Uma das formas de entender esses processos, segundo o jornalista, é observar o alumínio extraído da região e entregue a grandes multinacionais que fazem o beneficiamento
Se até o século XX a região da Amazônia brasileira era vista como um território a ser colonizado, os ares do século XXI mudaram o rumo e se foi vendo que colonizar era uma prática, violadora direitos humanos e direitos da Terra, a ser abandonada e combatida. Muitas coisas mudaram desde então, mas será que as transformações têm sido efetivas? Para o jornalista Lúcio Flávio Pinto, não. Basta ver o caso do alumínio da Amazônia, que sai destas terras desde a década de 1970 e é entregue quase em estado bruto para multinacionais, inicialmente japonesas, que fazem todo o beneficiamento e ficam com a maior fatia dos lucros. “Foi um projeto extremamente vantajoso para os japoneses. Mas os brasileiros não conseguiram implantar um polo metalúrgico para impedir a exportação de lingotes, o primeiro artefato da cadeia produtiva. São quase três décadas de alumínio primário, de baixo valor agregado, indo para o Japão”, conta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Lúcio Flávio revela como, especialmente a partir dos casos do alumínio, a Amazônia deixa para trás um passado de colonialismo para vivenciar espoliações vindas com o processo de internacionalização. Mas não pense que o jornalista, que vive há anos no contexto amazônico, é daqueles reacionários que querem fechar fronteiras e hastear bandeiras contra o internacionalismo. “A Amazônia é a região mais internacionalizada do Brasil. E continua a ser, em escala cada vez maior. Por isso, a internacionalização deveria ser um tema vital para o debate. Sem xenofobia, estreiteza nacionalista, preconceito e – o principal – com conhecimento de causa”, reflete.
Para ele, é preciso “buscar a origem dos grandes empreendimentos implantados na região, reconstituindo a sua engenharia e a sua abordagem”. E sem deslumbres, como se vê agora com o caso da China. Na visão do entrevistado, corremos o risco de salvar nossas riquezas naturais da sanha dos norte-americanos, para entregar de bandeja para chineses. “A China age como uma grande empresa no comércio internacional, só que empresa estatal e de escala enorme. O país está em posição cada vez mais forte na infraestrutura e logística brasileira”, adverte.
Crítico da postura de governos petistas, que se lastrearam num desenvolvimentismo que deixava de lado a diversidade das formas de vida na Amazônia, Lúcio Flávio adverte: “a esquerda primitiva (ou peripatética) continua a acreditar que regiões e gentes primitivas só podem evoluir sob a modernização das relações de produção. Modernização, para essa esquerda de catecismo ou de aprendizado oral, significa estrada, hidrelétrica, fábrica, campos de plantio, produto de aceitação no mercado”. Para ele, essa realidade também precisa ser transformada.
Lúcio Flávio Pinto (Foto: Arquivo pessoal)
Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, é editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém, Pará, desde 1987. Também é autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra amazônica, jornalismo na linha de tiro e contra o poder (Edição Jornal Pessoal, 2005). Pela sua atuação contra as injustiças sociais, recebeu, em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005, recebeu o prêmio anual do Comittee for Journalists Protection, em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Também é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014.
IHU – Em artigo publicado recentemente, o senhor aponta que vivemos o frustrante desfecho de “meio século de luta para montar um polo de alumínio na Amazônia”. Qual a importância desse polo e por que a luta pela instalação dele parece ter fracassado?
Lúcio Flávio Pinto – O mundo se voltou definitivamente para a Amazônia a partir do primeiro choque do petróleo, em 1973, em busca de produtos intensivos em alumínio. O país mais atingido pela súbita elevação do preço do petróleo foi o Japão. Inviabilizada a produção de alumínio em seu próprio território, o Japão planejou o maior processo de transferência industrial de todos os tempos. E implantou um polo de alumina e alumínio a 50 quilômetros de Belém/PA.
Em princípio, esperava extrair daí 30% das suas necessidades do metal. Depois reduziu para a metade, 15%. Ainda assim, era a maior e melhor fábrica japonesa, embora a 20 mil quilômetros do Japão. E com um custo de extração mais barato do que conseguiria no próprio Japão. Foi um projeto extremamente vantajoso para os japoneses. Mas os brasileiros não conseguiram implantar um polo metalúrgico para impedir a exportação de lingotes, o primeiro artefato da cadeia produtiva. São quase três décadas de alumínio primário, de baixo valor agregado, indo para o Japão.
O golpe foi aprofundado quando a Vale, que era a maior acionista das fábricas de alumina e alumínio, vendeu sua participação para a multinacional norueguesa Norsk Hydro. A privatização do foi arrematada pelo ingresso, agora, da multinacional suíça Glencore. Depois da privatização, a desnacionalização. Esquema completamente colonial.
IHU – Como podemos compreender esse processo de desnacionalização do beneficiamento de bauxita?
Lúcio Flávio Pinto – Isso se dá com uma iniciativa das maiores empresas do setor que buscava completar a sua integralização, da bauxita aos produtos finais, protegendo-se assim da flutuação que sempre têm as commodities, principalmente o minério, com uma bolsa especializada em Londres, e de eventuais atropelos políticos. Além de criar um caixa único de todas as operações para melhor controle do processo produtivo e do fluxo de receita, despesa e investimento.
IHU – Que relações podemos estabelecer entre essa desnacionalização do beneficiamento de bauxita com os acordos comerciais com países da Ásia, especialmente China e Japão?
Lúcio Flávio Pinto – A visão política que se tem da China, principalmente a esquerda, impede que ela apareça com a sua face econômica. A China age como uma grande empresa no comércio internacional, só que empresa estatal e de escala enorme. O país está em posição cada vez mais forte na infraestrutura e logística brasileira.
Sua mais recente investida, de uma semana atrás, foi avançar no setor de energia elétrica. Indo além da posse de extensas linhas de transmissão de energia e de usinas hidrelétricas, ela conseguiu colocar um executivo da sua principal empresa no Brasil, a Sate Grid, na direção do Operador Nacional do Sistema, que é a agência de controle administrativo e técnico do setor. O objetivo é o mesmo do Japão de 50 anos atrás: garantir que as matérias-primas cheguem mais rapidamente e mais baratas aos portos de exportação – e à China, naturalmente.
IHU – Se hoje falamos em perdas da indústria nacional do alumínio, no passado já sofremos com a privatização de toda essa cadeia. O senhor poderia recuperar como foi todo esse processo e suas consequências para a região amazônica?
Lúcio Flávio Pinto – A Amazônia é a região mais internacionalizada do Brasil. E continua a ser, em escala cada vez maior. Por isso, a internacionalização deveria ser um tema vital para o debate. Sem xenofobia, estreiteza nacionalista, preconceito e – o principal – com conhecimento de causa. É preciso buscar a origem dos grandes empreendimentos implantados na região, reconstituindo a sua engenharia e a sua abordagem. Só assim conseguiremos nos tornar interlocutores competentes, em condições de traçar um rumo melhor do que o que até aqui tivemos.
O momento-chave foi justamente a nova divisão internacional do petróleo, que se seguiu ao choque de preços de 1973. De lá para cá, só nocaute; perdemos os embates. Parecia que as circunstâncias da época nos iam favorecer. O cartel das sete irmãs ameaçado, inclusive nos países nos quais têm suas sedes, e o maior comprador de alumínio do mundo tendo que fechar as suas fábricas de alumínio, inviabilizadas pelo custo da energia. Mas todos esses atores se reorganizaram e nós ficamos vendo a banda passar. Porque, sem conhecimento e informação, não vimos a banda (ou o trem, no caso dos minérios) passar.
IHU – O senhor vive há bastante tempo na região amazônica e escreve sobre essa realidade. Como analisa as transformações nessa região nos últimos anos?
Lúcio Flávio Pinto – Costumo imitar o coelho da piada, que diz para a parceira depois de um momento de amor: vai ser bom, não foi? É esta a sensação que tenho, aos 73 anos, 57 deles dedicados a tentar acompanhar, entender e projetar um futuro para a Amazônia. Fica parecendo que o próximo ano será pior do que o que passou, mesmo quando o ano vivido tenha sido ruim. Ou que a melhora de curto prazo não se manterá.
Considerando como marco da história do nosso tempo na Amazônia 1973, quando ela foi engatada no comércio mundial como vendedora de commodities e fornecedora de moeda forte ao tesouro nacional, a linha constante nesses 50 anos, num sobe e desce de crescimento exponencial e depressão, é descendente. A Amazônia gera cada vez mais dólares para o país, mas o seu povo vive mal e ela perde sua grande riqueza, a rara combinação de água, floresta e sol. Perde a sua razão de ser Amazônia.
IHU – Em que medida o senhor percebe uma mudança de postura do Estado brasileiro a partir do atual governo com relação à Amazônia?
Lúcio Flávio Pinto – Os governos do PT, com Lula e Dilma, foram tão “desenvolvimentistas” e danosos para a Amazônia (que, na verdade, desconhecem, como quase todos os brasileiros) quanto os seus antecessores. Uns piores, outros nem tanto, raros com melhorias, excetuado Bolsonaro, que aperfeiçoou o caos e o dilúvio.
Depois de Tucuruí, obra da ditadura militar, as demais grandes hidrelétricas (Belo Monte, Jirau, Santo Antônio) foram construídas por eles. A esquerda primitiva (ou peripatética) continua a acreditar que regiões e gentes primitivas só podem evoluir sob a modernização das relações de produção. Não joguem esse bagre no meu colo, reagiu Lula quando se agitava o debate sobre os efeitos danosos das hidrelétricas do rio Madeira.
Modernização, para essa esquerda de catecismo ou de aprendizado oral, significa estrada, hidrelétrica, fábrica, campos de plantio, produto de aceitação no mercado. Só se está conseguindo esse objetivo transformando, deformando e destruindo a Amazônia, apesar de toda a boa e emocionante retórica em contrário.
IHU – Como o senhor descreve a realidade do povo da região amazônica, tanto de quem vive junto da floresta como nas cidades?
Lúcio Flávio Pinto – O componente comum nas duas realidades é a violência. No interior, resultante da disputa pelo domínio da terra, pelas causas da migração compulsória, a ausência de um poder capaz de arbitrar com competência e justiça os conflitos e uma ação pública monopolizada pelos mais poderosos.
Nas cidades, que se multiplicam e se adensam, têm as marcas de todos os centros urbanos no Brasil, de uma violência organizada para fazer prevalecer a criminalidade, agravada pelo privilégio concedido aos grandes empreendimentos econômicos, intensivos em capital e tecnologia e poupadores de mão de obra. Por isso, os serviços e a administração pública são os setores mais fortes, o que estimula a economia invisível.
IHU – Segundo dados recentes do Banco Mundial, manter a floresta amazônica em pé rende US$ 317 bilhões por ano – o equivalente a R$ 1,5 trilhão –, sete vezes mais com o lucro da exploração econômica da região. Por que, apesar disso, preservar a floresta é algo ainda difícil para o Brasil? A incapacidade de compreender esses números pode ter quais consequências para o Brasil em termos internacionais?
Lúcio Flávio Pinto – Tanto o Zé da Silva, que vem para a Amazônia em busca de uma atividade para a sua subsistência, tendo acesso apenas à terra como fator de produção, quanto a Sociedade Anônima, na escala respectiva de ação e intervenção, de um Davi (sem a parceria divina) e um Golias (com sua retaguarda armada), não conhecem a Amazônia, não têm tempo nem interesse para conhecê-la. Penetram nas áreas com uma ferramenta: derrubar árvores para em seu lugar formar pastos, lavoura, mineração, estradas, hidrelétricas. Ou seja: eliminar o que para eles é entrave e problema, a floresta densa, compacta, multifacetada, hostil, temida. Refazer a paisagem para ser uma reprodução da paisagem de origem e se adequar ao conhecimento que o imigrante tem de si e de sua expectativa. As informações geradas pela ciência não chegam ou chegam pouco ao cenário da ação, à “jungle”.
IHU – Um fato inusitado recente revela como as atenções do mundo estão voltadas para a Amazônia: durante sua coroação, o rei Charles III, do Reino Unido, teria dito ao presidente Lula para que cuide da Amazônia. Qual sua leitura desse fato? O que isto revela sobre a emergência de o Brasil assumir o protagonismo global na preservação da Amazônia e no debate internacional acerca das questões ambientais?
Lúcio Flávio Pinto – Já vi algumas vezes essas irrupções de interesse. É claro que agora a escala é muito maior e as mudanças climáticas, dentre outros fatores ambientais agravados, dá um caráter mais sério e permanente a esse interesse e preocupação pela Amazônia. Mas não acredito que o Brasil assume a liderança desse processo.
A Amazônia não recebe mais do que 2% da verba nacional de ciência e tecnologia. Com esse investimento, o Brasil continuará caudatário dos países de ponta na geração de conhecimento e informações. Meio século atrás, participei de um seminário com compradores de madeira amazônica, principalmente ingleses. Eles só queriam saber por quanto a madeira chegava aos seus portos. O rei Charles esteve na Amazônia quando ainda era príncipe. Foi um fato interessante. Mas nada mudou na sua essência.
IHU – Pelo que tem visto e vivido na região, qual o futuro da Amazônia num curto e médio prazo?
Lúcio Flávio Pinto – Lord Keynes, o principal artífice da era econômica que está chegando ao fim, com a queda de braço entre os Estados Unidos e a China, disse que a longo prazo todos estaremos mortos. Uso a frase como inspiração para uma adaptação: se escaparmos aos paulistas (paranaenses, gaúchos...), não escaparemos aos americanos (japoneses, chineses...).
IHU – Preservar a floresta e assegurar a subsistência dos povos amazônicos passa essencialmente pelo quê?
Lúcio Flávio Pinto – Por um jeito político e administrativo de preservar a integridade do ciclo luz-água-floresta.