar o corpo e que não representam humanismos novos, pós-modernos e seculares, mas sim anti-humanismos”.

Depois, ele criticou o “relativismo moral” e a “antropologia contraceptiva”, argumentando que a ruptura do vínculo entre sexualidade e procriação (que a encíclica condenou) acaba levando à redução do corpo a “mera materialidade e, portanto, a um objeto passível de manipulação”. É precisamente essa manipulação que é promovida pelo “trans-humanismo”, disse o cardeal.

Trans-humanismo e ideologia de gênero

“No trans-humanismo, a pessoa é reduzida à sua mente ou, melhor, a suas conexões neuronais como fundamento de sua singularidade”, segundo o cardeal e teólogo espanhol. “A singularidade é agora a essência da pessoa, sem o corpo, que a identifica e que pode ser transferida para outro corpo humano, um corpo animal, um ciborgue ou um simples arquivo”.

Da mesma forma, a “ideologia de gênero” também se baseia no princípio de que “a liberdade é posta em oposição à natureza”, argumentou.

“A ideologia de gênero nega que a identidade de uma pessoa esteja relacionada com seu corpo biológico”, disse o cardeal Ladaria. “Uma pessoa não se identifica com seu corpo (sexo), mas com sua orientação. Qualquer relação com o gênero binário é apagada para proclamar a diversidade sexual”, continuou.

Nem toda relação conjugal “deve necessariamente fecunda”

Mas, algumas horas depois dessa robusta defesa da encíclica de Paulo VI, o Vatican Media publicou uma entrevista com o arcebispo Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, que apresentou uma interpretação substancialmente diferente do mesmo texto papal.

“O reconhecimento da conexão indissolúvel entre amor conjugal e geração na Humanae vitae não significa que toda relação conjugal deva ser necessariamente fecunda”, explicou o arcebispo italiano de 78 anos. “Paulo VI reconhece que a procriação deve ser ‘responsável’ e – como se sabe – indica nos métodos naturais o modo para realizar tal responsabilidade”, continuou.

A entrevista, que o portal oficial de notícias do Vaticano disponibilizou em quatro idiomas, deixa claro que Paglia, que assumiu a direção da Academia em 2012, estava falando sobre a encíclica no momento em que o congresso de Ladaria estava ocorrendo. Os assessores do arcebispo disseram que Paglia nunca foi convidado para esse congresso, embora os organizadores do evento tenham negado.

“Nos anos 1060, a pílula era considerada um mal total”

Enquanto o cardeal Ladaria apresentou a encíclica como um texto que não pode ser mudado, o arcebispo Paglia esboçou uma visão muito diferente.

“Acho que é muito importante que se continue refletindo e discutindo sobre o assunto, como, aliás, o Papa Francisco reiterou justamente a propósito do tema dos anticoncepcionais, afirmando que ‘o dever dos teólogos é a pesquisa, a reflexão teológica’”, disse o arcebispo.

“Estamos diante de desafios epocais. Nos anos 1960, a ‘pílula’ parecia o mal absoluto", continuou. “Hoje, temos desafios ainda maiores: a vida da humanidade inteira está em risco se não pararmos a espiral dos conflitos, das armas, se não desencadearmos a destruição do ambiente”, argumentou Paglia.

Debates internos intensos

O debate entre as duas altas autoridades vaticanas, tão franco quanto inesperado, ocorre em um contexto de intenso debate na Pontifícia Academia para a Vida. Recentemente, diversos posicionamentos provocaram agitação dentro dessa instituição, que João Paulo II e o professor Jérôme Lejeune, o descobridor da Síndrome de Down, fundaram em 1994.

Foi o que ocorreu em fevereiro de 2022, quando o padre jesuíta Carlo Casalone, membro da Academia, chamou o suicídio assistido de “o maior bem comum possível” em comparação com a eutanásia. Sua posição foi publicada na La Civiltà Cattolica, uma publicação jesuíta cujos rascunhos passam pela aprovação do Vaticano.

A Pontifícia Academia para a Vida também lançou um livro no início de julho passado que foi visto como um ponto de virada na abordagem do Vaticano às questões morais. Intitulado “Theological Ethics of Life: Scripture, tradition, practical challenges” [Ética teológica da vida: escritura, tradição, desafios práticos], a obra reuniu pela primeira vez textos que questionam certos pontos da doutrina moral, provocando grande agitação na Cúria Romana e em outros ambientes eclesiais.

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