12 Abril 2023
A renúncia de Hans Zollner da comissão papal de tutela aos menos nos diz muito sobre a luta do Vaticano contra os abusos sexuais.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix International, 06-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O processo sinodal que o Papa Francisco lançou para tornar a Igreja Católica mais transparente e credível está entrando em sua fase crucial. Mas seu pontificado atualmente corre o risco de perder força em sua luta contra o abuso sexual e na promoção de uma nova cultura de responsabilização. Esse é o resultado da recente renúncia de Hans Zollner, seu coirmão jesuíta, da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores.
O padre alemão é teólogo e psicólogo. Também é um dos principais especialistas em salvaguarda e uma das figuras mais respeitadas na resposta da Igreja à crise dos abusos sexuais clericais. Isso se deve em grande parte ao trabalho do Instituto de Antropologia – Estudos Interdisciplinares sobre a Dignidade Humana e o Cuidado (antigo Centro de Proteção dos Menores), que ele dirige na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
Zollner não é o único a apontar problemas relativos à Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores nos últimos meses. Francisco criou a comissão em 2014 e, em setembro passado, nomeou 10 novos membros para o órgão. Mas, nos primeiros oito anos de existência, a Pontifícia Comissão estava em uma espécie de limbo institucional. Isso mudou em 22 de março, quando o papa emitiu a constituição apostólica Praedicate Evangelium e tornou a comissão parte do Dicastério para a Doutrina da Fé. No entanto, ainda não está claro o que isso significará para a eficácia e a autoridade da comissão dentro da Cúria Romana. Na realidade, agora há mais dúvidas sobre isso do que há um ano.
O propósito e a estratégia da Pontifícia Comissão permanecem obscuros, porque o próprio papel da Cúria Romana, de outras instituições vaticanas e do sistema jurídico em si mesmo permanecem obscuros no atual pontificado. A Igreja Católica, de fato, acaba de começar a lidar com a crise dos abusos do ponto de vista magisterial, teológico e jurídico. Por mais frustrante ou chocante que isso possa parecer, ainda estamos nos primeiros dias.
A crise dos abusos sexuais deve ser vista como uma das diversas mudanças cataclísmicas epocais na história da Igreja. Para dar apenas um exemplo, os tempos do evento mais devastador da história do papado moderno, o colapso dos Estados Papais no século XIX, que culminou com a perda de Roma para o reino italiano em 1870, havia mais de 15 diferentes tribunais vaticanos exercendo a jurisdição da Igreja. Havia também as cortes de justiça em nível local. Não é de surpreender que, durante seu longo pontificado (1846-1878), Pio IX tenha tido que fazer da reforma do sistema de justiça criminal uma grande prioridade.
A resposta à perda dos Estados Papais levou décadas para tomar forma, entre a reforma da Cúria em 1908 e o Concílio Vaticano II (1962-1965). Também levará décadas para lidar com a crise dos abusos sexuais. A reação da Igreja institucional sempre foi lenta, porque segue uma lógica de acumulação e de sobreposição de novas estruturas sobre velhas – não de substituição de velhas estruturas por outras inteiramente novas.
A reação da Igreja parece ainda mais lenta agora devido à submissão de todas as instituições a uma midiatização que ajuda a dar voz às vítimas. Isso gerou efeitos diversos sobre os esforços daqueles que tentam provocar mudanças.
Além disso, a crise dos abusos colocou uma enorme pressão e tensão no sistema legal da Igreja Católica. Levantou uma série de novas questões. Por exemplo, como equilibrar a presunção de inocência com a fúria pública sobre os crimes hediondos de abuso sexual, especialmente de menores; como exercer a autoridade papal para responsabilizar os bispos e, ao mesmo tempo, respeitar o fato de que, do ponto de vista sacramental, o papa e os bispos são pares, e os bispos e cardeais “renunciados” ainda são membros do colégio episcopal.
Esses são problemas enormes que estão mudando os sistemas delicados que a Igreja continuamente calibrou ao longo dos séculos. São problemas que também estão desestabilizando a eclesiologia do Vaticano II. Isso seria um fardo enorme para qualquer papa – e Francisco herdou esse problema de seus antecessores.
Mas, além disso, há algumas escolhas que o papa jesuíta de 86 anos fez que devem ser analisadas pelo modo como lidaram legal e “politicamente” com a crise dos abusos. Sua resposta ao escândalo aumentou a taxa de papalismo na Igreja Católica às custas de outros órgãos colegiais que deveriam ajudar o papa em seu ministério.
Francisco quer ter uma Igreja sinodal, mas a natureza colegial do trabalho da Cúria Romana e do Colégio dos Cardeais não melhorou nos últimos 10 anos. Como escreveu o cardeal Walter Kasper no prefácio de um livro publicado recentemente por dom Giuseppe Sciacca, advogado canônico e ex-secretário da Assinatura Apostólica, “o processo de remoção de bispos do cargo é um assunto sério que a Igreja primitiva conduzia de modo sinodal; não pode ser um ato administrativo, mas pressupõe uma ação colegial”.
Não importa o que diga a constituição do Vaticano II sobre a Igreja (Lumen gentium), os bispos agora parecem cada vez mais como gerentes de franquias trabalhando em nome (ou por delegação) da Sé Apostólica do que verdadeiros pastores em virtude da sacramentalidade de sua ordenação episcopal. Eles também parecem tragicamente enfraquecidos em sua figura como pais de seu povo e amigos de seus padres.
No ordenamento jurídico da Igreja, ao longo dos últimos anos também houve uma reviravolta com a submissão da Cúria Romana à jurisdição do Estado do Vaticano – uma espécie de inversão naquela relação entre o Estado da Cidade do Vaticano em relação à Sé Apostólica: o Estado do Vaticano deveria ser apenas um servo, e não o mestre, da Sé Apostólica.
Algumas dessas incertezas na atividade legislativa do pontificado de Francisco são visíveis na situação que levou Hans Zollner a renunciar. A Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores não tem um mandato e uma missão bem definidos no texto da Praedicate Evangelium (art. 78). Mais de um ano após sua publicação, não há nenhuma clareza sobre a relação entre a Pontifícia Comissão e o Dicastério para a Doutrina da Fé.
Em sua declaração explicando as razões de sua renúncia, Zollner disse que não tinha conhecimento de “quaisquer regulamentos que regem a relação entre a comissão e o Dicastério para a Doutrina da Fé”. Não há nenhuma clareza sobre a relação entre a Pontifícia Comissão e o cardeal-prefeito do escritório doutrinal nem sobre a relação entre o presidente da Pontifícia Comissão e seu secretário.
A Praedicate Evangelium não pode resolver por decreto um problema que era evidente desde o início. Marie Collins renunciou à comissão em 2017 devido àquilo que ela chamou de “resistência” do dicastério doutrinal ao seu trabalho. Ainda não está claro como a comissão e o dicastério trabalharão juntos. Surgem ainda novos problemas. Outros ex-membros proeminentes da Pontifícia Comissão, como a baronesa Hollins e a irmã Jane Bertelsen, tornaram públicas suas preocupações sobre o mandato da comissão. Elas também questionaram a pertinência de colocar a comissão dentro do escritório doutrinal do Vaticano.
No entanto, em vez de lidar com essas preocupações prementes, a Pontifícia Comissão está agora assumindo novas – e mais do que assustadoras – tarefas. O presidente da comissão, cardeal Sean O’Malley, revelou recentemente uma delas ao citar uma mensagem do papa (datada de 8 de março) aos participantes do 2º Congresso Latino-Americano sobre Prevenção de Abusos, realizado em Assunção, no Paraguai.
“Ele [Francisco] lembrou que a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores tem o papel de supervisionar a adequada implementação do motu proprio Vos estis lux mundi, para que as pessoas abusadas tenham caminhos claros e acessíveis para buscar justiça”, disse O’Malley.
Mas, até agora, a Pontifícia Comissão se recusou a comentar sobre casos individuais, como o do cardeal Jean-Pierre Ricard, de 78 anos. O agora arcebispo emérito de Bordeaux, na França, era e ainda parece ser membro do próprio Dicastério para a Doutrina da Fé do qual a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores faz parte. Ele admitiu em novembro de 2022 que cometeu atos “repreensíveis” de natureza sexual contra uma menina de 14 anos, cerca de 35 anos antes (Ricard revelou isso depois que o caso prescreveu, de acordo com o código penal francês.)
Mais importante ainda, os canonistas têm dúvidas sobre a competência e a autoridade da Pontifícia Comissão para “supervisionar” a implementação do Vos estis lux munid para toda a Igreja, sem falar no fato de que isso parece ter criado um caos jurídico maior.
Isso expõe a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores a um tipo de responsabilidade legal, potencialmente por parte de qualquer pessoa no mundo, que não existia antes. Não há dúvida de que o Papa Francisco elevou a conscientização em toda a Igreja sobre a praga dos abusos sexuais. E tentou implementar ousadas reformas institucionais e legais.
O cardeal O’Malley também trouxe credibilidade eclesiástica aos esforços de reforma de Francisco e, em momentos importantes, ajudou vigorosamente o papa a ajustar sua mensagem (como durante a viagem papal ao Chile em 2018).
Mas, neste momento, está claro que esses esforços precisam de correções. O “patriotismo papal” que fez muitos católicos defenderem Francisco dos ataques sem precedentes contra sua legitimidade (incluindo uma tentativa de derrubá-lo com um uso instrumental do caso do ex-cardeal Theodore McCarrick) não pode ignorar as inconsistências legais e institucionais que a resposta do Vaticano à crise dos abusos ainda evidencia.
O papado vive e morre agora por meio de eventos públicos e midiáticos, mas a Igreja também precisa de uma abordagem sistemática e consistente do papel da lei e de suas instituições.
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Iniciativas de Francisco para enfrentar a crise dos abusos sexuais clericais precisam de correções. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU