29 Abril 2023
Raciocinar com base nos princípios petrino e mariano ou com base na “sacramentalidade católica” parece um caminho pouco eficaz para abordar a questão da ordenação, porque deduz todas as conclusões a partir de um princípio de “hierarquia perene dos sexos” que se apresenta muito menos como um dado revelado do que como um preconceito infundado.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 26-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não há dúvida de que, entre os fenômenos mais interessantes da teologia do último século, está uma grande reformulação do termo “sacramento”, que não só foi estendido para designar, além dos sete sacramentos, também e sobretudo Cristo e a Igreja (respectivamente como “sacramento originário” e como “sacramento fundamental”), mas também pretendeu caracterizar, de forma imediata, o catolicismo como tal. Até se chegar à elaboração de uma nova terminologia, que se estrutura na “defesa da sacramentalidade” como figura inconfundível da tradição católica, não só no que diz respeito ao protestantismo (liberal), mas também no que diz respeito à cultura pós-moderna.
Ambas as correntes teológicas e culturais seriam incompatíveis com o catolicismo, porque negariam a sacramentalidade: por isso, toda possibilidade de diálogo e de encontro com elas estaria excluída desde o início. Nesse sentido, a “sacramentalidade” seria a verdadeira garantia contra toda forma de “modernismo”.
Essa tese, que é afirmada de forma drástica desde as primeiras páginas do livro de K. H. Menke, “Sacramentalità. Essenza e ferite del cattolicesimo” (Bréscia: Queriniana, 2015), parece exemplar ao querer defender uma “teologia católica” contra as leituras funcionalistas, mas, para fazer isso, é obrigada a funcionalizar o sacramento, transformando-o em uma “cultura alternativa”, imunizada da cultura.
Para Menke, de fato, as condições da “sacramentalidade” repousam sobre uma antropologia unívoca e sobre uma ontologia unívoca, que constituem seus pressupostos. Por isso, o pensamento sacramental e o pensamento pós-moderno se comportam como dois opostos e excluem-se mutuamente, “porque o pensamento pós-moderno não consegue conservar a distinção antropológica entre eu e não eu, e a distinção ontológica entre um plano indicativo e um plano indicado, que são pressupostas pelo pensamento sacramental” (p. 321).
Desse modo, com um truque bastante elementar, a sacramentalidade torna-se funcional para a defesa de uma estrutura antropológica e ontológica clássica. Só pode haver sacramentalidade e, portanto, catolicismo se o ser humano e o mundo forem compreendidos nos termos de uma antropologia das faculdades e de uma ontologia metafísica. Aquilo que contrasta com esse modelo não é “diferente”, mas “errôneo” e deve ser contestado na raiz.
A argumentação apologética que comanda o discurso sobre a sacramentalidade parece se basear na sacramentária, na eclesiologia e na cristologia. Na realidade, trata-se de um modo drástico e também bastante grosseiro de afirmar diretamente uma antropologia e uma ontologia, sem nenhuma possibilidade de escutar uma palavra diferente da tradição de fé.
A elaboração apologética da categoria de “sacramentalidade” – como aspiração legítima de uma teologia sistemática – abre imediatamente, no livro de Menke, um espaço de argumentação diferente para excluir toda possibilidade de “ordenar” as mulheres. Como se sabe, até agora a forma da argumentação percorreu três caminhos:
- o caminho da falta de autoridade antropológica: a mulher não pode representar Cristo porque é naturalmente marcada pela “sujeição” e pela “inferioridade”;
- o caminho da falta de autoridade cristológica, porque Cristo é homem e não pode ser representado analogicamente por uma mulher;
- o caminho da falta de autoridade eclesial, porque a Igreja não tem o poder de modificar uma tradição que nunca mudou.
Em relação a essas três formas de argumentação, o caminho da “sacramentalidade” indicaria uma “lógica de fundo”, na qual, sem nunca utilizar diretamente os argumentos antropológicos clássicos de exclusão da autoridade feminina, obtém-se o mesmo resultado com base em uma “sacramentalidade” não muito bem esclarecida. Que teria, no entanto, um impacto diferente do que a “teologia da autoridade” sobre a qual o magistério parece ter se estabelecido depois da declaração Inter insigniores e depois da carta apostólica Ordinatio sacerdotalis.
Na realidade, esse uso do termo “sacramentalidade” parece estar marcado por um limite intrínseco: ele repropõe, mediante uma sacralização nostálgica, os pressupostos e os preconceitos antropológicos do passado, transformando-os em “condições da catolicidade”. Não há “sinais dos tempos”, mas apenas “erros dos tempos”, contra os quais só se permanece católico se eles forem condenados como “negadores de uma sacramentalidade” identificada com as compreensões do passado.
Na clássica lista dos “impedimentos à ordenação”, a teologia escolástica examina quais sujeitos são sem autoridade e, portanto, incapazes de mediar o Senhor, princípio de toda autoridade.
A lista, que inclui os menores, os escravos, os assassinos, os filhos naturais e os deficientes, começa rigorosamente com o caso “mais natural” de “falta de autoridade”, ou seja, a mulher. Esse horizonte cultural, que não consegue atribuir à mulher a dignidade de autoridade pública, muda com o século XIX.
Ao se tentar fazê-lo sobreviver, é preciso usar outras argumentações. A inércia do modelo antigo pode ser produzida por uma “negação da possibilidade de mudá-la” (e essa é a solução adotada pelo magistério) ou se pode recorrer a outros níveis de argumentação, que, no entanto, deveriam ser persuasivos com base em “outras lógicas”.
Raciocinar com base nos dois princípios (petrino e mariano) ou com base na “sacramentalidade católica” parece um caminho pouco eficaz para abordar a questão. Porque, tanto no primeiro quanto no segundo casos, uma ampla articulação argumentativa, que surgiu com intenções apologéticas, parece deduzir todas as conclusões a partir de um princípio de “hierarquia perene dos sexos” que se apresenta muito menos como um dado revelado do que como um preconceito infundado.
Na generalização de um “princípio de sacramentalidade”, escondem-se muitas vezes preconceitos indiscutidos. Periculum latet in generalibus.
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A sacramentalidade como novo impedimento à ordenação? As feridas abertas de uma teologia nostálgica. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU