19 Mai 2023
Entre a indiferença egoísta, que evita o contato com o outro em uma espécie de incomunicação, e a indignação violenta, que rompe o contato com o outro em uma espécie de anticomunicação, Francisco convida a comunicar cordialmente, isto é, a sintonizar-se com o outro, a sentir no próprio coração o pulsar do outro. É uma comunicação guiada pelo “critério do amor”. E não há comunicação humana e social sem processos comunicativos com a própria vida pulsante do planeta.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, doutor em Comunicação e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), onde é pesquisador membro do Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (Nect).
Em sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2023 – ano em que seu pontificado completa uma década – o Papa Francisco concluiu uma espécie de “trilogia comunicacional”. Depois de refletir sobre os verbos “ir e ver” (mensagem de 2021) e “escutar” (mensagem de 2022) como condições necessárias para uma boa comunicação, em 2023 Francisco convida a “falar com o coração”.
Usando esses mesmos passos, quero aqui reler o texto de Francisco “indo e vendo” seu contexto, para, em seguida, “escutar” sua mensagem principal. Com isso, estabelecendo um diálogo entre a mensagem papal e o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, Leonardo Boff, Adela Cortina e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, perceberemos, por fim, a importância e a necessidade, neste momento histórico, de uma comunicação que seja civilizada, ética, ecológica e integralmente cordial.
Como demonstração de um “ir e ver” do ponto de vista textual, o Papa Francisco redige sua mensagem indo ao encontro da “complexidade do mundo em que vivemos”, que demanda um discernimento atento e cuidadoso.
O que ele vê é um período histórico marcado por um “dramático contexto de conflito global”, no qual se destaca a Guerra na Ucrânia. No momento em que a mensagem de Francisco foi divulgada, em janeiro passado, a guerra já somava mais de 300 mil mortos, sendo 8.000 civis, segundo dados do Exército norueguês e do Escritório da ONU para os Direitos Humanos.
Como há 60 anos, escreve o pontífice, “a humanidade vive uma hora escura temendo uma escalada bélica, que deve ser freada o quanto antes, também em nível comunicativo”. Francisco reconhece que hoje facilmente se proferem palavras para invocar a destruição de povos e territórios; palavras que, infelizmente, muitas vezes são postas em prática em “ações bélicas de cruel violência”.
Para além das guerras entre nações, a destruição de povos e territórios evocada pelo papa é uma realidade que diz muito respeito ao Brasil. Justamente nos dias em que a mensagem de Francisco foi publicada, veio à tona uma grave crise humanitária e ambiental na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, a maior reserva indígena do país, formada por 371 comunidades com mais de 28,1 mil indígenas, segundo dados do relatório final do gabinete de transição do Governo Federal. Nos últimos quatro anos, 570 crianças morreram por contaminação por mercúrio, desnutrição, pneumonia, diarreia e fome. Somente no ano passado, segundo o Ministério dos Povos Indígenas, 99 crianças indígenas morreram nesse território.
Conforme o Ministério Público Federal, essa crise tem ligação direta com o avanço do garimpo ilegal com suas consequências ecológicas e o descaso do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2018-2022), que passou a ser investigado pela Polícia Federal pelo crime de genocídio e de omissão de socorro ao povo Yanomami. Essa tragédia, por sua vez, também decorre de uma violência verbal e simbólica contra os povos originários, vítimas de mentiras, discriminação, preconceito e xenofobia nas próprias falas e discursos de autoridades públicas.
De acordo com Francisco, vivemos um tempo muito propenso à indiferença e à indignação, baseadas principalmente na desinformação. Isso tem gerado uma instrumentalização da comunicação, marcada por uma retórica violenta e belicista e por formas de propaganda que manipulam a verdade para fins ideológicos. É o que o papa chama de “rumor confuso” que frequentemente impera no campo da comunicação, mediante boatos que semeiam discórdia e divisões, podendo chegar ao extremo da crueldade, envenenando os corações e intoxicando as relações.
Frente a tal realidade, Francisco convida a comunicar cordialmente, isto é, a entrar na “dinâmica do diálogo e da partilha” e a participar, de coração aberto e acolhedor, das alegrias e receios, das esperanças e sofrimentos das mulheres e homens do nosso tempo. Para o papa, trata-se de sintonizar-se com o outro, de sentir no próprio coração o pulsar do outro, em uma comunicação de braços abertos. Quem se comunica cordialmente “ama o outro, pois preocupa-se com ele e salvaguarda a sua liberdade, sem a violar”. É uma comunicação guiada pelo “critério do amor”, como afirma o pontífice.
Entre a indiferença egoísta, que evita o contato com o outro em uma espécie de incomunicação, e a indignação violenta, que rompe o contato com o outro em uma espécie de anticomunicação, Francisco propõe uma comunicação não hostil, que guarda continuamente a língua do mal. “Da nossa boca – afirma o papa –, não deveriam sair palavras más, ‘mas apenas a que for boa, que edifique, sempre que necessário, para que seja uma graça para aqueles que a escutam’ (Ef 4, 29)”. Só assim é possível “dissipar as sombras de um mundo fechado e dividido e construir uma civilização melhor do que aquela que recebemos.”
Essa comunicação segue aquele que poderíamos chamar de “método Emaús” (Lc 24,13-35): acompanhar com respeito, conversar, propor e não impor, falar com o próprio coração a ponto de fazer arder o coração alheio, não tanto pelas palavras que se diz (a explicação das Escrituras, conforme o relato do Evangelho), mas sim pelo gesto concreto e pelo testemunho (a partilha do pão) que abre os olhos para a realidade, permitindo reconhecê-la e transformá-la.
Para isso, primeiramente, é fundamental treinar-se na escuta. Trata-se de uma “escuta sem preconceitos, atenta e disponível”, de acordo com o papa. Isso requer saber esperar, ser paciente e renunciar a impor sobre o outro o nosso ponto de vista. Nesse sentido, poderíamos dizer que os principais objetos de trabalho de um comunicador, para além da caneta e do papel, do microfone e da câmera, do computador e do celular, são um estetoscópio e um esfigmomanômetro (mais popularmente conhecido como “medidor de pressão”) metafóricos, que permitam ouvir e sentir o palpitar da vida no coração humano. É somente depois dessa “medição” em forma de escuta que é possível oferecer um “diagnóstico” na forma de palavras.
Uma comunicação aberta e acolhedora envolve também “falar testemunhando a verdade no amor”, conforme Francisco. Trata-se de uma comunicação performática, poderíamos dizer, que não depende unicamente da verdade de seu conteúdo, mas comunica sua verdade pela forma, pelo estilo, pelo jeito de ser – indo muito além das informações e dos conteúdos em jogo. O pior risco da evangelização, pelo contrário, é justamente proclamar a verdade “sem amor, sem coração”, nas palavras do papa, liquidando, assim, a essência do Evangelho, o mandamento do amor encarnado por Jesus.
Diante de um período histórico marcado por polarizações e oposições, inclusive no interior da comunidade eclesial, o papa, então, apresenta “um verdadeiro antídoto contra a crueldade” na convivência social: a gentileza, que, segundo Francisco, não é uma mera questão de “etiqueta”. Trata-se de pôr em prática a mansidão, a humanidade e a predisposição a dialogar pacientemente com todos, especialmente com quem pensa o contrário. É “falar segundo o estilo de Deus, que se sustenta de proximidade, compaixão e ternura”.
Um dos exemplos mais “luminosos” dessa comunicação gentil e amorosa, segundo o pontífice, é São Francisco de Salles (1567-1623). O papa o define como “uma extraordinária testemunha do amor misericordioso de Deus”. Uma das convicções do santo era de que “basta amar bem para dizer bem”. Isso evidencia, segundo Francisco, que “a comunicação nunca deveria reduzir-se a um artifício – a uma estratégia de marketing”, mas deve ser reflexo da intimidade, “a superfície visível de um núcleo de amor invisível aos olhos”.
Esse “falar amável” também diz respeito ao âmbito jornalístico e midiático profissional, para que a comunicação não gere ódio nem leve ao confronto, mas ajude as pessoas a refletir calmamente e a decifrar com espírito crítico a realidade em que vivem. O desafio, particularmente dos profissionais da comunicação, segundo Francisco, é buscar e narrar a verdade com coragem e liberdade, rejeitando a tentação do sensacionalismo e da agressão. No dramático contexto de conflito global precisamos de comunicadores “comprometidos em favorecer um desarmamento integral e que se esforcem para desmantelar a psicose bélica que se aninha nos nossos corações”.
A necessidade de um falar gentil e afável diz respeito ainda à comunidade eclesial, igualmente marcada por polarizações e oposições. Daí o “sonho comunicacional” de Francisco:
“Sonho com uma comunicação eclesial que saiba deixar-se guiar pelo Espírito Santo, amável e ao mesmo tempo profética, que saiba encontrar novas formas e modalidades para o maravilhoso anúncio que é chamada a proclamar no terceiro milênio. Uma comunicação que coloque no centro a relação com Deus e com o próximo, especialmente o mais necessitado, e que saiba acender o fogo da fé em vez de preservar as cinzas de uma identidade autorreferencial. Uma comunicação cujas bases sejam a humildade no escutar e a parrésia no falar, que nunca separe a verdade da caridade.”
Essas poucas frases constituem não apenas um sonho, mas principalmente aquilo que a própria prática de Francisco foi mostrando ao longo desses 10 anos de pontificado: uma comunicação amável e profética, humilde e corajosa, focada na pessoa de Jesus e dos pobres. Uma bela e significativa síntese de seu “magistério comunicacional”.
Ao se falar de comunicação cordial em um contexto como o do Brasil, logo vem à mente aquilo que, em seu livro “Raízes do Brasil” (Cia. das Letras, 2014, 27ª ed.), Sérgio Buarque de Holanda chamava de “a contribuição brasileira para a civilização”: a própria cordialidade. Ou seja, “a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade” (p. 176).
Segundo ele, “no ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em vive consigo mesmo, em apoiar-se em si próprio em todas as circunstâncias da existência” (p. 177). Em suma, a cordialidade, continua o autor, é “expansão para com os outros”. Trata-se, portanto, de uma libertação do isolamento e do narcisismo, poderíamos dizer, ou, nas palavras do Papa Francisco, libertação da autorreferencialidade, levando-nos a “sair” de nós mesmos para ir ao encontro do outro.
Entretanto, Holanda reconhece que a ideia de “coração” não abrange apenas sentimentos positivos de concórdia e harmonia. Segundo ele, “a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração” (p. 240). Comentando essa conceituação de Holanda, Leonardo Boff acrescenta: “O brasileiro se orienta muito mais pelo coração do que pela razão. Do coração podem provir o amor e o ódio”. A partir disso, ele busca entender a irrupção de “sentimentos cordiais” nas redes sociais digitais no Brasil contemporâneo, particularmente em âmbito político-partidário, mediante declarações de entusiasmo e fanatismo, por um lado, e injúrias e calúnias, por outro, em níveis cada vez maiores de desrespeito mútuo, de falta de senso democrático e de convivência com as diferenças.
Boff vê aí os frutos de duas heranças que oneram a cidadania brasileira: a colonização e a escravidão. Ambas foram internalizadas culturalmente na forma de um dualismo perverso entre os “senhores” que mandam e os “servos” que obedecem, ou, do ponto de vista comunicacional, entre quem pode falar e quem deve calar, gerando discriminação e preconceito. “Essa estrutura subsiste na cabeça das pessoas e se tornou um código de interpretação da realidade e aparece claramente nas formas como as pessoas se tratam nas redes sociais”, continua o autor.
Por isso, afirma Boff, “urge buscar formas civilizadas da ‘cordialidade’ na qual predomine a vontade de cooperação em vista do bem comum, se respeite o legítimo espaço de uma oposição inteligente e se acolham as diferentes opções” sociais, políticas, culturais, religiosas etc. Se “o coração fala ao coração”, como lembra o papa, citando São Francisco de Salles, “somos aquilo que comunicamos” – para o bem e para o mal. Em uma comunicação que fala ao coração, o que está em jogo não é uma verdade conceitual, abstrata e desencarnada, mas sim relações humanas, concretas, encarnadas, chamadas a ser cada vez mais humanizadas e humanizantes.
Do ponto de vista da comunicação, portanto, é preciso superar uma visão lógico-racional e também tecnoinstrumentalista de seus processos, pois é “na razão cordial e sensível que se encontram a sensibilidade profunda para com os outros, os valores éticos e a espiritualidade. [...] A razão sozinha não dá conta de nossos problemas fundamentais [inclusive comunicativos], porque ela apenas vê, analisa e calcula. Será o coração que nos moverá para o cuidado, o respeito e o amor”, como afirmou Boff em entrevista à IHU On-Line.
Como já escrevi em outra oportunidade, se comunicar é construir sentidos sobre o mundo, o sentido só faz sentido se for sentido. Uma comunicação cordial busca justamente sentir os sentidos para fazer sentido. É uma comunicação que sente e também faz sentir, que é sensível e também sensibiliza, capaz de comunicar sentidos com sensibilidade.
Trata-se de um esforço para abandonar quimeras jornalístico-comunicacionais como “objetividade”, “parcialidade”, “isenção” e “neutralidade”, para devolver a “alma” aos processos comunicacionais, vencendo a anestesia diante da realidade com a estesia, a sensibilidade ética e estética, por meio de uma comunicação com emoção, empatia e compaixão, que nunca é apenas uma ação racional, mas também e principalmente relacional – e, portanto, cordial.
Uma perspectiva muito afim à cordialidade comunicacional proposta pelo Papa Francisco é apresentada por Adela Cortina, em um artigo intitulado “Ethica Cordis”. O reconhecimento de base é de que o vínculo, a relação, a comunicação são fundamentais para a vida: necessitamos dos outros para a nossa própria existência e crescimento. Nessa experiência de intersubjetividade, o vínculo (ligatio) gera uma obrigação (ob-ligatio), a responsabilidade ética pelo outro. A questão é como essa ética intersubjetiva se explicita e se encarna, particularmente do ponto de vista da comunicação.
Uma possibilidade debatida criticamente pela autora é a chamada “ética do discurso”, principalmente a partir de Habermas. Nessa perspectiva, o vínculo comunicativo é pensado de modo particular a partir de suas expressões lógico-racionais e discursivo-argumentativas. Tal “razão comunicativa”, segundo Habermas, permite que todas as vozes sociais sejam ouvidas e que todas as posições sejam consideradas igualmente, usando a linguagem e o discurso para expor os argumentos e debatê-los, sem a necessidade de recorrer à coerção e à violência. Segundo essa ética, impera a força do argumento, desde que pautado na verdade. A comunicação, portanto, torna-se uma forma fundamental de ação humana e social, a fim de alcançar um consenso e um entendimento mútuo sobre o que é certo ou errado, justo ou injusto.
Segundo tal “ética do discurso”, por se basear em trocas lógico-racionais e discursivo-argumentativas, um interlocutor válido é todo ser dotado de competência linguística, ou, nas palavras de Habermas, “os sujeitos capazes de linguagem e ação”, capazes de “um tipo de interação coordenada mediante atos de fala”. Em suma e em tese, apenas os seres humanos.
Mas nem todos, porém, já que as crianças de colo (os “infantes”, etimologicamente aqueles que não têm a capacidade de falar), as pessoas portadoras de deficiência física, psíquica e/ou mental, as pessoas em estado vegetativo e muitos idosos em estágio terminal, por exemplo, não apresentariam necessariamente tal competência, de acordo com essa leitura. Por outro lado, como tal ética do discurso se posicionaria perante “sujeitos capazes de linguagem e ação” de caráter tecnomaquínico, como uma inteligência artificial aos moldes do ChatGPT, que manifestam competências linguísticas que os capacitam a dialogar logicamente com os humanos?
Embora busque fomentar a escuta recíproca de todas as vozes sociais, portanto, a ética do discurso acaba gerando também excluídos: seres que simplesmente não interessam ou dos quais nos desvinculamos/desligamos ativa e deliberadamente, como afirma Cortina. Tal exclusão é intolerável, continua a autora, pois alimenta e se alimenta do “afã de abolir as diferenças que configuram identidades irrepetíveis” (p. 124, tradução nossa).
Do ponto de vista eclesial, um risco derivado dessa centralidade nos pressupostos lógico-racionais e discursivo-argumentativos é pensar a comunicação cristã como mera transmissão de informações e conteúdos doutrinais, ou seja, o gnosticismo denunciado por Francisco tanto na Evangelii gaudium quanto na Gaudete et exsultate. Segundo o pontífice, trata-se de uma fé pautada principalmente por uma série de raciocínios e conhecimentos que enclausuram a pessoa na “imanência da sua própria razão” (EG 94).
Vê-se isso nos ambientes ultracatólicos, que “concebem uma mente sem encarnação, incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros, engessada numa enciclopédia de abstrações” (GE 37). É uma comunicação cristã que, contraditoriamente aos próprios Evangelhos, também gera excluídos. Manifesta-se, assim, a tentação de traduzir a experiência cristã apenas em um “conjunto de especulações mentais, que acabam por nos afastar do frescor do Evangelho”, esquecendo-se de que “a verdadeira sabedoria cristã não se deve desligar da misericórdia para com o próximo” (GE 46).
Diante de tais limitações, afirma Cortina, “a ética do discurso não desdobra todas as virtualidades do vínculo comunicativo, mas o reduz àquilo que poderíamos chamar de vínculo lógico-discursivo, quando, na verdade, a comunicação contém muitas outras dimensões sem as quais não tem êxito” (p. 117). Em seu livro “Ética de la razón cordial” (Ed. Nobel, 2007), no qual ela aprofunda essa reflexão, Cortina defende que “quem entra em comunicação com outro aceitou um conjunto de dimensões muito mais rico do que aquele que se resume na capacidade de argumentar seguindo regras” – o que até o ChatGPT consegue fazer, poderíamos acrescentar. “A sintonia requerida para a comunicação – continua ela – contém muito mais dimensões do que a capacidade argumentativa. São muito mais delicadas as entretelas do coração” (p. 195, tradução nossa).
A partir disso, a autora defende uma “ética da razão cordial” (ethica cordis), que busca dar conta justamente dessas outras dimensões da comunicação. “Conhecemos a verdade e a justiça não só pela argumentação, mas também pelo coração” (p. 125), afirma Cortina parafraseando Pascal. A ethica cordis revela que é fundamental a dimensão cordial e compassiva, “sem a qual não é possível a comunicação” (p. 124). Ela parte da necessidade de um reconhecimento mútuo – cordial e compassivo – dos participantes de um mesmo processo comunicativo. Trata-se da “capacidade de com-padecer a partir do reconhecimento dos que são carne da própria carne e ossos dos próprios ossos” (p. 123), da “capacidade de sofrer e gozar com outros” (p. 125, tradução nossa).
Cortina compreende que o reconhecimento recíproco e cordial com os demais seres humanos é um gesto não apenas de compaixão, mas principalmente lógico. Mas a autora levanta ainda a possibilidade de uma “comunidade ética com não humanos” ou daquilo que ela chama de “ecoética, preocupada com o espólio da ecosfera e da Terra em seu conjunto”. Ela entende que, mesmo que possa não haver necessariamente um “reconhecimento recíproco” propriamente dito entre os seres humanos e não humanos, há sim um “apreço” pelo valor inerente de cada ser, o que gera uma obrigação de responsabilidade. Na Laudato si’, Francisco também defende que as diferentes espécies “possuem um valor em si mesmas” (n. 33).
A possibilidade de construção de tal comunidade ética com não humanos passa também por processos comunicativos. Vice-versa, é impossível pensar a comunicação humana e social desvinculada de toda a rede de relações que a torna possível. Os humanos só se comunicam graças a toda uma ampla e complexa teia de seres e elementos não humanos, a começar pelas tecnologias que caracterizam os processos comunicacionais, da tinta das pinturas rupestres aos chips dos celulares. Tais tecnologias, por sua vez, dependem de inúmeros elementos minerais para sua composição e existência. Estes elementos, além disso, formam o habitat que torna possível toda a vida vegetal e animal do planeta, incluindo, obviamente, o próprio ser humano.
Como afirma Francisco na Laudato si’, “tudo está estreitamente interligado no mundo” (n. 16). “Nós mesmos somos terra. O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta” (LS 2). Portanto, não há vida no planeta sem processos comunicativos que vão muito além das dimensões lógico-racionais e linguístico-discursivos. E não há comunicação humana e social sem processos comunicativos com a própria vida pulsante do planeta. Isto é, há uma (ob)ligatio profunda, um vínculo relacional, comunicacional e vital entre todos os seres e elementos que compõem a nossa “casa comum”.
Por isso, para que uma ethica cordis seja possível, é preciso uma communicatio cordis, a partir do reconhecimento do valor inerente de todo “outro” com quem nos relacionamos: se tem vida, gera vida ou possibilita a vida, é um ser valioso – e um sujeito com quem não apenas podemos, mas também precisamos e até devemos eticamente nos comunicar, gerando uma (ob)ligatio fundamental à conservação recíproca da própria vida.
A questão, então, é de que modo correspondemos à comunicabilidade da Terra e de todos os seres e elementos não humanos. Em tempos de comunicação “não viva” e computacional – por meio de chips, processadores e sistemas de inteligência artificial – e de comunicação geradora de morte e exclusão – por meio da desinformação e da má informação – Francisco, em sua mensagem, pede justamente uma comunicação cordial, palpitante, viva e vivificante, que gere con-córdia entre todos os seres e elementos que tecem a teia da vida. Poderíamos chamá-la de uma biocomunicação, uma comunicação biofílica, ecológica, integral, que ressignifique as relações que compõem a nossa “casa comum”.
Só assim podemos entender também o valor e o significado da comunicação “coração a coração” entre São Francisco e o “irmão lobo”, por exemplo. O santo de Assis, afirma o papa na Laudato si’, “entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar às flores” (n. 11). E podemos ainda lembrar a comunicação “coração a coração” entre Santo Antônio e os “irmãos peixes”, entre São Roque e o “irmão cão”, entre Santa Brígida e as “irmãs vacas”, entre São Martinho de Lima e os “irmãos cães, gatos, ratos”, ou ainda entre Sidrac, Misac e Abdênago e os “irmãos lua e sol, astros e estrelas, chuvas e orvalhos, brisas e ventos, fogo e calor, frio e ardor, orvalhos e garoas” (Daniel 3), dentre inúmeros outros seres e elementos, todos convidados a um diálogo santo e santificante.
Essa comunicação civilizada, ética, ecológica e integralmente cordial é capaz de escutar e sentir a emergência e a ressurgência da vida, onde quer que seja, graças a uma sensibilidade vital a todas as manifestações da vida. Inclusive no meio do tédio e da repugnância da não vida, como no famoso poema de Carlos Drummond de Andrade:
“Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.”
(“A flor e a náusea”, em “A rosa do povo”, 1945)
Na sensibilidade místico-comunicacional que inspira a contemplação de uma simples flor que nasce no meio do asfalto, também se manifesta “o milagre do encontro, que nos faz olhar uns para os outros com compaixão, acolhendo as fragilidades recíprocas com respeito”, como afirma Francisco. Entre esses “outros” e suas “fragilidades”, está principalmente a “nossa irmã, a mãe terra [...] oprimida e devastada [...] por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou” (LS 1-2). Como afirma o papa, “por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos o direito de fazer isso” (LS 33).
Por isso, na oração que encerra a mensagem deste ano, Francisco pede a Deus uma “comunicação livre, limpa e cordial (...) para nos reconhecermos como irmãos e irmãs e desativarmos a hostilidade que divide [até] nos sentirmos guardiões uns dos outros” – sejam eles humanos ou não humanos.
Outra comunicação é necessária e urgente, a fim de que a vida – toda a vida – continue sendo possível.
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Communicatio cordis: a relação como condição de possibilidade para a vida. Artigo de Moisés Sbardelotto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU