05 Abril 2023
"Precisamos nos lembrar dela para aprender como nos aproximamos do corpo de Deus, da cruz e ressurreição do Filho. Reatemos o fio dessa memória dela, com tudo o que significa para Jesus, Deus e o Evangelho; vamos em busca da bela obra de ternura, que está além de qualquer cálculo e de qualquer preceito religioso: porque onde está, aí está também o Senhor – o seu corpo entre a Sexta-feira Santa e a Páscoa da Ressurreição", escreve Marcello Neri, teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 02-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depois, os príncipes dos sacerdotes, e os escribas, e os anciãos do povo reuniram-se na sala do sumo sacerdote, o qual se chamava Caifás. E consultaram-se mutuamente para prenderem Jesus com dolo e o matarem. Mas diziam: Não durante a festa, para que não haja alvoroço entre o povo.
E, estando Jesus em Betânia, em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher com um vaso de alabastro, com unguento de grande valor, e derramou-o sobre a cabeça, quando ele estava assentado à mesa. E os seus discípulos, vendo isto, indignaram-se, dizendo: Por que é este desperdício? Pois este unguento podia vender-se por grande preço, e dar-se o dinheiro aos pobres. Jesus, porém, conhecendo isto, disse-lhes: Por que afligis esta mulher? Pois praticou uma boa ação para comigo.
Porquanto sempre tendes convosco os pobres, mas a mim não me haveis de ter sempre. Ora, derramando ela este unguento sobre o meu corpo, fê-lo preparando-me para o meu sepultamento. Em verdade vos digo que, onde quer que este evangelho for pregado em todo o mundo, também será referido o que ela fez, para memória sua. (Mt 26,3-13).
Tudo conspira em torno de Jesus – e também dentro de seu grupo. A sua culpa? Ter vindo curar as feridas do corpo e as brechas da alma, reconhecendo na fé de quem dele se aproxima, mesmo que por um instante, tudo o que é necessário para a salvação.
A culpa de ter feito coincidir o indizível Deus dos pais com os gestos de libertação do mal: aqueles que reconduzem à boa vida, à esperança de dias bem-sucedidos, à confiança de que habitar a terra não é o malévolo engano de um Deus-faraó que joga dados com a existência dos homens e das mulheres. Então como hoje.
A religião de ontem como a religião de hoje quer apoderar-se desse Deus para anulá-lo, tão insuportável e onerosa é a sua discreta proximidade com que se coloca nas nossas mãos, abandonando a elas o seu próprio destino entre nós. Porque em Jesus Deus deslegitima qualquer poder exercido em seu nome – e é isso que perturba a religião e suas instituições.
Jesus coloca Deus onde não deveria realmente estar: às margens, entre os excluídos que toda filiação religiosa gera, entre aqueles que só são impuros porque marcados no corpo – como precisamente Simão, o leproso.
Onde a religião oficial não vai, mantendo-se bem à distância, confundindo os sinais que a vida deixa em nossos corpos e em nossas almas como o índice de não sermos dignos de Deus e da coletividade humana, Jesus descobre que há uma casa para ir viver, uma história para ouvir, um desejo de hospitalidade que convida sem reservas.
E aqui, nessa terra de ninguém, Jesus deixa Deus entrar armando a sua tenda para sempre: proclamando que não há ser humano que não seja digno de Deus, que não há história de vida que Deus não deseje encontrar para morar perto dela, que não há corpo que não possa envolver de afetos o próprio corpo de Deus.
O poder patriarcal da religião não percebe e o mesmo acontece com aquele masculino dos discípulos que ficam até indignados. No entanto, alguém compreende, alguém se move, alguém faz belos gestos sobre o corpo de Jesus, uma mulher. Também ela figura marginal, excluída da vida pública e da possibilidade de honrar com o culto ao Deus dos padres. Uma mulher que aqui, para os discípulos, aqueles chamados à intimidade com Deus na proximidade de Jesus, percebem até como uma presença escandalosa.
Por que essa generosidade da mulher, essa dispersão de um bem conversível em moeda segundo a lógica do cálculo? E os discípulos murmuram diante do gesto da mulher, mostrando o quanto estão distantes das práticas que Jesus mostrou a eles e viveu com eles. Falham com o Senhor precisamente na máxima demonstração da sua dedicação a todos, e não apenas a alguns.
Sim, por que esse gesto, ao contrário, é louvado por Jesus? Porque envolver o seu corpo de beleza e sensibilidade significa estar na fé, porque é assim e não de outra forma que o Deus de Jesus é honrado.
Onde estiver o Evangelho, estará também a sua memória – e cada vez que partirmos o pão em memória dele, ela invadirá os nossos corpos e os nossos corações com o gesto com que soube honrar a dedicação crucificada de Jesus. Mas onde está hoje essa memória dela que Jesus quis gravar em letras de pedra no próprio coração do Evangelho?
Às margens, como então – perdida no pressuposto de saber onde está Deus, como e quem seja digno de aceder a Ele. Mas não há memória eucarística de Jesus se não houver memória eclesial dela – da mulher que realiza uma bela obra para com Jesus e o seu corpo.
Precisamos nos lembrar dela para aprender como nos aproximamos do corpo de Deus, da cruz e ressurreição do Filho. Reatemos o fio dessa memória dela, com tudo o que significa para Jesus, Deus e o Evangelho; vamos em busca da bela obra de ternura, que está além de qualquer cálculo e de qualquer preceito religioso: porque onde está, aí está também o Senhor – o seu corpo entre a Sexta-feira Santa e a Páscoa da Ressurreição.
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Em memória dela. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU