23 Mai 2023
Paulo de Tarso, ou São Paulo para os católicos, é às vezes considerado o fundador do cristianismo. Por ocasião da festa da Ascensão, o historiador Daniel Marguerat volta a falar desta figura polêmica que, depois de ter perseguido a jovem comunidade cristã, tornou-se seu mais ardoroso defensor.
A Ascensão, que alguns cristãos celebraram na última quinta-feira, indica a elevação de Jesus ao céu e seu último encontro com os discípulos após a Ressurreição. Segundo o Novo Testamento, apenas Paulo de Tarso teria depois uma última aparição de Cristo, dando um forte impulso a uma atividade missionária que angariaria emuladores por toda a região mediterrânea.
Debruçamo-nos sobre este personagem, sem o qual o cristianismo talvez não teria perdurado, com o historiador Daniel Marguerat, professor honorário de teologia protestante na Universidade de Lausanne (Suíça) e autor de Paul de Tarse. L'enfant terrible du christianisme (Seuil).
A entrevista com Daniel Marguerat é de Cyprien Mycinski, publicada por Le Monde, 18-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos Atos dos Apóstolos, ou seja, o relato do Novo Testamento que vem depois dos Evangelhos, a primeira imagem que temos de Paulo é a de um perseguidor dos discípulos de Jesus: por que ele os hostilizava?
Paulo, que é judeu da diáspora, opta na juventude pelo caminho da excelência religiosa, representada no judaísmo da época pela corrente farisaica. Os fariseus são leigos que assumem como missão preservar a santidade do povo de Israel. Isso leva a uma observância extremamente rigorosa da Lei, ou seja, do conjunto de prescrições rituais dados por Deus ao seu povo.
Aqueles que dela se distanciam são considerados pelos fariseus como desviantes que maculam a pureza de Israel. E os discípulos de Jesus definitivamente se enquadram nessa categoria. De um lado, eles veem no Messias um indivíduo que morreu da maneira mais vergonhosa, e isso era escandaloso para os fariseus. Por outro lado, Jesus de Nazaré pregava que a Lei consiste essencialmente em amar a Deus e ao próximo. Efetivamente, isso significa relativizar ou questionar certas normas rituais (como a observância do Shabat) que os fariseus pretendem, ao contrário, fazer cumprir escrupulosamente.
Os Atos dos Apóstolos apresentam Paulo como o último homem a ter encontrado Cristo, algum tempo depois da Ascensão, numa aparição "no caminho de Damasco". As cartas atribuídas a Paulo, a outra principal fonte a seu respeito, falam simplesmente de uma "revelação". O que exatamente aconteceu com ele?
Ele certamente vive uma experiência mística que o perturbou. Quais são as circunstâncias precisas daquele evento? Certamente não temos condições de responder a essa pergunta.
Seja como for, isso o induz a ficar do lado daqueles que perseguia até aquele momento.
O termo "conversão", frequentemente usado, é, no entanto, impróprio. Na verdade, Paulo nunca mudou de religião. Em seu pensamento, ele não deixa de ser judeu. Ele simplesmente acredita que agora o judaísmo passa por Jesus de Nazaré, que ele vê como o Messias anunciado pelos profetas.
Paulo, portanto, não é absolutamente um "renegado". Melhor dizer que muda de corrente dentro do judaísmo.
Assim, desde então, prega a fé em Cristo.
Como organiza a sua atividade missionária?
Durante trinta anos, a partir de sua "mudança" por volta do ano 32 até à sua morte entre 62 e 64, Paulo se dedica à missão. Cidadão romano, tem um bom entendimento de como funciona o Império, o que o leva a fazer um uso eficaz de suas estruturas. Percorrendo as vias romanas da Ásia Menor e da Grécia, visita as principais metrópoles regionais. Aí começa a dirigir-se à sinagoga, o que lhe permite usufruir da generosa rede de hospitalidade da diáspora.
Frequentemente, a ruptura com os judeus locais ocorre quase imediatamente, pois a pregação de Paulo está em contraste com o judaísmo majoritário. No entanto, muitas vezes consegue convencer alguns indivíduos, o que lhe permite dar origem a uma primeira comunidade cristã. Então aparecem as "igrejas domésticas", distintas da sinagoga: aqueles que Paulo reúne na fé em Jesus se reúnem na casa de um deles para a catequese e para a celebração da Eucaristia.
Rapidamente, Paulo forma colaboradores locais a quem confia a gestão da nova comunidade, a fim de permitir que ela avance. E então, depois de alguns meses, ele parte para outra cidade onde começa a pregar novamente. Assim, ele cria uma rede de comunidades com as quais manterá contato por meio de cartas, que hoje são chamadas de "epístolas" (em grego antigo, carta é chamada de epístola).
Paulo às vezes é referido como "o apóstolo das nações", aquele que, primeiro, teria pregado a fé cristã aos não-judeus. É isso mesmo?
Paulo prega tanto para judeus como para "gentios" (a tradução usual do hebraico goyim, que indica os não-judeus) e assim funda comunidades "mistas". No entanto, ele não é o inventor dessa pregação cristã dirigida aos não-judeus. Digamos que Paulo sistematiza essa abertura.
Além disso, define com muita clareza a identidade cristã como universal, superando a separação entre judeus e pagãos. “Já não há judeu nem grego (...) porque vós todos sois um em Jesus Cristo” (Gl 3, 28), escreve na epístola aos Gálatas. Nessa perspectiva, não sem razão, o filósofo Alain Badiou faz de Paulo o inventor do universalismo.
Resta o fato de que a missão aos pagãos suscita controvérsias. De fato, Paulo considera que os gentios que recebem sua pregação não devam se submeter às prescrições rituais judaicas, como a circuncisão. Mas entre os discípulos de Jesus, alguns rejeitam absolutamente o abandono da Lei judaica. A Igreja de Jerusalém, dirigida por Tiago, chamado "o irmão do Senhor", desenvolve assim uma contra-missão nas comunidades fundadas por Paulo, para garantir que elas se submetam ao respeito das normas judaicas.
Como Paulo adaptou sua pregação a um público que incluía judeus e não judeus?
Paulo é um homem com uma dupla cultura. Claro que ele é judeu, conhece o hebraico e a Torá perfeitamente.
Mas ele nasceu em Tarso, na atual Turquia, longe de Jerusalém, e sua língua materna é o grego, língua de comunicação em todo o Mediterrâneo oriental. Dirigindo-se tanto a judeus como a gentios, ele integra em sua pregação tanto elementos vindos da tradição judaica - baseada na Torá - quanto outros extraídos da filosofia grega. Nesse sentido, ele é o primeiro artífice da helenização do cristianismo.
Pode-se tomar como exemplo o tema da Igreja como corpo de Cristo. Paulo retoma aqui uma ideia grega, pois, no mundo antigo, muitos pensadores veem a sociedade como um corpo no qual alguns órgãos nobres dirigem enquanto os órgãos inferiores executam. Paulo também considera a comunidade dos fiéis como um corpo. No entanto, ele acredita que na Igreja não há uma hierarquia entre os membros, porque todos têm igual dignidade.
Hoje, Paulo é às vezes considerado misógino e acredita-se que ajudou a relegar as mulheres ao segundo plano no cristianismo. O que você pensa sobre isso?
Essa avaliação é totalmente injusta. Comecemos dizendo que Paulo organiza comunidades nas quais mulheres e homens estão num plano de igualdade, e nas quais mulheres ocupam funções que hoje se chamariam ministeriais. E faz isso numa antiga sociedade patriarcal, que não conhece tal mistura e igualdade religiosa.
A nova organização trouxe dificuldades em algumas comunidades. Em Corinto, por exemplo, a celebração do culto parece ter se tornado difícil porque as intervenções dos fiéis, homens e mulheres, são tão pletóricas que levam ao caos. Os Coríntios então pedem conselhos a Paulo.
É nessa ocasião que ele escreveu: "As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas" (1 Cor 14,34).
Essa expressão teve um impacto negativo. Nos séculos seguintes, o sentido daquela regra funcional foi distorcido para torná-la uma proibição geral, algo que não era a intenção de Paulo. Foi interpretado e mantido o que coincidia com a organização patriarcal da sociedade da época e deixado de lado o que ia no sentido de igualdade de valor entre todos os batizados, homens e mulheres. Mas este último ponto era essencial para Paulo - que também afirma: "não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Jesus Cristo" (Gl 3,28).
Também foi considerado que Paulo tenha ajudado a fundar o antijudaísmo cristão…
Sobre esse assunto, deve ser absolutamente evitado o anacronismo. Hoje, lemos Paulo depois do Holocausto e algumas passagens de suas epístolas nos parecem de uma brutalidade insuportável para com os judeus. Na carta aos Romanos, fala por exemplo de Israel que perseguiu os profetas.
O fato é que esse é um lugar-comum presente no judaísmo desde o século VI a.C.
São numerosos os rabinos do I século – ou seja, da época de Paulo - que afirmam o mesmo. Na realidade, trata-se de uma crítica de Israel a si mesmo. Especificamos também que, ainda na carta aos Romanos, Paulo afirma que “todo Israel será salvo” (Rm 11,26). Finalmente, lembramos que Paulo realmente quis justamente criar comunidades que reunissem judeus e não judeus. Ele não desejava absolutamente a ruptura definitiva entre judeus e cristãos, que ocorreu cinquenta anos depois dele. Além disso, Paulo também é percebido como responsável por um certo conservadorismo social na Igreja.
É assim na sua opinião?
Principalmente Paulo é criticado por não ter pedido a abolição da escravatura.
Devemos lembrar primeiro que, na Antiguidade, ninguém imaginava uma sociedade sem escravos. Paulo, que tem o mesmo "arcabouço mental" dos homens de seu tempo, dificilmente poderia ter semelhante ideia.
Também temos que considerar que o cristianismo da época não era de forma alguma uma instituição poderosa. É apenas uma nebulosa de comunidades minoritárias e suspeitas, é sociologicamente insignificante. Era, portanto, inimaginável que a pregação de Paulo tivesse o menor impacto na sociedade. Mas, principalmente, para Paulo é a igual dignidade diante de Cristo que importa; é tão fundamental que a hierarquia social se torna secundária.
Os cristãos do século XXI ganhariam em interessar-se mais na figura de Paulo?
Eu acredito profundamente nisso. O cristianismo europeu, aliás, encontra-se cada vez mais na situação que tinha na época de Paulo: torna-se minoritário dentro de uma sociedade que lhe é amplamente indiferente.
Os cristãos deveriam voltar a Paulo por duas razões. Em primeiro lugar porque não é um teólogo que fixa imperativos morais. Ele acredita que Deus não exige nada do crente e que oferece a salvação. O cristianismo do século XXI ganharia, sem dúvida, com o abandono de um discurso saturado de imposições.
Além disso, Paulo fundou comunidades nas quais todos estão num plano de igualdade, nas quais todos têm igual dignidade. O futuro do cristianismo não seria talvez o das pequenas comunidades nas quais se vive concretamente essa igualdade e essa convivência? Paulo, na minha opinião, não é um homem do passado. Pelo contrário, a sua visão da Igreja abre uma bela perspectiva para o cristianismo hoje.
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O apóstolo Paulo, conservador misógino e antissemita? “É uma avaliação totalmente incorreta”. Entrevista com Daniel Marguerat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU